Por Nicholas De Genova.
Tradução: Grupo de Estudos em Antropologia Crítica – GEAC
Nossas estratégias e táticas para mudar o mundo exigem uma interpretação que habite intransigentemente junto à nós o estado de exceção no qual vivemos. Nós vivemos no meio dos escombros e os convertemos em atributos de um estilo de vida. Nossa ciência social e nossa historiografia registram e descrevem os resultados. Entretanto, de alguma forma, a urgência do verdadeiro cataclismo parece escapar às nossas ferramentas de pensamento. Isto parece sugerir a necessidade de uma antropologia adequadamente radical, no sentido filosoficamente mais fundamental da palavra.
Para baixar o texto em português, clique aqui.
Material publicado originalmente pela revista Dialectical Anthropology. Ler versão original.
* * *
Confrontados com a prolongada “crise” do sistema capitalista mundial, é-nos instrutivo retornar à incisiva observação de Walter Benjamin a respeito de que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é, na verdade, a regra geral” (1940 [1968:257]). Sob o regime global da acumulação de capital tal como nós o conhecemos, a crise se tornou, verdadeiramente, um estilo de vida (cf. Klein 2007; Loewenstein 2015; Mirowski 2013). De fato, houve uma verdadeira proliferação do assunto “crise” através da totalidade do espectro da vida sócio-política contemporânea (ver, por exemplo, De Genova e Tazzioli 2016). Contudo, a injunção sempre profética de Walter Benjamin – não importa o quanto ela já tenha sido citada – parece passar sempre desapercebida. Nossas tradições analíticas e interpretativas tendem a ser obstinadamente impermeáveis às exigências e aos urgentes mandatos de um inapelável e implacável estado de exceção. Benjamin prossegue: “onde quer que nos defrontemos com qualquer cadeia de eventos, a história aparece como uma única catástrofe que continua empilhando destroços sobre destroços…’’ (1940 [1968:257]). Ao observar estes eventos apenas serialmente (como meros eventos), nós testemunhamos a acumulação singular de tragédias e atrocidades desastrosas e herdamos todas as suas consequências perversas. Nós vivemos em meio aos escombros e os convertemos em atributos de um estilo de vida. Nossa ciência social e nossa historiografia registram e descrevem os resultados. Entretanto, de alguma forma, a urgência do verdadeiro cataclismo parece escapar às nossas ferramentas de pensamento.
Nossas estratégias e táticas para mudar o mundo exigem uma interpretação que habite intransigentemente junto a nós o estado de exceção no qual vivemos, uma análise que nunca recue diante da crise-como-estilo-de-vida e que se recuse a desviar seu olhar crítico dos destroços abomináveis de um mundo caracterizado, tanto agora como nos tempos de Marx, por “uma ininterrupta perturbação de todas as condições sociais, por uma incerteza e agitação duradouras”; um mundo no qual “tudo o que é sólido desmancha no ar” (Marx e Engels 1848 [1967:83]). Nas últimas linhas de A Miséria da Filosofia, Marx evoca, de forma similar, o nexo direto entre luta e ciência, entre combate e crítica:
As armas da crítica certamente não podem substituir a crítica das armas; forças materiais devem ser derrubadas por forças materiais; mas a teoria se torna, também, uma força material uma vez que ela mobiliza as massas (…) uma vez que ela se torna radical. Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas para o homem, a raiz é o próprio homem. (1844 [1970:137]).
Podemos apreciar, portanto, que a irascível impaciência revolucionária do jovem Marx por uma disposição prática adequada ao mundo no qual a exceção é a regra não era menos exigente que sua demanda por uma crítica radical rigorosa, ou seja, uma teoria capaz de realmente apreender a condição humana em si mesma. Isto parece sugerir, em outras palavras, a necessidade de uma antropologia adequadamente radical, no sentido filosoficamente mais fundamental da palavra.
