Por Amador Fernández-Savater (Originalmente publicado no El Diario. Tradução: GEAC)
A produção de conhecimento, independentemente das posições teóricas e políticas dos pesquisadores, está fechada num circuito privatizado, alheio a qualquer compromisso com o comum, incapaz de intervir no social. Isto afeta tanto a função da universidade pública como a nossa tarefa cotidiana: perda de sentido, desilusão, impotência política, cinismo.
* * *
Nesta entrevista, o coletivo espanhol Indocentia aborda uma série problemas associados ao produtivismo acadêmico e à neoliberalização da universidade. Tais problemas, se bem parecem mais agudos na Europa, também emergem com intensidade crescente no Brasil e em outros países sul-americanos. Em oportunidades anteriores o blog do GEAC publicou intervenções que, em consonância com as preocupações do coletivo Indocentia, abordam especificamente o sistema de avaliação da pós-graduação brasileira (Do epistemicídio: a ciência como produção pela produção; O antropólogo como produtor: a luta de classes na antropologia e um exemplo de colonização epistêmica).
Disciplinar a pesquisa, desvalorizar a docência: quando a universidade se torna empresa
Em que estamos nos convertendo? Esta pergunta dá início a um dos textos do coletivo espanhol Indocentia, dedicado a analisar criticamente a transformação da universidade nestes últimos anos.
Efetivamente, em que se converte a universidade quando a redução do gasto público intensifica a pressão competitiva por recursos e estudantes? Em que se converte o exercício da docência quando esta passa a ser considerada uma atividade de segunda classe ao mesmo tempo e quem se estandardiza e instrumentaliza a relação pedagógica? Em que se converte a pesquisa quando está submetida a critérios e rankings que valorizam principalmente aspectos quantificáveis, demonstráveis e comercializáveis?
Converter, muito mais do que convencer. Transformar comportamentos mais do que opiniões. O que está em jogo na transformação neoliberal da universidade é a relação com o saber e com nós mesmos. Aprendemos a nos enfrentar com poderes que se opõem a nós como algo exterior, coativo e repressivo, mas o que ocorre quando nos defrontamos com poderes que se apresentam como evidentes e desejáveis?
O coletivo Indocentia agrupa professores, professoras e estudantes da Universitat de València. Sua reflexão sobre a universidade espanhola enfatiza os problemas particulares do modo de produzir conhecimento nas ciências sociais (psicologia, educação, sociologia, etc.); problemas estes que, ainda que compartilhem muitos elementos em comum, se manifestam de formas diferentes nas ciências humanas e nas ciências experimentais.
Os membros do Indocentia que responderam coletivamente as perguntas desta entrevista são: Lucía Gómez, Francisco Jódar, Almudena Navas, Carmen Montalba, Joan Carles Bernad, Antonio Santos, Manolo Rodríguez, Clara Arbiol, María Jesús Bravo e Daniel Sánchez. Contato: indocentia@gmail.com
A revolução cultural neoliberal
1. Vocês afirmam num dos seus textos que o problema atual da universidade, diferente do que me parece que ainda constitui o senso comum crítico, já não é exatamente a endogamia, a passividade, a burocracia, a rigidez, o memorialismo, a apatia… Porque, então, estes clichês ainda se mantêm? O que eles nos impedem de ver e pensar?
Indocentia: estes velhos problemas fazem parte de uma crítica midiática e supostamente progressista que não leva em consideração os problemas da universidade atual. Por isso, é importante mostrar o uso político desse tipo de problema, seu valor pragmático, a função que tiveram e têm enquanto justificação de reformas de caráter neoliberal no âmbito universitário.
Reformas que criticam a endogamia para avançar na desregulamentação laboral de quem está começando e para jogar coletivos laborais precarizados uns contra os outros; atacam a passividade para poder implementar mecanismos de (pseudo)participação neoempresarial na docência; falam de qualidade para disciplinar a produção de conhecimento em conformidade com lógicas competitivas; rechaçam o academicismo para supeditar o sistema educativo ao produtivo.
