Por Alain Bertho
Originalmente publicado em Anthropologie du Présent. Tradução: Grupo de Estudos em Antropologia Crítica – GEAC
Como mudar a política e refundar uma cultura da transformação radical se continuamos enraizados em ciências sociais cada vez mais marcadas pelas preocupações com a ordem pública e com a pacificação social e urbana? (…) as ciências sociais estão perturbadas pela política como atividade e como subjetividade que, a partir de agora, abandona o estatuto de efeito social que usualmente lhe atribuíamos para ser elevada à condição de determinante intelectual.
Este é o primeiro texto do compêndio “Marxismos com Antropologias”, orientado a informar os debates da oficina virtual homônima que será organizada pelo Grupo de Estudos em Antropologia Crítica no primeiro semestre de 2017. Os textos de dito compêndio podem ser acessados em seu conjunto através da tag Marxismos com antropologias.
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Há pouco menos de dez anos, a revista Société française, da qual eu era redator chefe, havia lançado uma pesquisa dirigida a um certo número de intelectuais e pesquisadores indagando sobre sua relação com o marxismo e com Marx. Eu fiz de tudo para evitar ter que responder à referida pesquisa. Trata-se de uma questão muito complicada e subjetivamente perturbadora. É uma questão temível que articula questões de história pessoal, de história intelectual e militante e da conjuntura histórica particular na qual esta biografia se inscreve, ao lado de tantas outras.
É, em primeiro lugar, uma questão pessoal complicada, porque a relação que mantemos com a obra, as teses, os conceitos de Marx é, ao mesmo tempo, a relação com o autor e a relação com os autores de um espaço intelectual complexo e diverso.
De que tipo de relação estamos falando? Trata-se de uma relação, antes de qualquer coisa, cultural quando tomamos um banho de marxismo desde a mais tenra idade. É uma relação que diz respeito à representação do mundo e, por isso mesmo, é uma relação cultural e ideológica. É uma relação política e, portanto, militante. É uma relação crítica diante do real, portanto, uma relação filosófica. É uma relação profissional, aquela do pesquisador, do historiador e do sociólogo. É, enfim, uma relação mediada de forma eclética.
Minha formação marxista passa mais pela leitura direta dos textos (talvez mais os de Lênin que os de Marx) do que pela leitura de marxistas tão diversos como Althusser, Lefebvre ou Godelier e, mais tarde, Sève, Schwartz e Clot, que me abriram novos horizontes e, especialmente, um retorno ao Marx dos Grundrisse, através dos debates sobre o indivíduo no início dos anos 80. Mais recentemente, eu estive muito marcado pela leitura de Toni Negri, na esteira de um trabalho em comum que nós realizamos.
Eu quero dizer, ademais, que num sentido amplo minha relação com Marx é a relação com uma cultura, com um espaço de intelectualidade ao mesmo tempo político e científico. Impossível, então, isolar neste conjunto uma relação teórica e intelectual própria à atividade de pesquisa. A relação que nutro com o marxismo se refere notadamente à impossível disjunção entre o político e o intelectual em minha démarche investigativa.
Em minha vida, como na de milhões de pessoas, o marxismo fez cultura. É difícil pensar a relação com o marxismo diferenciando a obra – ou as obras – dos seus continuadores da materialidade histórica de todos os movimentos que o reivindicaram.
Este marxismo cultural está ligado a um período histórico, é um elemento central dele. O que dizer quando este período encerra-se? Porque nós vivemos uma mudança de época. O fim do comunismo do século XX foi o signo mais marcante dessa ruptura. A onipresença da problemática da crise e, hoje, da desordem indica o fato de que se nós não tivermos consciência de que as coisas não são mais como antes, nós não analisaremos o novo salvo em termos do passado, perdendo, deste modo, o domínio intelectual do contemporâneo.
Se um período termina e com ele sua inteligibilidade, se um dos eventos marcantes do fim deste período é justamente o fim do comunismo, coloca-se, então, com força, uma questão legítima, tanto no plano intelectual, como no plano científico: o término desse período não é, também, o encerramento do marxismo como cultura e como intelectualidade? Não é o fim definitivo do comunismo?
