Por Alex Martins Moraes
Reconhecer-se como produtor num contexto institucionalizado, hierárquico e elitizado, assumir os antagonismos abrangentes que entranham qualquer instituição, duvidar dos consensos, perguntar-se pelo que está suprimido em cada ato performativo da disciplina (desde o programa de uma cadeira na universidade até a cerimônia de abertura de um congresso), abandonar a “ideologia da harmonia”e adotar o ponto de vista da contradição parecem ser algumas das vias para a crítica radical. Mas por que levar a cabo essa crítica?
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Sugerir que o trabalho do intelectual acadêmico se desenvolve em um espaço de autonomia desinteressada e criativa, fundamentado apenas na sucessão de epifanias e sustentado pela possibilidade de acesso facilitado ao manancial da produção espiritual socialmente disponível é uma pretensão burguesa. Igualmente pretensioso seria indagar sobre a postura política de um intelectual e ponderar sua pertinência a partir de juízos a priori, ou seja, desconsiderando de antemão as condições de produção do conhecimento nas quais ele encontra-se inserido. Em minha intervenção reflito sobre essas condições e sinalizo os antagonismos e posicionalidades políticas inerentes à institucionalização da antropologia em contextos elitistas, permeados pela colonialidade do saber/poder.
As condições de produção do conhecimento acadêmico determinam a possibilidade de emergência e transcendência dos trabalhados levados a cabo sob seu espectro. Isto é possível através de tecnologias institucionais destinadas a manutenção de certos regimes de produção que se materializam sob a forma de estruturas de diálogo, hábitos de leitura e sistemas de escrutínio e avaliação dos conhecimentos produzidos. As condições de realização do trabalho intelectual orquestradas por diferentes hegemonias institucionais promovem ativamente determinados tipos de “produto” compatíveis com sua manutenção e atualização, ao passo dificultam a viabilidade – ou diretamente suprimem – outros tipos.
Era Walter Benjamin, em “O autor como produtor”, quem sustentava que o intelectual é um produtor no âmbito de produção cultural em que se desempenha. A produção cultural, enquanto prática de produção material é necessariamente politizante, está interpelada pela conflitividade, pelas contradições e pela luta de classes da sociedade onde se insere. Se a cultura não é algo abstrato, mas sim um arranjo transitório de técnicas, ferramentas e dispositivos orientados à relação hermenêutica entre os sujeitos, então todos os campos da arte e da literatura, assim como as disciplinas acadêmicas — incluída, é claro, a antropologia — também o são. Antropologia costuma escrever-se no singular e com A maiúscula. No entanto, se levarmos em conta o sugerido até aqui, devemos realizar o exercício de concebê-la no plural e em concreto, como já propôs Eduardo Restrepo. No plural porque, mais além das hegemonias instauradas em muitas escalas, o que existe é uma proliferação de práticas antropológicas dissimiles e hierarquizadas. Em concreto porque estas práticas desdobram-se na esteira de estruturas institucionais localizadas, sejam elas universitárias ou não.
Para constituir-se como sujeito político no campo disciplinar o/a antropólogo/a precisa constituir-se — e é efetivamente constituído — como subjetividade antropológica, conquanto não seja esta, naturalmente, sua única via de auto-enunciação. Como qualquer ser humano, também o/a antropólogo/a se subjetiva em uma multiplicidade de outros espaços sociais. Ao desenvolver investigações , emitir laudos de demarcação de terras indígenas, frequentar eventos científicos, escrever textos, produzir imagens, enunciar discursos políticos, etc. os/as acadêmicos/as in-corporam e colocam em ato suas disciplinas. E por esta mesma via também estão habilitados a colocá-las em questão, disputando seus efeitos e funções. Eles/Elas podem, portanto, atuar no registro da reprodução, abastecendo o aparelho disciplinar herdado, ou podem bloquear a atualização de certas dinâmicas produtivas, exercendo uma reflexão crítica não apenas sobre as matrizes teóricas, formas de escrita e procedimentos de pesquisa em voga, mas também a respeito das ferramentas político-institucionais disponíveis à ação transformadora. Quais seriam os critérios orientadores dessa transformação?