É necessário, portanto, evidenciar a contradição entre a retórica com a qual se apresentam as reformas e os efeitos que estas produzem. Por exemplo, no caso da crítica à endogamia, não deixa de surpreender que as reformas nunca tenha pretendido oferecer segurança laboral às posições mais precárias para evitar sua dependência frente aos poderes locais e frente a toda uma lógica relacional insuportável (redes clientelares que não apenas sobrevivem, mas também se acomodam perfeitamente às exigências produtivistas e meritocráticas).
Por esta razão, entendemos que é importante levar a cabo uma “crítica em tempo real”, que questione os efeitos das transformações recentes da universidade: a exigência de hiperatividade vazia e inócua, a paulatina mercantilização do conhecimento, a desvalorização da docência, a fragilidade e dependência das posições mais precárias…
2. Nesta transformação neoliberal da universidade, vocês dizem que é essencial a “mudança de cultura do professorado”. As diretrizes europeias que vocês citam em seus textos insistem muito nisto. Interessa-me, especialmente, este aspecto da “revolução cultural” atrelada ao neoliberalismo. Em que consiste? Por que é tão importante que o professorado se oriente para a pesquisa? Para que tipo de pesquisa?
Indocentia: Sim, os diferentes documentos da Comissão Europeia que vertebram a construção do Espaço Europeu de Educação Superior não escondem que o sucesso do processo de reforma depende da transformação do professorado de modo que sejam estabelecidas alianças entre as suas ambições pessoais e os objetivos políticos valorizados pela instituição. Isto não deixa de ser inquietante. As novas regras do jogo privilegiam a pesquisa ao mesmo tempo em que desvalorizam a docência; uma pesquisa submetida às regras que lhe permitam competir, uma pesquisa que possa ser quantificada e exibida, uma pesquisa obediente.
Em primeiro lugar, leva-se a cabo uma redefinição do professor como pesquisador em termos de prestígio e estatus. Em comparação com a docência, a prática investigativa é transformada num investimento no próprio currículo que rende benefícios subjetivos (valorização) e materiais (compensações retributivas). A docência passa a ser definida como uma carga, uma atividade que precisa ser suportada para podermos levar adiante atividades de pesquisa que são as que geram distinção e reconhecimento.
É ilustrativo, neste sentido, o Real Decreto-Lei 14/2012 de “medidas urgentes de racionalização do gasto público em âmbito educativo”, que estabelece que a atividade docente deve ser qualificada tendo em vista a “intensidade e a excelência” da atividade investigativa reconhecida. A docência fica diretamente definida como “castigo”. A exigência de rentabilizar os resultados da pesquisa faz com que o professorado deserte da docência que, por sua vez, converte-se num obstáculo para a promoção acadêmica. Investir esforços na docência é “perder tempo”.
Em segundo lugar, a produção de conhecimento é canalizada em função de critérios globais de produtividade/qualidade que permitam a competição. Nestes espaços de capitalismo acadêmico, o conhecimento é progressivamente submetido à indicadores de produção que têm valor em circuitos fechados. Como indica claramente a Estratégia Universidade 2015: “o conhecimento é um capital, mas é necessário identificar nele o que realmente tem valor para o mercado”.
Esta revolução neoliberal em curso está sendo um sucesso. Quase sem resistência ela foi capaz de construir pesquisadores empreendedores dispostos a se comprometer no processo cego e permanente de competição por contratos, publicações, projetos. Contudo, a própria função da universidade pública é pervertida: a produção de conhecimento vai perdendo sua dimensão social e se torna valor de troca ligado às exigência do mercado. Isto obstrui seu valor de uso, sua conexão com determinadas posições e problemas. A produção de conhecimento dá origem a resultados inócuos que devem contar no circuito virtual e autorreferente dos rankings.
3. Seus textos analisam pormenorizadamente a questão da “transformação das subjetividades” no atual processo de mutação da universidade. Em que medida a transformação das subjetividades é diferente de uma mudança ideológica?