Eu me furtarei de responder afirmativa ou negativamente a esta temível questão cujo interesse reside menos na resposta final do que no inventário ao qual ela conduz. Eu apenas posso avançar um pouco e dizer que minha posição é que o fim desse período está certamente marcado pela saturação de uma figura histórica do pensamento crítico da qual o marxismo havia sido um dos vetores fundamentais. Estamos, então, diante do desafio de reconstruir um pensamento crítico e, deste ponto de vista, a experiência do marxismo possui, certamente, elementos a nos transmitir.
A política, a ciência e a sociedade: um itinerário
Acredito que vivi de forma muito intensa a transição de uma época para outra e provei a saturação disso que, para mim, é o coração do marxismo, a saber: uma certa relação entre o intelectual e o político. Fundamentalmente, minha relação com Marx e com o marxismo não se define por uma relação com textos, conceitos e escolas. Define-se, isto sim, por uma postura, um posicionamento na situação: a relação do intelectual e do político.
Do intelectual, ou seja, da relação cognitiva com relação ao real que eu pratiquei através da pesquisa em história, sociologia e antropologia sobre certas temáticas: a política, o Estado, a periferia (banlieue).
Do político, ou seja, da relação normativa e prescritiva com relação ao real, da elucidação não apenas do que é, mas também dos possíveis.
Disjunção, articulação, determinação recíproca? A questão da relação entre o intelectual e o político é, de certa forma, tão velha quanto a emergência da política moderna e da ciência social.
A sociologia se constituiu separando-se do socialismo. O marxismo nutriu a ambição oposta de construir a política como uma ciência… Parece-me que estamos, hoje em dia, diante da necessidade de reformular completamente a questão. Mas não nos antecipemos. Antes de avançar esta hipótese é necessário revisar uma experiência pessoal e coletiva transcorrida nas duas últimas décadas do século XX. Refiro-me à experiência da revista Société française.
O primeiro editorial da revista, publicado em novembro de 1981, anunciava sua ambição nos seguintes termos: “associar a necessidade de conhecimento da sociedade francesa com a necessidade de mudá-la”. Esta ambição introduzia duas intuições que a revista estava obrigada a explicitar: associar a necessidade de conhecimento com a necessidade de mudança, tentando desenhar uma concepção nova da política e dos seus protagonistas e uma concepção nova do trabalho de conhecimento em si mesmo, e, portanto, também dos seus protagonistas.
Apoiada em uma das últimas tentativas de renovação estratégica do comunismo francês do século XX (o XXIII° congresso) no seio do novo Instituto de Pesquisas Marxistas, a postura escolhida estava na contra-mão de uma concepção escolástica do marxismo, tanto em sua dimensão política como intelectual. Já não se tratava de considerar o marxismo como uma ciência, ciência da história ou da política, mas de articular a exigência de possíveis e a elucidação do real, de reviver uma tradição crítica.
Podemos ver, aqui, até que ponto essa escolha estava marcada pela conjuntura: era importante confrontar uma doxa, tanto teórica como política, em vias de rápida obsolescência. Isto fazia com que o caráter frutífero e inovador da agenda proposta corresse o risco de se definir mais em relação ao passado do que em relação à novidade radical dos caminhos adotados.
Os quatro primeiros anos de Société française foram momentos de intensa criação, momentos onde a tensão entre o político e o intelectual foi a mais frutífera. Como recorda o editorial retrospectivo do número 50, treze anos mais tarde, a escolha de trabalhar sobre “objetos nebulosos” como o trabalho e a escola, de trabalhar com um novo dispositivo de protagonistas da pesquisa instalou, de forma incontestável, o fundamento de uma abordagem original marcada por dois colóquios sucessivos sobre o trabalho e os saberes, a abertura para a questão teórico-política do sentido da vida pessoal e a noção de “nova comunidade científica” sustentada desde o primeiro colóquio num texto de Yves Schwar, publicada no número 10 da revista, em 1984.