A antropologia, enquanto uma disciplina acadêmica, por outro lado, frequentemente encarou algumas das suas categorias fundacionais mais apreciadas como precisamente opostas a certos conceitos chave que animaram o que poderíamos caracterizar como uma genuína antropologia marxiana. Nesta intervenção, estou particularmente interessado em revisitar algumas categorias clássicas da análise marxiana – “ser genérico”, “trabalho abstrato/força de trabalho”, “mobilidade do trabalho” e a apreciação da escala e da configuração verdadeiramente globais do capitalismo – bem como o conceito menos obviamente marxiano de “vida nua”, proposto por Giorgio Agamben. É evidente que nenhum destes termos encaixa muito bem com as convenções da antropologia sócio-cultural enquanto disciplina acadêmica institucionalizada. Em vez da vida “nua” – uma figura da humanidade genérica, até mesmo vazia – a antropologia tendeu sempre a enfatizar a abundância e a complexidade da vida social e política; em vez do trabalho em abstrato, que nós reconhecemos em sua forma mercantilizada como força de trabalho, a antropologia produziu deliciosos inventários de atividades laborais concretas e do conteúdo “cultural” do trabalho produtivo; contra a transitoriedade e a mutabilidade que caracterizam a mobilidade das vidas, o esforço etnográfico esteve profundamente ligado ao assentamento duradouro, à casa e à comunidade; contrariamente à tarefa de apreender o espaço e a vida social numa escala global, o estudo etnográfico esteve prioritariamente atado ao lugar. Argumentarei que o esforço de repensar estas premissas elementares do empreendimento etnográfico e de situar os conceitos críticos anteriormente mencionados no centro de nossos marcos epistemológicos é uma tarefa crucial para qualquer pesquisa social significativa nos dias de hoje. Nesta perspectiva, o arsenal teórico marxiano é simplesmente indispensável. Mas, como Marx propunha, a teoria só pode se tornar uma força material subversiva na medida em que possa realmente afetar e problematizar a situação humana contemporânea. Em outras palavras, nossa teoria será genuinamente radical apenas na medida em que ela for verdadeiramente “antropológica”. Aqui, é claro, eu não tenho em mente nenhum tipo de exercício narcísico de auto-congratulação disciplinar mórbida. Pelo contrário, estou muito mais inclinado a achar que a disciplina antropológica tal como nós a conhecemos, assim como outras formas de conhecimento disciplinar, seriam incapazes de processar os choques e convulsões deste tipo de saldo teórico e metodológico. De fato, incumbe a nós confrontar aquela inevitável pergunta que os gerentes da antropologia disciplinar costumam fazer com ironia: “isto é propriamente ‘antropológico’”? A convergência de uma pesquisa sócio-política genuinamente crítica (marxiana, dialética) com as técnicas e insights da antropologia pode, contudo, continuar sendo, para nós, o lócus de um problema urgente – uma questão aberta num horizonte igualmente aberto.
Já introduzi a proposição bastante forte de que esses quatro conceitos – vida nua, trabalho abstrato/força de trabalho e espaço global – são de indispensável relevância crítica e interpretativa para qualquer pesquisa social significativa hoje em dia. Seria, portanto, instrutivo considerar por separado cada uma dessas categorias analíticas.
Vida nua: a vida após a morte do ser genérico
Antes, quando eu vinculei os quatro conceitos organizadores deste ensaio com aquilo que designei como o arsenal teórico marxiano, alguns certamente objetaram de imediato que a ideia de vida nua não é certamente uma categoria marxiana em sentido estrito. Pois bem, olhemos um pouco mais de perto.
Em sua mais pura acepção, o conceito de vida nua, tal como elaborado por Giorgio Agamben (1995) é apenas apreensível em contraste com a plenitude das formas nas quais os seres humanos realmente vivem, nomeadamente no marco e através de algum conjunto de relações sociais. Vida nua é, então, a base para todas as formas históricas e socialmente particulares nas quais a vida (“biológica”) humana é qualificada mediante sua inscrição numa ordem sócio-política. Isto quer dizer que vida “nua” ou “desnuda” pode ser entendida como o que permanece quando a existência humana, ainda viva, é no entanto despojada de todos os atributos de localização social e identidade jurídica e, desta forma, destituída de todas as qualificações para a adequada inclusão e pertencimento político (cf. 1999/2002). Neste ponto, a vida nua se parece com um tipo de pura animalidade da espécie humana. Mas, é claro, isto nunca é verdade para a existência humana. O animal humano é inextricavelmente um animal social e esta socialidade é sempre historicamente particular. Vida nua é, então, uma figura impossível da vida genérica específica do animal humano, concebida abstratamente. Agamben é prudente ao não reificar ou essencializar a vida nua. Assim, a vida nua permanece como um significante “vazio”, um “conceito indeterminado” (1995/1998:182). Colocando as coisas de outro modo, vida nua, para Agamben, é uma espécie de ficção política. Contudo, aqui é crucial observar que no relato de Agamben o poder do estado moderno requer e traz à existência esta besta humana fictícia, esta figura desnuda da vida despojada, como uma premissa necessária para a autorização de sua própria soberania. Se Agamben estiver correto então a questão não é ir à caça de exemplares autênticos da vida nua, mas em vez disso, reconhecer esta imagem grotescamente desumanizada e radicalmente desnuda da existência de nossa espécie como o horizonte definitivo em direção ao qual nós somos sempre já implacavelmente empurrados, embora de forma desigual em cada caso particular. Se nós tivermos a tenacidade de postular a humanidade como uma figura unitária e universal de significância política global, e eu creio que deveríamos fazê-lo – ainda que reconheçamos, simultaneamente, que isto pode ser uma espécie de ficção normativa necessária –, então estamos compelidos a encarar a problemática organizada em torno da idéia, também fictícia, de vida nua.