Indocentia: os processos de reconfiguração identitária não afetam unicamente nossas ideias, valores ou crenças; eles modificam também nossos desejos, aspirações, motivações, prazeres: as formas de nos relacionarmos com nós mesmos. Transformam nossa interioridade. Por isso não se trata apenas de uma mudança ideológica. As novas formas de governo neoliberal modificam nossas subjetividades: nos tornam investigadores competitivos, ativos, polivalentes e flexíveis, em suma, “empresários de nós mesmos”. O “professorado excelente” trabalha somente por e para si. Incorporamos o cálculo de custo-benefício não apenas na hora de plenejar uma pesquisa, mas também no momento de gestionar nossas relações.
Dois aspectos favorecem a penetração nos corpos desta lógica instrumental. Por um lado, a atividade investigativa é concebida como um processo no qual está em jogo não só a possibilidade de progresso em nossas carreiras acadêmicas, mas também nossa própria imagem, a possibilidade de reconhecimento, um projeto de identidade que transborda o âmbito profissional. Rankings, estatísticas, atas de pesquisa, tabelas comparativas, informes, plataformas ou registros virtuais de citações, publicações, seguidores… todos esses elementos nos proporcionam uma valorização, a possibilidade de ocupar um espaço-marca. Tudo conduz a um processo contínuo de competição interna que fragmenta e gera antagonismos no professorado.
Por outro lado, estas formas de regular nossa conduta dependem de nossa iniciativa “voluntária”. Ou seja, ainda que não se possa negar seu caráter coercitivo (sobretudo para quem está começando), elas também operam através da fascinação, da identificação com as regras do jogo. Daí a enorme dificuldade de exercer a crítica aos dispositivos de dominação que nos configuram.
Discursos e práticas: excelência e avaliação
4. Sua análise está centrada em duas dimensões materiais dessa “revolução cultural”: os discursos (excelência, empreendedorismo, etc.) e as práticas (sobretudo a avaliação e a prestação de contas). Comecemos pelos discursos. Vocês afirmam que o significado da palavra “excelência” importa menos do que aquilo que ela “faz fazer”. O que os discursos “fazem fazer”, quais efeitos eles produzem?
Indocentia: discursos como excelência, espírito empreendedor, inovação, autorrealização… pretendem instaurar um sentido comum compartilhado ou regra do jogo que naturaliza a necessidade de competir. A partir das reitorias leva-se a cabo um trabalho pedagógico-propagandístico orientado a fazer com que nos identifiquemos individualmente com exigências que não dependem de nós mesmos e que não são questionadas.
A excelência é um conceito vazio que tem poder performativo, incita-nos a intensificar continuamente o rendimento ao mesmo tempo em quem obstrui qualquer crítica: existe alguém que deseje ser o contrário de excelente? A excelência deixa de ser uma qualidade inapreensível para significar ranking, competitividade, resultados. Ela permite projetar a mensagem de que a universidade está se tornando uma estrutura administrativa semelhante à empresa, capaz de planejar estrategicamente, avaliar e executar. O empreendedorismo associado à retórica da iniciativa, da abertura, da aceitação de riscos e desafios, da criatividade, da reinvenção, da transformação de ideias em atos, da liderança de projetos, etc. mostra seu lado mais desavergonhado e cínico quando nos pedem que, na sala de aula, incentivemos o espírito empreendedor dos estudantes. Aqui podemos ver no que se transformou a universidade-empresa: por que se pede aos estudantes que assumam riscos individuais enquanto continuam invisibilizadas as condições sociais que geram desigualdades nessa aposta? Por que se propagandeia o empreendedorismo e não se denuncia a precariedade que aguarda os estudantes?
5. No tocante aos mecanismos de avaliação e prestação de contas, de que tipo são, como funcionam e o que geram?
Indocentia: agências de qualidade como a ANECA (destinada a auferir a qualidade do professorado) e a CNEAI (que reconhece, através de avaliações a cada seis anos – sexênios – a atividade investigativa realizada) priorizam como critérios de valoração a publicação de artigos em revistas científicas incluídas em bases de dados elaboradas por duas empresas privadas, Thomsom Reuters e Elsevier (proprietárias, respectivamente, das bases de dados WoS e Scopus), em detrimento de outros formatos e modos de canalizar a atividade investigativa. Estes critérios de valor reproduzem uma lógica colonial, são efeitos de lógicas de poder geopolíticas – que marginalizam e depreciam revistas científicas não anglo-saxãs, que impõem o inglês como língua neutra – e, apesar de todas as crítica de que são alvo, preservam intacta a sua capacidade de dizer quem vale e quem não vale.