Sobre este plano – da fertilidade da abordagem intelectual e da sua capacidade de rearticulação – o ano de 1984 foi, sem dúvida alguma, o “ano mágico” durante o qual a revista recebeu seu milésimo assinante. Mas foi, também, o ano do fracasso político. Enquanto que o número 12 especial sobre a crise e as eleições europeias e o número 13 sobre a política permitiam expressar mais claramente que nunca as pistas da reflexão sobre a política tendo em vista uma noção chave desenvolvida desde então – aquela de “crise da política” –, o PCF (Partido Comunista Francês), por sua vez, entrava numa crise maiúscula, marcada, durante muitos anos, por um fechamento intelectual e uma certa caça às bruxas entre cujas vítimas estavam os animadores da revista.
Société française não sairá ilesa do fracasso da dimensão política de seu projeto. Oportunidade perdida ou subestimação da profundidade da grande crise da política que então antevíamos? A equipe da revista não se desarma. Ela toma a ofensiva com três números sobre “valores e política”, “juventude” e “pensar a França”. As grandes ambições anunciadas nestes números temáticos foram depois apoiadas por uma série de seminários públicos. No entanto, este segundo impulso acabou sendo rapidamente acometido por uma outra tempestade, agora planetária: a do fechamento da história do comunismo do século XX.
De um lado, a revista continuava seu caminho, abrindo-se, nos anos 90, à novas questões como a cidade, a periferia, a marginalização social, os valores, a modernização do aparelho produtivo. Também retornava sobre a “crise da política” (número 40), consolidava suas escolhas iniciais (número 41-42 “a sociedade em análise”). Por outro lado, a questão do laço com uma política transformada num vasto campo de ruínas era cada vez mais problemática.
A equipe estava dividida entre duas posturas: uma, de fato minoritária, que consistia em pensar que havia ainda algo para fazer com a política instituída e outra que constatava o fechamento (provisório) de todo e qualquer espaço de transformação política. Os adeptos da primeira postura investiram na atividade política stricto sensu. Os adeptos da segunda postura asseguraram a manutenção de uma revista renovada, com uma nova direção, um novo conselho editorial, uma nova estrutura, um laço mais forte com a pesquisa universitária.
A nova direção se apresenta aos leitores em 1993 através do editorial do número 48. A relação com a experiência social em seu conjunto é explicitamente substituída pela relação com a política e a ênfase é prioritariamente colocada sobre a originalidade de “uma abordagem das transformações das condições sociais de produção do saber”. O editorial chancelava um dos aspectos da proposta inicial da revista, concernente à pesquisa, à aproximação entre o conhecimento e política. O editorial do número 50, de 1994, retorna sobre este tema e reitera “o fracasso de uma reconciliação entre conhecimento e política”. A revista deixa de ser publicada alguns anos mais tarde. Adeus ao marxismo?
O encerramento de um período
Podemos ter dessa curta história uma visão anedótica que, de qualquer forma, não carece de interesse. Mas creio que essa experiência merece reflexões mais amplas. Com um pouco de retrospectiva e esforço, penso poder sugerir que nós nos debatemos coletivamente com uma situação historicamente original: aquela do fechamento de uma sequência intelectual e política, sequência precisamente aberta pelo marxismo. Quero dizer, ainda, que o encerramento da aventura comunista do século XX não é o fechamento de um epifenômeno, de um acidente histórico, mas sim o fechamento do período em seu conjunto, objetiva e subjetivamente.
O drama que nosso coletivo viveu foi o de tentar, desesperadamente e até o final, pensar a ruptura a partir do interior do espaço mental de um período em vias de se fechar. Atitude muito difundida, mas que conduzia a um impasse categórico.
Ela estava fortemente marcada pela onipresença da palavra crise, das temáticas da desordem e da insegurança nos debates tanto políticos como intelectuais do momento. Era uma forma de admitir que no fundo nós não conseguíamos olhar o novo salvo através do retrovisor e à luz do período anterior.
Por quê? Se nós tormarmos, por exemplo, o problema que era o nosso, aquele das relações entre política e conhecimento, ele não podia – e não pode – ser corretamente colocado salvo com a condição expressa de tomar consciência do fato de que a política não é mais o que era… E o conhecimento do social tampouco.