Em primeiro lugar, poderíamos dizer, novamente com Benjamin, que a possibilidade de disrupção das cadeias de reprodução da maquinaria disciplinar tem mais a ver com uma forma de agir do que com um conteúdo ou uma tendência determinada de antemão. Para ser mais específico, não bastam cartas de intenção política ou categorias refinadas de análise crítica se, nos atos, permanecemos contemplativos. Reconhecer-se como produtor num contexto institucionalizado, hierárquico e elitizado, assumir os antagonismos abrangentes que entranham qualquer instituição, duvidar dos consensos, perguntar-se pelo que está suprimido em cada ato performativo da disciplina (desde o programa de uma cadeira na universidade até a cerimônia de abertura de um congresso), abandonar a “ideologia da harmonia” — assim a chama o antropólogo anarquista estadunidense David Graeber — e adotar o ponto de vista da contradição parecem ser algumas das vias para a crítica radical. Mas por que levar a cabo essa crítica? Se não estamos satisfeitos com a antropologia institucionalizada e academicista, não bastaria procurar outros lugares de ação mais “realizadores”? No final das contas, a(s) antropologia(s) é/são um “lugar” tão importante assim? Vale a pena disputá-lo?
Certamente vale a pena. As antropologias hegemônicas suprimem ativamente, como já foi dito, outras práticas de produção intelectual; elas impõem seu universalismo abstrato ao pluralismo real dos discursos e das práxis intelectuais vigentes em lugares e tempos determinados. Não raro, certos/as antropólogos/as enunciam o “outro” em detrimento da sua capacidade de enunciar-se a si mesmo. E o pior de tudo: são ouvidos/as como voz prioritária em instâncias intervencionistas do Estado e mesmo do setor privado. Além disso, as instituições encarregadas de produzir conhecimento antropológico manejam orçamentos que, sem serem os mais robustos do sistema universitário brasileiro, não podem, ainda assim, considerar-se insignificantes. Trata-se de orçamentos constituídos com dinheiro público extraído, diga-se de passagem, mediante a cobrança de impostos majoritariamente regressivos a populações empobrecidas. Estes recursos têm sido aplicados, frequentemente, no estímulo de um produtivismo acadêmico cujo efeito mais aterrador é o progressivo afastamento de estudantes e professores da problematização dos dilemas reais suscitados pela vida democrática em nosso país. Os problemas de investigação acabam sendo inventados nos corredores da academia — ou importados dos debates prestigiosos e “de ponta” no norte global — para serem “resolvidos” no “lado de fora empírico” e logo convertidos em digressões que atendem apenas à agenda editorial vigente no mercado das publicações acadêmicas. Como se não bastasse, o dinheiro público destinado à formação de jovens pesquisadores é por vezes “investido” na perpetuação da subalternidade epistêmica das academias do sul global mediante editais que reiteram regimes de legitimidade científica diretamente coloniais (ver anexo no fim do texto).
Estes já seriam motivos de sobra para convencer-nos de por que disputar as antropologias institucionalizadas. Existe, no entanto, outra razão, de ordem epistemológica, para tomar parte nesses conflitos: ao posicionar-nos neles conseguimos entrar em convergência com as contradições mais abrangentes de nossas sociedades, estabelecendo homologias que podem resultar em interconexões, alianças e finalmente na potencialização recíproca de distintas lutas. Sob este prisma as antropologias institucionalizadas não se restringem a uma função meramente supressiva e alienante. Elas também provêm um campo de relações no qual o/a antropólogo/a pode assumir-se como trabalhador/a-produtor/a, tendo a possibilidade de ocupar um lugar na luta de classes e vislumbrar seu campo de lealdades políticas para além da impossível claustrofobia imposta pelas ideologias disciplinaristas. Esboçar antropologias de outra forma é, portanto, vivenciar o trabalho intelectual como uma relação de co-produção e de “solidariedade com alguns outros produtores” (novamente Benjamin) que, talvez em outras circunstâncias – ou para outros/as antropólogos/as –, não significassem muito mais do que o substrato humano a serviço de indagações desencarnadas e não-situadas, ou melhor, situadas em um não-lugar: a Antropologia, com A maiúscula.