Se a bibliometria não trouxe resultados de pesquisa excelentes, sabemos que ela despertou a astúcia e as artimanhas de uma parte do professorado que adapta seu trabalho de acordo com o que se considera fundamental na avaliação: as monografia e livros são abandonados porque pontuam menos e dão mais trabalho em comparação com os artigos cujo fator de impacto é mensurável. As pesquisas são destroçadas para que possam render vários artigos. Isto gera uma inflação vazia e inabarcável de papers; publica-se mesmo quando a pesquisa não está concluída e os resultados são ainda escassos e pouco sólidos; provocam-se (“fiddling with the data…”) resultados positivos porque os negativos são menos publicáveis; existe uma aposta em pesquisas breves, que permitam publicar com rapidez; recorre-se ao autoplágio, ao plágio, às autocitações, às cadeias de citação, às guerras de citação, a não citar possíveis concorrentes.
Neste cenário, são frequentes as relações clientelares, as “famílias” baseadas em alianças estratégicas, em intercâmbios interesseiros orientados à maximização dos resultados (autorias rotativas, contatos em revistas…). A necessidade de produzir formas colaborativas de pensamento e pesquisa é deixada de lado. O conhecimento termina submetido, dobra-se a estes critérios de valorização “internacionais”, supostamente “neutros”, mas que disciplinam, estandardizam e empobrecem o trabalho investigativo (promovem metodologias legítimas, modos de enunciação autorizados, parâmetros temporais e conteúdos prioritários). Esta dependência se manifesta de forma diferente em cada disciplina. Nas ciências sociais não é difícil notar a estreita relação entre as áreas temáticas que permitem financiamento de projetos de pesquisa e as atuais formas de produção e pensamento hegemônicas: empregabilidade, empreendedorismo, inteligência emocional, resiliência, estresse positivo, práticas de êxito escolar…
A produção de conhecimento, independentemente das posições teóricas e políticas dos pesquisadores, está fechada num circuito privatizado, alheio a qualquer compromisso com o comum, incapaz de intervir no social. Isto afeta tanto a função da universidade pública como a nossa tarefa cotidiana: perda de sentido, desilusão, impotência política, cinismo.
6. Como estas exigências de disponibilidade contínua, hiperatividade, otimização, mobilização permanente incidem sobre o pensamento, sobre o ensino (uma atividade “generosa, viva, incomensurável” como vocês dizem), sobre os próprios corpos?
Indocentia: é precisamente a hiperatividade que está paralisando o pensamento. A carreira investigativa não tolera tempos vazios, êxitos acabados ou duradouros. O valor deve se atualizar continuamente num processo sem fim. Daí o surgimento do chamado “sexênio vivo” (N. de T.: semelhante às avaliações bianuais da CAPES brasileira) e do uso que dele se faz (os períodos nos quais o ritmo de produção decai são penalizados). Instala-se uma relação com o conhecimento desencarnada, instrumental, acelerada, regida pelo curto prazo. O ritmo de trabalho se ajusta aos requisitos temporais e estandardizados exigidos pelos dispositivos avaliadores. Estas exigências colocam em perigo o caráter artesanal e criativo dos processos de produção do conhecimento. O que vale, o que conta, o que tem valor (de mercado) é a acumulação, a superficialidade, a contínua novidade sem raízes. Trata-se de um novo modo de expandir a submissão do trabalho intelectual. Uma perda da dimensão crítica da pesquisa que, paradoxalmente, associa-se ao aumento da excelência das nossas universidades.