A vida nua, de acordo com Agamben, é literalmente produzida pelo poder soberano: “a produção da vida nua” é “a atividade fundamental do poder soberano”. A vida nua apresenta-se, no entanto, como o “elemento político originário”. Faz-se com que ela apareça, em outras palavras, como algo elementar, rudimentar, primevo, “essencial”, ou seja, “biológico”. Como um “limite de articulação entre vida como natureza e vida humana como cultura”, no entanto, ela deve ser perene e incessantemente proibida ou expurgada da ordem política e jurídica (1995/1998:181). Contudo, este banimento ou abandono da vida nua pelo poder soberano que a exclui de toda a vida política e nega-lhe qualquer validade jurídica, inescapavelmente implica em “uma relação contínua” (183). Num certo sentido, podemos compreender o poder como se legitimando por meio de uma espécie de operação de resgate que recupera a vida humana (propriamente social) deste duplo espectral que reside teimosamente dentro da materialidade física da espécie humana, mas somente fantasmagoricamente, como um modo supostamente “natural” ou “animal” (degradado) de ser humano. A vida nua é para o Estado uma espécie de excesso que o funda, a cifra sombria de um fundamento humano que deve ser minuciosa e rigorosamente domesticado, sobre o qual o edifício do poder soberano pode ser erguido. Tudo que permanece como vida nua torna-se intolerável e deve ser banido. Na verdade, na medida em que é precisamente a regulamentação das relações sociais e identidades pelo poder do Estado que radicalmente separa o fantasma de nossa vida (animal) desnuda das vidas reais (sociais) que nós conduzimos, a vida nua, no relato de Agamben, “expressa nossa sujeição ao poder político”.
Acompanhado de sua proeminência rápida e difusa no recente discurso acadêmico, o conceito de vida nua tem sido degradado, de forma redutora, à mera figura de abjeta “exclusão”. Contudo, a formulação de Agamben é bastante mais sutil, uma vez que gira em torno da “zona de indistinção entre exclusão e inclusão” (181). É precisamente na politização da vida nua, que Agamben descreve como o “limiar” definidor, onde a relação entre o ser (humano) e a ordem sociopolítica é fundamentada e onde, por conseguinte, o poder do Estado soberano pretende inscrever a humanidade dos homens e das mulheres vivos dentro de sua ordem normativa e jurídica (8). Portanto, Agamben postula uma relação francamente predatória entre poder soberano (estado) e vida nua ou desnuda (humana), que é sempre fundada em sua separação mutuamente constitutiva (1996/2000:4;cf. 2003/2005:87).
A vida nua – enquanto reificação de uma noção de vida humana que poderia de alguma forma ser meramente “biológica” – é, para Agamben, precisamente não um dado biológico que antecede ontologicamente o poder soberano, como se estivesse num “estado de natureza”. Pelo contrário, a vida nua é precisamente um “produto da máquina [biopolítica]” (2003/2005: 87-88;). A vida nua, em outras palavras, é para Agamben a degradação da especificidade da vida humana. A vida nua é “o elemento supostamente comum que sempre é possível isolar em cada uma das numerosas formas de vida”. Contra esta tendência, a radicalidade política de Agamben reside em postular o horizonte “de uma vida que nunca pode ser separada de sua forma” (1996/2000: 3). Assim, a análise agambeniana dessa separação constitutiva entre a vida nua e a ordem sociopolítica do poder soberano aspira sempre a problematizar e efetivamente repudiar essa mesma distinção. De fato, politicamente, Agamben procura nada menos que uma vida ”na qual nunca seja possível isolar algo assim como a vida nua, uma vida para a qual o que está em jogo em sua maneira de viver é viver simplesmente”. Agambem evoca uma vida “em que os únicos modos, atos e processos vitais nunca são simplesmente fatos, mas sempre e acima de tudo possibilidades de vida, sempre e acima de tudo poder” (1996/2000: 4). Assim, as proposições de Agamben apontam para “uma vida de poder” (9) predicada sobre um “êxodo irrevogável de qualquer soberania” (8), uma emancipação de qualquer divisão do poder soberano (estado) e da vida nua (”biológica”). Em contraste com a hegemonia da separação entre poder e vida (nua), ele de fato detecta um modo de vida distintamente humano que “não importa o quão costumeiro, repetido e socialmente obrigatório (…) sempre põe a vida em si mesma em jogo”, fazendo dos seres humanos “os únicos seres para os quais a felicidade está sempre em jogo em sua vida”(4), “seres que não podem ser definidos por qualquer operação adequada – ou seja, seres de pura potencialidade que nenhuma identidade ou vocação pode exaurir” (141).
Aqui, eu diria que estamos em presença da concepção marxiana do ser genérico. Recorrendo a este termo, que ele adapta de Feuerbach, Marx, em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, encaminha o problema de teorizar a particularidade da espécie humana. Como Marx observa, “o homem não é apenas um ser natural; ele é um ser natural humano. Ou seja, ele é um ser para ele mesmo. Portanto, ele é uma espécie sendo (…)” (1844 [1964: 182). Além disso, Marx elabora: “O homem é um ser genérico, não só porque na prática e na teoria ele adota o gênero como seu objeto (o seu próprio e o dos outros seres), mas (…) também porque ele trata a si mesmo como uma espécie atual e vivente; porque ele trata a si mesmo como um ser universal e, portanto, um ser livre” (1844 [1964: 112). Apesar de nossas múltiplas diferenças, portanto, e em quaisquer termos que possamos adotar para fazê-lo, nós colocamos universalmente nossa própria generalidade – colocamos nossas próprias especificidades sempre como englobadas pela inclusividade universal da espécie humana. Nós podemos apreciar mais claramente o sentido que Marx atribui ao ser genérico quando ele diz: “Todo o caráter de uma espécie – seu caráter genérico – está contido no caráter de sua atividade vital; e a atividade livre, consciente é o caráter específico do homem”. O que constituiu exatamente a particular atividade vital da espécie humana? “O trabalho, a atividade vital, a vida produtiva em si mesma (…) é a vida da espécie. É vida que engendra vida” (113).
