Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo
Num contexto em que as “forças produtivas” que movem a Universidade entram em contradição com o modo vigente de valoração do conhecimento, o evento “Às armas: aportes metodológicos para a pesquisa militante” é uma boa oportunidade para estabelecer alianças que fortaleçam o campo da insurreição.
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Um mal-estar ronda a academia; mal-estar que se torna mais e mais sensível na medida em que as instituições universitárias brasileiras experimentam uma democratização relativa (ler mais a respeito aqui, a partir da página 16). A conjuntura é privilegiada para visualizar com nitidez a natureza dos processos materiais e disciplinares que buscam garantir a estabilidade dos espaços destinados à produção do conhecimento. As disciplinas acadêmicas, despidas de sua roupagem solene e universalista, precisam, agora, responder a questionamentos que não haviam previsto. Devem contemplar demandas e expectativas formuladas por sujeitos que, até pouco tempo atrás, eram os “objetos” privilegiados da análise científico-social. Confrontadas com interpelações inesperadas, as aparelhagens disciplinares escancaram, em meio a grandes conflitos, as hierarquias e exclusões nas quais se fundamentam. De forma simultânea, o produtivismo acadêmico distribui êxitos e fracassos de acordo com critérios elitistas e mortificantes que asfixiam professores e estudantes, dificultando a pluralização das agendas de pesquisa e das práticas intelectuais.
Não é à toa, então, que justamente neste momento de mal-estar tenha começado a circular entre nós uma proposta pouco usual. Estamos falando do convite para participar de um evento denominado “Às armas: aportes metodológicos para a pesquisa militante”. O próprio título do encontro já nos diz algo sobre a quebra de certos protocolos de boa conduta que procuram exorcizar do público universitário o compromisso intelectual com suas próprias experiências sociais e engajamentos coletivos. Em nossas faculdades operam disciplinamentos concretos que dificultam a construção de vínculos consistentes entre pesquisa social e (auto)emancipação dos sujeitos políticos. Isto não impede, é lógico, que no interior das universidades – e com intensidade notável nos programas de extensão – a articulação entre pesquisa e militância possa vicejar com alguma sistematicidade. De qualquer forma, as portas da iniciação científica e os corredores da pós-graduação continuam sendo muito estreitos para que tal articulação consiga escoar sua potência vivificante através de toda a instituição universitária.
A subalternização do debate sobre os nexos entre produção do conhecimento e transformação emancipatória do vínculo social se articula – e se reforça mutuamente – com a docilização avassaladora da prática investigativa nas universidades. Tal docilização decorre da instauração paulatina de critérios de avaliação quantitativistas e produtivistas que não reconhecem na prática científica outro valor senão aquele que lhe outorgam os mercados editoriais (ver discussões a respeito aqui e aqui; para uma abordagem que problematiza as relações entre economia do conhecimento e economia real, clique aqui). Ao promover a indeterminação quantitativa de toda a qualidade, o produtivismo empobrece os critérios de avaliação da relevância e da legitimidade do saber acadêmico e, desta forma, fortalece o senso comum conservador segundo o qual o compromisso intelectual de um pesquisador universitário se estabelece, em primeira instância, com o corpus escrito e a parafernália burocrática do seu próprio campo de conhecimento. É neste cenário que o inusitado chamado às armas do Instituto Outras Margens poderia ser lido.
Trata-se de um convite para tomar contato com o arsenal metodológico e os relatos experienciais de quem, havendo desenvolvido treinamento em pesquisa, optou por não abandonar o espaço-tempo da insurreição. Um espaço-tempo que se desdobra à margem dos ambientes esquadrinhados pelo produtivismo e se torna portador de possibilidades de engajamento que transcendem o extrativismo cognitivo e sua relação utilitária com o devir dos processos sociais. No espaço-tempo da insurreição aquilo que se produz em termos de conhecimento coabita com os anteparos materiais que permitirão sua validação no âmbito na práxis. Ali, não estamos obrigados a esperar que os aparelhos do Estado e do mercado determinem a utilidade ou a aplicabilidade dos nossos saberes-poderes para que, só então, eles possam fazer alguma diferença na vida coletiva.
Neste momento em que as “forças produtivas” através das quais a Universidade se reproduz – ou seja, seus estudantes, cada vez mais numerosos e heterogêneos – entram numa tensão profunda e abrangente com o modo capitalo-academicista de produção do conhecimento, o chamado às armas entusiasma. Ele oferece uma saída afirmativa para o mal-estar atual porque nos lembra de que a CAPES, as parcerias entre universidade e empresa, as genealogias institucionais estabelecidas e o marasmo copista, redundante e canônico das revistas indexadas não obstruíram o desenvolvimento da pesquisa militante.
Participar do “Às armas” e ajudar a financiá-lo constituem verdadeiras medidas de ação direta que transgridem o produtivismo e o quantitativismo – ambas, dinâmicas que tendem a esvaziar o sentido de nossa ação no mundo. Num contexto em que as “forças produtivas” que movem a Universidade entram em contradição com o modo vigente de valoração do conhecimento, este evento é uma boa oportunidade para respirar outros ares e estabelecer alianças que fortaleçam o campo da insurreição.
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