Dar uma boa aula exige muito tempo e esforço. Requer entrega e generosidade. Continuamente experimentamos que a paixão que o professorado transmite em sala de aula é o que mobiliza a vontade de saber dos estudantes. É possível medir tudo isso? A relação pedagógica não se deixa aprisionar por termos instrumentais e rentabilistas. Daí nossa crítica aos dispositivos de controle e gestão da atividade docente, como o infame programa Docentia. Um verdadeiro cavalo de Tróia, um software aparentemente inofensivo que, ao ser executado, ocasiona danos irreparáveis. Seu principal efeito não será aumentar a qualidade do ensino, mas sim introduzir a lógica do custo-benefício na docência, de forma que também ali orientemos nossa conduta para contemplar os aspectos premiados. Isto ocorre num momento em que a docência é desvalorizada e passa a ser, como dizíamos, o castigo para os professores e as professoras não excelentes (penalizados com mais horas de docência).
Na vida do professorado se instala não só a angústia perante as exigências avaliadoras, mas também a culpa por não estar a altura desse ideal de excelência. E o padecimento dessas afecções de um modo individual e privado. Vidas fragmentadas e em dívida permanente. Corpos que não podem se permitir uma baixada de energia, de intensidade produtiva. Corpos que aprenderam a não distinguir entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho. Corpos fortes e independentes, sem debilidades nem vulnerabilidades. Corpos que não tem que ser cuidados e que não cuidam de outros corpos. Corpos hiperprodutivos e alheios aos compromissos com a vida reprodutiva. A excelência mata, a competitividade faz adoecer: eis nosso ponto de vista enquanto Indocentia.
Formas de resistência criadoras, não nostálgicas
7. Qual é a atividade do Indocentia, seu alcance, seu eco?
Indocentia: Indocentia é um espaço formado primeiro por docentes e que agora está se abrindo também para os estudantes; um espaço que pretende levantar perguntas, manter aberta a capacidade de nos estranharmos, ensaiar formas de desobediência ativa. É uma tentativa de problematizar em que nós estamos nos convertendo dentro da universidade. Num momento em que estamos mais individualizados do que nunca, queremos politizar em comum nosso mal-estar. Construir uma posição que nos ajude a nos apoiar mutuamente compartilhando o que, em nós, resiste a encaixar no jogo da universidade neoliberal. Procuramos enfrentar formas de submissão e esvaziamento do sentido público da universidade. Acreditamos em uma docência que permita relações pedagógicas vivas. Queremos parar, pensar e abrir outros sentidos do possível.
É cansativo ser empresários de nós mesmos, jogar o jogo de instrumentalizar oportunidades, contatos, relações. Sabemos que nossa autorrealização não depende de nossa pontuação em qualquer ranking e suspeitamos da própria obrigação de autorrealização e de implicação contínua. Não aceitamos oferecer empreendedorismo aos nossos estudantes explorados.
8. Como ler as resistências à transformação neoliberal da universidade? Acho que se o novo paradigma de poder e controle passa pelos corpos (é “biopolítico”, como se diz), então talvez as resistências também se expressem “fisicamente”, ainda que de formas ambíguas: depressões, deserção laboral, etc. Vocês veem isso no seu entorno?
Indocentia: as condições que hoje definem a produção de conhecimento na universidade (exigências de flexibilidade temporal, funcional, horária, instabilidade laboral em contratos precários…) têm consequências na saúde: ansiedade, desgaste psíquico, incerteza, culpa. Junto com tudo isso, a deriva produtivista e a gestão rentável esvaziam de sentido o nosso trabalho. Mas essa realidade não conta, não se politiza. A lógica meritocrática esconde que a posição de gênero, classe e a inserção em determinadas redes sociais na instituição definem desigualmente a possibilidade de alcançar determinados resultados. E provoca uma perigosa atribuição individual do fracasso. Por isso, é importante reler, interpretar coletivamente estas manifestações de mal-estar desqualificadas ou silenciadas como privadas. Também aqui o pessoal é político.
9. Se hoje o poder é “interior” e “voluntário”, passa por nossa própria adesão subjetiva às formas de autorrealização que o sistema nos propõe sedutoramente (reconhecimento, valorização, visibilidade), então o que pode ser feito? Como podemos lutar ou dissentir? Como podemos construir outros espaços de pensamento sem acabarmos relegados à invisibilidade, à auto-marginalização? Onde vocês veem essas resistências e/ou criações?