Assim, é a capacidade criadora e o poder produtivo que distinguem um tipo de vocação existencial da nossa espécie. Em sua generalidade e abertura, esse potencial não é redutível a nenhuma particularidade. Ou, como diz Agamben, tal predisposição existencial é precisamente uma “potencialidade pura que nenhuma identidade ou vocação pode, possivelmente, exaurir”. Marx continua: “é só porque o homem é um ser genérico que ele é um ser consciente, isto é, que sua própria vida é um objeto para ele” (113). A atividade vital livre (não obrigatória e não predeterminada), consciente (intencional), pela qual os seres humanos materialmente e praticamente (re) produzem a vida da espécie como tal, é, então, para lembrar a frase de Agamben, um contínuo colocar em jogo a própria vida em si mesma; é, também, um colocar em jogo da “felicidade” ou da satisfação como objetivos conscientes e objetivos dessa vida.
O que Agamben descreve como a “potencialidade pura” que distingue a vida humana pode ser inferido diretamente do que Marx distingue como a especificidade do humano, que ele designa como sendo ser genérico. E está em justaposição com esta figura dos projetos sempre constitutivamente incompletos, de inesgotáveis possibilidades, que Agamben discerne da figura espectral da vida nua. A vida nua é o negativo, a imagem invertida do ser genérico. Operando como uma generalização degradada (meramente “natural”/”animal”) da vida da humana, a vida nua, no entanto, serve como um tipo de limite universal da espécie sobre as inúmeras e heterogêneas particularidades orquestradas ou impostas pelo poder soberano em suas múltiplas regulamentações jurídicas e normativas da vida social. Em outras palavras, embora seja uma figura negativa e vazia, vida nua, no entanto recapitula uma espécie de universalidade humana.
Podemos apreciar novamente a perspectiva de Marx se situarmos suas reflexões sobre o ser genérico em relação direta com suas reflexões críticas sobre a noção de “natureza humana” e a relação entre a suposta “essência” humana e a natureza. Na sexta das suas Teses sobre Feuerbach, Marx repudia de modo memorável a noção de “natureza humana” (que “só pode ser compreendida como gênero”, como uma muda generalidade que naturalmente une os muitos indivíduos). Em contraste, ele argumenta que “a essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais” (1846 [1970: 122]). Assim, Marx descarta de forma concisa a peça filosófica central da ideologia burguesa em favor da proposição de que o que quer que seja caracterizado como “natureza humana” é radicalmente contingente e nos remete sempre à materialidade e praticidade das relações sociais na medida em que são configuradas formações sociais historicamente específicas, “formas particulares da sociedade” (sétima tese; p. 122). No entanto, nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, Marx aborda a questão de forma um pouco diferente e de uma maneira que é reveladora para os nossos propósitos de avaliar a vida nua como uma espécie de “natural” a-social (ou “biológico”) da espécie humana. Em sua crítica à dialética hegeliana no último manuscrito, Marx está enfaticamente interessado na questão da chamada “natureza humana” do ponto de vista da re-localização da figura do humano dentro da natureza. Rejeitando a presunção filosófica idealista que trata o humano como “um ser espiritual não-objetivo” (1844 [1964: 178;), Marx está expressamente preocupado com o humano como um ser natural (orgânico, material, objetivo) e, portanto, como “parte da natureza” (112). Como diz Marx, a figura filosófica “homem” deve ser entendida como nada além da “natureza humana – natureza na sua forma especificamente humana; homem real, corpóreo, homem com os pés firmemente sobre o chão firme, o homem exalando e inalando todas as forças da natureza (…) no fundo ele é a natureza” (180). Como ser vivo objetivo e natural, o ser humano, conseqüentemente, existe numa relação metabólica constante com a natureza externa (objetiva): “o homem vive na natureza – significa que a natureza é seu corpo, com o qual ele deve permanecer em intercâmbio contínuo se não quiser morrer “(112).
No relato de Marx, é precisamente através do trabalho prático que os seres se engajam com o mundo objetivo, externo e, portanto, materialmente objetivam as energias criativas humanas das quais a espécie de auto-consciência da vida humana é feita possível. “Dizer que o homem é um ser objetivo corpóreo, vivo, real, sensível, cheio de vigor natural é dizer que ele tem objetos reais e sensitivos como objetos de seu ser ou da sua vida”(181). Ser um ser objetivo e, necessariamente, ser o objeto de forças externas, é também tomar o mundo (externo) natural como o objeto de sua atividade. “O objeto do trabalho é (…) a objetivação da vida da espécie humana: pois ele se duplica (…) na realidade, e portanto ele se contempla em um mundo que criou”. A realização objetiva da atividade produtiva humana, portanto, manifesta a “vida da espécie” como “a objetividade real [do homem] como membro da espécie” (114). Desta forma, o conceito de espécie para Marx é inseparável de uma apreciação da objetividade material e prática do humano dentro da natureza e como a natureza, mas, no entanto, constantemente agindo (subjetivamente) na natureza externa, num processo de auto-objetivação mutuamente constitutivo.