A política não é mais o que era
O veredito da crise da política lançado em meados dos anos 80 é hoje praticamente um consenso. A política como subjetividade, como prescrição coletiva de possíveis se articulou, no século XX, a dois dispositivos intelectuais:
1 – O tríptico Classe, Partido, Poder
2 – A política como ciência e como conhecimento
O tríptico Classe, Partido, Poder
É isto que termina diante dos nossos olhos. Hoje encontramos outros dispositivos através de outras formas de consciência e de outros modos militantes, aqueles que designamos sob o termo de “movimento social” por não conseguir concebê-los a partir de um léxico ainda muito ligado às formas políticas acometidas pela obsolescência.
Durante muito tempo nós estivemos apoiados numa grande ideia: a classe operária, situada no centro do sistema de exploração, era a ponta de lança do combate revolucionário. O partido era sua consciência, seu guia e seu braço. Os outros estratos sociais podiam ser seus aliados, num processo de unificação concêntrica do mundo do trabalho. A política exprimia o social no espaço do Estado. Esta ideia esgotou suas virtudes estratégicas.
Certamente ainda há operários, em grande número, e a exploração à qual eles estão confrontados é cada vez mais dura. Mas eles não estão no centro nem da relação de trabalho, nem do combate emancipador. Por uma razão simples: já não há centro. A força criativa da humanidade está em vias de se tornar massivamente imaterial, informacional, subjetiva. Esta força criativa transborda os muros da empresa e se manifesta em todos os domínios da vida. Ela transborda as redes muito estreitas do capital que está lutando, de fato, para disciplinar esse novo modo de criação de riqueza: não podemos disciplinar os cérebros como disciplinamos os corpos. Os capatazes e os cronômetros não são mais suficientes. Para manter e ampliar sua relação de exploração na empresa e mais além dela, o capital responde a essa força criativa coletiva e individual através da flexibilidade, da precariedade e do desemprego.
A luta roça, então, a própria vida humana. O front é múltiplo e diverso. As novas tropas demonstram, cada vez, uma capacidade sempre atualizada para combinar com pertinência o concreto da crítica e a exigência dos princípios. É sem dúvidas por essa razão que cada mobilização setorial, já faz alguns anos, longe de se fechar numa luta de categoria, soube angariar simpatia e apoio majoritário em nosso país — a França. A força de transformação está lá.
Por que continuar impondo a esta força multiforme uma retícula de análise que rotula e que divide? Por que comprimir as pessoas em casos, grupos? Se da leitura de classes da sociedade não nos restar outra coisa que uma sociologia rasa, descritiva, nós deixaremos passar as potencialidades formidáveis de unidade política, no sentido mais nobre do termo, do mundo infinitamente diverso de forças do trabalho e da criação. Mais além das desigualdades e das injustiças gritantes que o sistema defende e alimenta, tudo leva a crer que estamos em vias de viver a superação das classes anunciada por Marx. A luta se apresenta, cada vez mais, como a luta contra uma só classe que aprisiona a humanidade nos limites insuportáveis da mercantilização dos seus valores, sejam eles materiais, culturais, humanos ou éticos. Precisamos estar à altura dessa nova época, aceitar olhar esse mundo com os olhos do futuro e não com os do passado. É por esta razão que, no final do seu percurso, aqueles entre nós que continuam aferrados, custe o que custar, ao projeto de transformar o comunismo se encontram, no melhor dos casos, diante da tarefa de encontrar aquilo que, hipoteticamente, poderia sustentar esse nome daqui para frente.
A política como ciência e consciência
No tríptico mencionado antes, o partido é o sujeito real da política e faz mediação entre a classe e o Estado.
É o que transfigura o social em força de poder. Ele é ciência do social e consciência das forças do social. Mesmo no bolchevismo, ele funciona sob a modalidade da representação. Ele se apoia sobre a ciência contra a ideologia. Disso resulta uma concepção e uma prática pedagógica da política que hoje está em crise e é massivamente rejeitada na medida em que as mobilizações que nós denominamos movimentos sociais evidenciam e vivem uma outra figura do político.