ANEXO: Um dispositivo de reprodução da subalternidade
Algumas universidades federais brasileiras disponibilizam recursos aos programas de pós-graduação para que seus estudantes realizem missões científicas de curta duração no exterior. Os lugares de destino das missões deveriam responder tanto aos interesses investigativos dos candidatos como aos objetivos estratégicos de cada instituição para inserir-se em esferas internacionais de interlocução acadêmica.
Em edital realizado recentemente por um prestigioso programa de pós-graduação em antropologia no Brasil é possível identificar, nitidamente, as clivagens institucionais que conduzem à supressão/inferiorização de certas antropologias, ao passo que reiteram a legitimidade de outras. Mais preocupante ainda, o edital em questão também deixa transparecer um viés colonizado, priorizando missões acadêmicas ao norte global em detrimento das propostas destinadas a estabelecer intercâmbio com antropólogos/as e antropologias situados na América Latina.
Passemos ao texto no qual se divulga e se justifica a escolha das propostas de missão científica aprovadas:
Os supervisores [ou seja, acadêmicos que aceitaram receber os alunos da universidade em questão nas suas respectivas instituições] de “Fulano” e “Ciclano” são nomes de reconhecimento científico internacional, figurando entre os intelectuais mais importantes nas suas áreas específicas de pesquisa. Os outros dois supervisores, de “Fulana” e “Ciclana”, assim como o supervisor de “Mengana”, possuem reconhecimento no âmbito de seus países e na América Latina.
“Reconhecimento científico internacional” quer dizer que possuem legitimidade no norte global, enquanto os orientadores das demais candidatas possuem projeção “apenas” no contexto latino-americano, o que os desqualifica no processo de seleção dos candidatos. Este critério de seleção reproduz um sistema de legitimação que reitera a preponderância de certas academias no sistema-mundo da antropologia — seja por seu peso editorial, econômico ou hegemonia idiomática — sem se questionar em que medida isso pode bloquear a pluralização do debate antropológico e debilitar outros tipos articulação acadêmica, muito mais horizontais. O documento prossegue:
Os quatro alunos de doutorado obtiveram o conceito A em todas as disciplinas que cursaram.
Neste edital, apenas alunos de doutorado foram agraciados com a possibilidade de empreenderem missões no exterior. Todos eles recebem bolsas de estudo. Isto não incidiria sobre os conceitos que obtêm nas disciplinas? Parece uma hipótese plausível uma vez que, sem a necessidade de dedicar-se a outra atividade profissional, podem empreender rotinas mais sistemáticas de estudo. Neste caso, o edital não estaria convertendo desvantagens econômicas em critério de exclusão ou, no sentido oposto, convertendo vantagens econômicas contingentes em vantagens acumuladas de integração ao establishment acadêmico?
No trecho que finaliza o documento, os nomes dos alunos são listados ao lado das publicações que conseguiram realizar. Quem publicou mais e em revistas bem conceituadas pela CAPES “naturalmente” leva vantagem. O fato de as trajetórias acadêmicas dos estudantes de mestrado serem geralmente mais curtas que as dos de doutorado –o que diminui suas possibilidades de terem publicado algo – parece não ter relevância alguma neste caso. As missões terminam acentuando disparidades já instauradas em vez de ampliar as possibilidades de qualificação aos estudantes em níveis não tão avançados de formação.
Nenhum dos quesitos avaliativos leva em conta a qualidade do vínculo mantido pelos candidatos com as instituições e professores do país anfitrião. É a famosa (in)determinação quantitativa de toda qualidade. Some-se a isso uma resoluta decisão de reiterar subalternidades acadêmicas internacionais em troca do prestígio de uma viagem iniciática à metrópole e o resultado será o seguinte: este ano Escócia e Inglaterra receberão visitas de estudantes brasileiros. Colômbia e Equador ficarão de fora. Normal?
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