Para Marx, que rejeita o que ele considera o “materialismo passivo” (ou “contemplativo”) de Feuerbach (1846), essa relação entre o humano e a natureza externa se manifesta sempre como atividade dinâmica, intencional, criativa (subjetiva) – trabalho – que é transformadora dessas circunstâncias externas e efetivamente re-faz esse mesmo mundo “natural”, de forma que a natureza se torna completamente humanizada. De fato, Marx sugere que os seres da espécie humana consistem numa universalidade que se envolve praticamente na esfera da natureza inorgânica “que o ser humano apropria” (não simplesmente como meio de subsistência, mas como o objeto material de nossa atividade, de atividade vital definidora), de modo que a “a natureza é o corpo inorgânico do homem” (1844 [1964]: 112;). “Ao criar um mundo de objetos por sua atividade prática, em seu trabalho sobre a natureza, o homem dá provas de ser genérico consciente (…) o homem reproduz a totalidade da natureza”(113). Neste sentido, toda a vida social assume a forma de uma “segunda natureza” e de fato engloba o mundo natural ostensivo. Como Marx declara, “a natureza (…) tomada abstratamente, para si mesma – natureza isolada do homem – não é nada para o homem” (1844 [1964: 191]). E ainda: “A natureza como natureza (…) a natureza isolada (…) não é nada (…) está destituída de sentido” (192). Em A ideologia alemã, Marx e Engels revisitam este ponto em polêmica com o materialismo de Feuerbach:
Tanto é essa atividade, esse trabalho de criação, de produção, a base de todo o mundo sensível tal como existe agora que se ela fosse interrompida por apenas um ano, Feuerbach não só se depararia com uma mudança no mundo natural, mas logo descobriria que a totalidade do mundo dos homens e sua própria faculdade perceptiva, sua própria existência, estariam perdidas. Claro, em tudo isso a prioridade da natureza externa [para a consciência humana] permanece desassociada (…) mas esta diferenciação tem significado apenas na medida em que o homem é considerado distinto da natureza. No concernente ao termo que nos ocupa, a natureza, a natureza que precedeu a história humana, é (…) a natureza que já não existe em qualquer lugar (…) (1846 [970: 63]).
Assim, a “história – isto é, a história da vida social humana – é a verdadeira história do homem”(1844 [1970: 182]), e esta história é apenas a sucessão de modos de produção da vida material, que implicam “forma (s) definida (s) de atividade” e uma “forma definida de expressar … a vida” (Marx e Engels, 1846 [1970: 42]).
Deve estar claro agora que algo como a natureza humana é, para Marx, completamente maleável e mutável. A “essência” humana não é nem mais nem menos do que a sua socialidade essencial, que é ela própria inseparável da sua atividade intencional, seus múltiplos trabalhos. A suposta “essência” da humanidade emerge, portanto, como manifestação historicamente específica e radicalmente contingente de diferentes modos de atividade produtiva: “os indivíduos são como expressam suas vidas. O que eles são, portanto, coincide com a sua produção, tanto com o que produzem quanto com como eles produzem [e] (…) depende das condições materiais que determinam sua produção” (Marx e Engels 1846 [1970]: 42). A atividade produtiva “é a base real do que os filósofos conceberam como ‘substância’ e ‘essência do homem'”. Naquelas concepções idealistas da história, que denigrem a atividade produtiva, Marx e Engels argumentam que “o verdadeiramente histórico aparece separado da atividade ordinária”: “a relação do homem com a natureza é excluída da história e, portanto, a antítese entre natureza e história é criada” (1846 [1970: 59]). Marx reconfirma este ponto de vista no primeiro tomo do Capital:
Através de suas próprias ações o homem media, regula e controla o metabolismo entre si e a natureza (…) como uma força da natureza (…) através deste movimento, ele age sobre a natureza externa e a transforma e deste modo simultaneamente muda sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades adormecidas na natureza e sujeita o jogo de suas forças ao seu próprio poder soberano (1867/1976: 283)
Assim, o puro poder produtivo e a capacidade criadora da vida humana, a pura potencialidade de nossas forças vitais é para Marx a manifestação de um tipo de limiar – para revisitar a frase de Agamben –, um “limite de articulação entre a vida humana como natureza e a vida humana como cultura “(1995/1998: 181). Notavelmente, para Marx, este limiar está constantemente sendo atravessado, passando pela prática da atividade intencional, que medeia o “metabolismo” entre a espécie humana e a natureza.
O que figura para Marx como trabalho – em seu sentido ontológico, trans-histórico – é a expressão prática das espécies e é precisamente isso que vem a ser alienado e estranhado no marco das relações sociais capitalistas (1844 [1964: 106-19]). Da mesma forma, a “potencialidade pura” que não é redutível a nenhuma operação particular, identidade ou vocação. O que Agamben identifica como a especificidade do humano pode ser entendido como a positividade que vem a ser banida pelo poder estatal soberano sob a forma da vida nua. Assim, a vida nua é ativada como o negativo da sempre aberta universalidade da espécie humana, em contraposição e implacável separação diante de quaisquer identidades particulares juridicamente inscritas. Com efeito, quando Agamben descreve a separação entre vida social e vida “natural”/”biológica”/”animal” da espécie humana, ele está descrevendo uma condição de estranhamento político-jurídico. A vida nua é a figura que opera como uma condensação dessa relação de alienação claramente política. Sendo assim, ela poderia ser o complemento especificamente político da análise de Marx do trabalho alienado ou estranhado.