Levar a sério esta situação significa colocar em questão a ambição do socialismo científico, a saber, a de erigir uma política sob a condição de uma ciência. Mesmo que não quiséssemos rejeitá-la, esta postura seria impraticável hoje em dia em decorrência da limitação do próprio saber. Este último ponto me leva a falar de algo que está em vias de encerramento também na ordem do conhecer.
As ciências sociais em face das anomalias
A expiração do conceito de classe não perturbou apenas a política, ela também minou as ciências sociais e particularmente a sociologia.
A sociedade não só não é mais o que foi, senão que ela tampouco pode ser pensada como antes. Para retomar a fórmula de Thomas Khun, as ciências sociais encontram-se confrontadas com uma “anomalia” que convoca com cada vez mais força a um novo paradigma. Se a onipresença da palavra crise, observável já faz alguns anos, sinaliza a presunção de ruptura, é, penso eu, a nova temática da “periferia” (banlieue) que tem, pelo menos na França, definido com mais precisão a perturbação intelectual com a qual todos nós estamos defrontados. As temáticas que hoje emergem — explosão, exclusão, violência social — colocam em questão, em maior ou menor medida, o próprio conceito de sociedade.
O que nós devemos pensar, então, é como o encerramento de um processo propriamente político produziu efeitos pesados sobre a compreensão intelectual da situação atual. Se esta hipótese for correta, então significa que as ciências sociais estão perturbadas pela política enquanto atividade e enquanto subjetividade que, a partir de agora, abandona o estatuto de efeito social que usualmente lhe atribuíamos para ser elevada à condição de determinante intelectual.
Isto também significa que, ao trabalhar sobre a elucidação dos possíveis, sobre a crítica do presente e de todas as teorias da ordem que reforçam o atual estado de coisas nós não estaremos fazendo mais do que prestar um serviço às ciências sociais e humanas, hoje em dificuldades.
Na intersecção da crise conjunta do intelectual e do político: o pensamento de estado
Enquanto esperamos a renovação de um pensamento crítico, ao mesmo tempo intelectual e político, a forma de conhecimento que ocupa o vácuo deixado por esta falta é, em todos os lugares, um pensamento institucional, de Estado, um pensamento da ordem e do ordenamento. Vemos o dano causado no espaço do político e o efeito de “êxodo”, como diria Toni Negri, o efeito de recuo do popular perante uma política oficial cada vez mais estatizada. Podemos medir seus efeitos cada vez mais intensos na intelectualidade, principalmente na sociologia, presa nas redes das problemáticas da exclusão e da inserção, da imigração e da integração, da ordem e da desordem. Este é o registro no qual se desenvolve, há cerca de vinte anos, a temática das periferias. De um lado, um estado com dificuldades para identificar os objetos sociais através de prescrições claras e gerais. De outro, uma reflexão sociológica que substitui o paradigma de uma sociedade compreendida como uma composição de grupos sociais em tensão por outro que pinta o drama da ordem e da desordem, da exclusão e da inserção, do multi-étnico (ou multicultural) e da integração, da violência e da segurança.
A cidade é evocada não mais como uma composição singular do trabalho e da política, no sentido de Weber, mas como figura de uma ordem púbica por ser restaurada. Diga-se de passagem que isso torna muito difícil pensar a cidade tal e como ela se produz hoje em dia.
Prescrição e modernidade: refundar o marxismo?
Tal é o desafio intelectual da modernidade. Atualmente, um amplo acordo pode ser encontrado no tocante à necessária crítica dessas pré-noções contemporâneas que a atividade pública produziu em grande profusão. Em outras palavras, podemos identificar um acordo sobre a importância de questionar toda uma série de categorias e conceitos marcados pela insígnia do Estado e da racionalidade de ordenamento. No entanto, a coisa se complica quando se trata de definir em nome de quê, ou a partir de qual ponto de vista se dará essa crítica.
Duas posturas possíveis me vêm imediatamente à cabeça.