Indocentia: para as posições mais precárias, a possibilidade de dissenso é difícil. Estão obrigadas a respeitar as regras do jogo si querem aspirar, num horizonte incerto e competitivo, a manterem seu posto de trabalho. Mas, surpreendentemente, aqueles que não colocam em jogo sua estabilidade laboral tampouco conseguem romper as identificações (motivações, aspirações, desejos) outorgadas pela racionalidade neoliberal. Estão capturados.
A produção de outros espaços de pensamento e resistência passa por gerar outras formas de reconhecimento coletivo para nosso trabalho, formas diferentes das que a empresa Thomsom Reuters nos oferece. Precisamos dar valor aos vínculos nos quais não exista apenas instrumentalização do outro. A questão é não submeter a pesquisa aos circuitos rentáveis e tentar construir espaços comuns apesar da fragmentação e hierarquização. Não podemos desertar da docência, precisamos preservar esse espaço de relação.
Em todo caso, a resistência tem que ser desobediência e criação; um olhar nostálgico não tem sentido. Uma universidade pública e democrática ainda está por ser construída.
10. “Iniciativa, abertura, assumir riscos e desafios, criatividade, reinvenção permanente, projetos”… A linguagem neoliberal é emocional, entusiasta e mobilizadora. Como lutar contra ela, como lutar na linguagem? É necessário desmascarar o que as palavras escondem, tentando se reapropriar delas e conferir-lhes outros sentidos? É preciso inventar novas palavras?
Indocentia: apesar de parecerem atraentes, acreditamos que é importante mostrar os efeitos desses discursos na universidade (efeitos que dependem sempre da relação que mantêm com dispositivos práticos, como a tecnologia avaliativa). A excelência se torna um incentivo para que aumentemos de forma constate e ilimitada a produtividade; a qualidade esconde a submissão a estandartes e formatos quantitativos e arbitrários; o empreendedorismo atua como ilusão de agência e êxito pessoal no trabalho do pesquisador; a audácia e o risco são prescrições que, questionando direitos e proteções trabalhistas, tornam desejáveis situações corrosivas e precárias.
A luta teria que conseguir não só evidenciar os efeitos produzidos por estes discursos, mas também gerar outra sensibilidade com relação a eles. Gerar desafetos. Convertê-los no que são: ladainhas estridentes e insuportáveis. Ao mesmo tempo, teríamos que ser capazes de incorporar outros elementos de valor ao trabalho investigativo e docente: trabalho compartilhado, trabalho artesanal, honestidade, compromisso. Nesta linha encontramos a “Carta da Des-excelência” impulsionada por um grupo de universidades francesas e belgas.
- Se o poder é micro e passa pela transformação das subjetividades, o que poderia contribuir positivamente para uma mudança macro, no poder político, sobre a gestão e o governo das universidades? Como vocês veem o panorama, que posição têm sobre as transformações em curso na universidade e nas formações da “nova política”?
Indocentia: a transformação neoliberal das subjetividades depende de um conjunto heterogêneo de discursos e práticas na qual as mudanças organizativas e legislativas têm um peso importante. Isto é visível, por exemplo, na regulação do sexênio atual, definida no Real Decreto-Lei 14/2012 que premia determinadas linhas de pesquisa com uma redução de carga docente e penaliza outras com um aumento significativo da docência. Este procedimento divide o coletivo, paralisa a crítica e a ação coletiva e consolida um imaginário no qual a docência não tem valor. Portanto não se pode renunciar à possibilidade de produzir coletivamente novas regras, novas práxis instituintes.
É importante que aquelas formações políticas que foram capazes de denunciar o efeito das políticas neoliberais em certos âmbitos sejam também capazes de contemplar todos os pressupostos inerentes à atual deriva da universidade. Entretanto, constatamos que a potência do discurso midiático ao qual nos referíamos no início da entrevista e a resposta neoliberal que se oferece como garantia de modernização e solvência (qualidade, competitividade, meritocracia, excelência…) continua impregnando algumas propostas e diagnósticos das novas formações políticas. É necessário dar mais um passo. É necessário avançar na crítica. É urgente se comprometer e disputar o sentido também no espaço universitário. Muitas coisas estão em jogo.
0 comments on “Disciplinar a pesquisa, desvalorizar a docência: quando a universidade se torna empresa”