Assim como nós não poderíamos compreender a vida humana dentro do regime global do capital sem recorrer ao relato de Marx sobre a alienação do trabalho, o conceito de vida nua oferece uma contrapartida indispensável para abordar a alienação política do potencial e do poder criativo humanos. A vida nua evoca, ainda que de forma estranhada e degradada, um espectro da universalidade da vida da espécie humana. Além disso, a concepção de vida nua de Agamben remete ao assombroso relato de Hannah Arendt a respeito do refugiado apátrida que emerge como o horrível “exemplar de uma espécie animal chamada homem” – um “ser humano em geral (…) sem cidadania” (1951/1968: 302) que representa e encarna a “nudez abstrata de ser humano e nada além do humano” (297). Parafraseando Benjamin, então, podemos dizer que a tradição dos refugiados nos ensina que o estado de exceção não é uma exceção, mas sim a regra. A expulsão de refugiados do recinto de cidadania em uma condição de exposição violenta como humanidade nua e despojada também revela o ato originário do canibalismo do estado, que instaura a vida nua somente para domesticá-la. Assim, o reaparecimento da figura da vida nua no espetáculo da miséria dos refugiados instiga crises repetitivas de poder soberano que só podem ser remediadas por sua reinscrição e sujeição dentro de uma ordem jurídica e normativa global. A vida nua, portanto, funciona como um ponto de inflamação, um alarme; trata-se de um conceito crítico que pode ser adequado e necessário para as tarefas da teoria social verdadeiramente radical. A abstração da vida humana como uma nudez ou como uma humanidade nua agora nos remete diretamente a uma figura decisiva na análise de Marx que é a abstração do trabalho humano e sua objetivação e mercantilização como força de trabalho.
Força de trabalho, a “terceira coisa”: a objetividade fantasmática do trabalho abstrato
Paralelamente a todas as particularidades e diferenças qualitativas dos vários tipos de trabalho concreto, Marx discerniu a operação de uma figura do trabalho humano em abstrato. Na verdade, não seria exagero argumentar que a categoria analítica de trabalho abstrato é a verdadeira chave para destravar toda a questão do valor e, assim, fornecer uma característica teórica absolutamente decisiva e fundacional na crítica marxiana das relações sociais capitalistas. O valor de troca das mercadorias permanece incompreensível se não for mensurável através de um “elemento comum”, “uma terceira coisa”, à qual todas as mercadorias são redutíveis (1867 [1976: 127]). Isso requer a abstração dos respectivos valores de uso particulares (qualitativos) em favor de algo que eles compartilham e que difere apenas de uma forma puramente quantitativa. Como Marx explica:
Com o desaparecimento do caráter útil dos produtos do trabalho, o caráter útil dos tipos de trabalho incorporados neles também desaparece; isto, por sua vez, implica o desaparecimento das diferentes formas concretas de trabalho. Elas não podem mais ser distinguidas, mas são todas juntas reduzidas ao mesmo tipo de trabalho, trabalho humano abstrato (…) Não resta mais nada delas, apenas a mesma objetividade fantasmática; elas são simples quantidades de trabalho humano homogêneo congeladas, isto é, de força de trabalho humana (…) Como cristais desta substância social, que é comum a todos elas, são valores-mercadorias (128).
Enquanto Marx afiliava o trabalho concreto (variado) com o valor de uso dos distintos produtos desse trabalho e, portanto, com toda a panóplia heterogênea de especificidades positivas, determinadas, qualitativas – em suma, com a diferença como tal, e portanto, com as características histórica, social e culturalmente específicas da vida humana que os antropólogos tendem a privilegiar –, foi a exigência sistêmica da forma genérica do trabalho abstrato que elucidou o caráter específico, mas global, da alienação, da exploração e do fetichismo capitalistas. A força de trabalho é a elusiva “substância social”, a abstração determinante ou real que constitui “a objetividade das mercadorias como valores” (138), abastecendo todos os produtos multifacetados de diversas capacidades criativas e poderes produtivos com identidade e igualdade, diferenciados para fins de intercâmbio apenas em termos quantitativos.
A análise de Marx de uma abstração efetivamente universal das energias produtivas humanas dentro da relação capital-trabalho nos convida a contemplar uma figura central em qualquer antropologia concebível de nossa condição global, a saber: a objetivação alienante da atividade vital humana como trabalho abstrato e sua mercantilização como força de trabalho. Precisamente porque o trabalho abstrato assume a forma de algo genérico e homogeneizado, ele pode facilmente tender a cair fora do âmbito da pesquisa antropológica convencional. Precisamente porque sua pertinência penetrante assume a forma de uma “objetividade fantasmática”, podemos ser induzidos a tomar por dada sua verdade e relevância objetivas. Entretanto, cair nessa armadilha familiar de ignorar o que parece ser ubíquo e mundano equivale, de fato, a negligenciar exatamente o que a investigação etnográfica sempre procurou revelar – concretamente, as formas organizadoras da vida social que são evidentes nas texturas da vida cotidiana.