A primeira é a da crítica ideológica de um discurso de Estado. Além de ela ser pouco admissível em termos de rigor epistemológico, ela tem grandes chances de terminar encampada por certos paradigmas cujo perecimento é mais do que certo, ficando impossibilitada de se colocar na posição de desenvolver uma inteligibilidade realmente contemporânea do contemporâneo.
A outra postura, que parece ter algum sucesso, é a da crítica sociológica da dominação simbólica. Esta postura não carece de interesse e já demonstrou sua grande capacidade de produzir uma compreensão do social. Eu, contudo, não posso compartilhá-la por duas razões: a primeira é que, de fato, ela reserva ao sábio o monopólio da verdade. A segunda é que ao focalizar a análise sobre os processos de dominação ela torna difícil a identificação de duas dimensões polêmicas da atividade humana: o trabalho e a política.
Partir dos possíveis. Uma refundação do marxismo?
Onde estamos agora? Pois bem, estamos diante da constatação de que a dupla aposta da revista Société française à época de sua fundação – mudar a política e mudar o olhar sobre o real – era, possivelmente, indivisível. Como mudar a política e refundar uma cultura da transformação radical se continuamos enraizados em ciências sociais cada vez mais marcadas por preocupações com a ordem pública e com a pacificação social e urbana?
Presa das armadilhas de palavras que não são as suas, a política transformadora corre o risco constante de se enredar nos meandros da diversidade social, da inserção, da integração, da prevenção da delinquência, do integrismo laico, de todas as tentações securitárias, etc.
Mas, ao mesmo tempo, em que medida podemos ser os portadores de outro olhar sobre o real, de outra prática intelectual, de outra epistemologia, de outra concepção e geometria da comunidade científica sem inscrever nosso enfoque na pesquisa dos possíveis?
Em suma, se não há política radicalmente transformadora sem a crítica proporcionada pela ciência social, esta última, por sua vez, pode existir sem propósito político?
O próprio Durkheim não havia saudado a contribuição do socialismo para a emergência desse novo pensamento que foi, em sua época, a sociologia? A única diferença era que Durkheim se confrontava com pensamentos fortes e instituídos, facilmente identificáveis: o socialismo, o pensamento industrial fabril e o do Estado Republicano. Este não é exatamente o nosso caso.
E os materiais dessa refundação não são outros senão aqueles que se expressam na prescrição de novos possíveis. Tal prescrição ocorre, de forma mais ou menos audível, na subjetividade popular cultivada em contextos de mobilizações, de trabalho e em todos esses lugares ainda não inventariados onde vicejam novas resistências. É ali — e não em outro lugar — que se encontra a fonte de um pensamento contemporâneo da subversão da ordem existente.
A política como condição do conhecimento
Como afirma Georges Balandier, “a desordem contemporânea está nas cabeças, e não apenas nas situações às quais cada um se encontra confrontado”. Mas talvez seja urgente nos perguntarmos se a ilegibilidade do presente não se originaria das carências da política, se a ciência social não estaria, agora, condicionada pela política e se a aceitação desse condicionamento não constituiria a única forma possível para começar a empreender a “produção democrática do verdadeiro”. É cada vez mais indispensável realizar a política para poder esboçar os contornos do social, para afastar as taxonomias que aprisionam o pensamento no estado dos lugares e da ordem existente — e nos lugares do Estado.
Tarefa impossível, alguém poderia objetar, na ordem atual da política. Tarefa factível, diria eu, se estivermos dispostos a evitar o enclausuramento da política nas velhas armadilhas institucionais; se estivermos dispostos a tomar como nossa política a prescrição subjetiva de possíveis, esse pensamento singular do real que está presente em todas as atividades humanas. Trata-se de nos entregarmos à tarefa intelectual (e militante) de elucidação, formalização e publicização dessa subjetividade, dessa prescrição, desses possíveis.
Pois bem, é neste ponto que agora nos encontramos. Passamos, em vinte anos, da tensão entre política instituída e ciências humanas à necessária reconstrução conjunta – mas sempre em tensão (entre o prescritivo e o cognitivo) – de uma inteligibilidade política e de uma inteligibilidade intelectual da modernidade.
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