Confrontar a verdadeira determinidade da abstração no nosso cotidiano vivido é olhar para o abismo onde estamos esvaziados de tudo o que é particular, corpóreo, sensível e qualitativo. A força de trabalho, como reificação ubíqua e pragmática do fato de nossa abstração, é o tipo de conceito crítico que nos confronta com a crise de nossas energias criativas que são pulverizadas, de forma rotineira e incessante, sob uma sombra genérica, trocando prosaicamente nossa vitalidade pela objetividade “insensível do pagamento em dinheiro” (Marx e Engels 1848 1967: 82). A importância da força de trabalho – a pura capacidade de trabalho, pura potencialidade, agora mercantilizada à venda no mercado – se apresenta de forma especialmente atraente, além disso, quando enfrentamos o problema da mobilidade humana.
Mobilidade e as “cadeias radicais” do trabalho migrante
Como verdadeira fonte de todo o valor, é lícito dizer que a força de trabalho é a principal mercadoria no circuito global da troca capitalista. O capital faz e refaz, de forma implacável, o mundo à sua própria imagem e de acordo com as suas exigências caóticas, estourando todas as barreiras aparentes na criação de uma arena global cada vez mais desobstruída para a obtenção de lucros e a reconsolidação contínua de uma divisão global do trabalho. Neste cenário, o incremento na mobilidade da mão-de-obra é inevitável. Mas numa ordem social mundial que delega as tarefas expressamente políticas de subordinação e coerção a formações localizadas de violência mais ou menos organizada, cujos parâmetros são demarcados por fronteiras “nacionais”, o movimento global de trabalho abstrato e homogeneizado é finalmente assimilado na incessante vida e morte de um tipo um pouco mais “concreto” de trabalho – ou seja, trabalhadores e trabalhadoras migrantes. O capital nunca pode extrair do trabalho a substância abstrata (eminentemente social) que é o “valor”, exceto recorrendo à abstração da força de trabalho, que, no entanto, só pode ser derivada das energias vitais palpáveis do trabalho vivo. Como categoria operatória e certamente decisiva da acumulação de capital, a força de trabalho nunca deixa de pertencer a pessoas trabalhadoras de carne e osso. A mobilidade acelerada da mão-de-obra, portanto, é inseparável da migração de seres humanos reais. Como ocorre com a mobilidade do próprio capital, que expressa uma pronunciada indiferença em relação às formas particulares do processo de trabalho que são investidas em favor de uma maximização da mais-valia, sendo nesse sentido extretamente versátil, assim também ocorre com a mobilidade humana para o trabalho. A mobilidade dos trabalhadores migrantes é um exemplo supremo de flexibilidade. Eles são obrigados a considerar o conteúdo particular de um ou outro tipo de trabalho com indiferença relativa e agenciar sua força de trabalho onde quer que seja necessário. A inclinação para superar quaisquer “impedimentos jurídicos [ou outros] extra-econômicos à esta liberdade de movimento” é outro aspecto dessa versatilidade (Marx 1867 [1976:1013]).
No êxodo em massa dos irlandeses que fugiam da fome da batata de 1846, Marx reconheceu o que ele caracterizou como “um processo sistemático” que serviu, na verdade, como “um dos ramos mais lucrativos do comércio de exportação [da Irlanda]” – exportando a força de trabalho da sua população ao passo que mobilizava os próprios migrantes como fonte de remessas que não só subsidiaram os que ficaram para trás, mas alimentaram ainda mais a migração, financiando os custos de viagem das gerações subsequentes de migrantes (1867 [1976: 862]). Com relação aos Estados Unidos, Marx discerniu, tendo em vista a migração irlandesa, uma importação concomitante – “a importação de indigentes” (939). Representando a Irlanda colonial em termos de “um governo (…) mantido apenas por baionetas e por um estado de sítio às vezes aberto e às vezes disfarçado” (863), Marx também discerniu como a “imigração forçada de irlandeses pobres” para as cidades industriais da Inglaterra permitiu que a classe capitalista cultivasse “dois campos hostis” definidos pelo “profundo antagonismo entre o proletariado irlandês e inglês”, razão pela qual “o trabalhador inglês médio odeia o trabalhador irlandês … [e] considera-o um pouco como os pobres brancos dos estados do sul da América do Norte consideram seus escravos negros” (1870 [1971: 254]). Em particular, a abstração homogeneizada da força de trabalho só pode ser gerada sob a égide da produção social de heterogeneidades e desigualdades reais, o que W.E.B Du Bois chamou “o problema da linha de cor” (1900: 95, parágrafo 2; e 104, parágrafo 19; Cf. 1903), ou o que Partha Chatterjee designou como “a regra da diferença colonial “(1993), bem como o que Carole Pateman identifica como o “contrato sexual” (1988) e assim por diante. Daí que a política de classe global da mobilidade humana, que transpõe rotineiramente uma relação transnacional de capital e trabalho para a política “nacional” ostensivamente insular de “imigração” e policiamento das fronteiras, implica a consolidação do que Etienne Balibar (entre outros) descreve como “um apartheid mundial”, que institui um “gradiente de cores” que agora não se limita a separar o chamado “centro” da “periferia”, ou o norte do sul, mas que efetivamente atravessa todas as formações estatais “nacionais” (1993/2002: 82; Cf. Nevins 2008; Richmond 1994; Sharma 2006).
Na medida em que as dificuldades do trabalho migrante invocam as analogias da escravidão e do apartheid, é apropriado lembrar a identificação que Marx fez do proletariado incipiente como “uma classe com cadeias radicais”. Aqui, de fato, havia uma classe despojada de propriedade, sem posição na sociedade civil, sem direitos históricos e sem reivindicações particulares, que não incorporava uma antítese unilateral e auto-interessada das condições modernas, mas antes uma completa antítese das próprias premissas do capitalismo e do Estado moderno. Tratava-se, então, de uma classe que não era um estamento com uma posição positiva dentro da ordem social, mas sim uma que foi constituída apenas negativamente, como presença abjeta e “estranha”, mas inextricável, inerentemente corrosiva e sempre potencialmente subversiva. Esta classe revelou, por si só, “um caráter universal” e, portanto, pôde invocar “apenas uma condição humana” (1844 [1970: 141]). Em muitos aspectos, a mobilidade transnacional do trabalho migrante no âmbito do regime de acumulação de capital satisfaz exaustivamente este perfil (De Genova 2010). Com efeito, na medida em que o trabalho migrante confronta os estados “nacionais” territorialmente definidos com a força bruta e as energias da vida humana – como força de trabalho – sem sanção jurídica, podemos reconhecer a figura da vida nua, a contrapartida negativa e abjeta da universalidade humana e da pura potencialidade que o poder soberano só pode procurar banir.
Aqui, de fato, nas figurações heterogêneas da mobilidade humana em escala global, podemos reconhecer a violenta arregimentação de nossa relação como espécie no espaço do planeta. Acima de tudo, na condição de inúmeros habitantes migrantes cuja mobilidade é “não autorizada” e “ilegal”, podemos discernir novamente a nossa própria espécie de vida, “espécie de gênios que animam as forças materiais no poder político”: “não somos nada e deveríamos ser tudo” (Marx, 1844 [1970: 140]). Aqui, então, chegamos – em meio à proliferação incessante de trajetórias de migrantes – num espaço global de mobilidades que excede e ultrapassa os conceitos epistemológicos e práticos de qualquer nacionalismo.
Espaço global: a vida humana e o espaço do planeta
Para Marx, o capitalismo nunca foi apreensível como uma formação social europeia que se estendeu para o exterior, do centro para suas periferias distantes. Em vez disso, Marx estabelece, repetidas vezes, que se deve entender o capital como sendo global desde o início. Numa das articulações mais fortes dessa perspectiva, em sua discussão sobre “a chamada acumulação primitiva” no primeiro tomo de O Capital, Marx declara o seguinte:
A descoberta do ouro e da prata na América, a extirpação, a escravização e enterramento em minas da população indígena desse continente, o começo da conquista e do saque da Índia e da conversão da África em uma reserva para a caça comercial de peles negras são todas as coisas que caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses procedimentos idílicos são os principais momentos da acumulação primitiva. Segue-se-lhes de perto a guerra comercial das nações europeias, que tem o globo como seu campo de batalha (1867 [1976: 915]).
Contrariamente, portanto, aos relatos domiantes dos primórdios do mundo moderno, que localizariam a América, a Índia e a África nas supostas “periferias” de uma potência europeia expansiva em sua “era de descobrimentos”, Marx identifica a escravidão, o colonialismo e a guerra como verdadeiras pré-condições para a possibilidade de acumulação de capital. Portanto, o capitalismo e uma ordem sociopolítica global da supremacia branca eram mutuamente constitutivos. É apenas com a consolidação do “mercado mundial datado do século XVI” que “a história moderna do capital começa a se desenrolar” (247). De fato, o espaço global do mercado mundial capitalista precedeu em vários séculos a grande maioria dos estados-nação. Assim, não podemos ambicionar a qualquer tipo de análise significativa ou válida do mundo moderno sem recorrer à categoria de espaço global como um contraponto estrito à imaginação geopolítica dominante, que permanece aprisionada dentro dos pressupostos do nacionalismo metodológico. Isto, naturalmente, não implica que os espaços do estado-nação e suas fronteiras cada vez mais militarizadas devam ser imaginados como algo de pouca incidência. Em vez disso, trata-se de afirmar que o espaço global de acumulação de capital é precisamente o que Arendt chamou de “labirinto de arame farpado” (1951/1968: 292), profundamente marcado com os sulcos e trincheiras que permanecem como legados do colonialismo e que são convulsivamente crivados com a proliferação heterogênea de fronteiras sempre porosas (Balibar 1993/2002, Mezzadra e Neilson 2013, Walters 2006, 2011; cf. Harvey 1975/2001; 2000: 53-72). De fato, “sem a função de configuração do mundo que elas executam”, esclarece Balibar, “não haveria fronteiras – ou não haveria fronteiras duradouras” (1993 [2002: 79]).
Além de retomar eventos históricos que confirmam o alcance planetário do capital, é também crucial ver como a generalização das relações de intercâmbio de mercadorias, que gera as condições para um verdadeiro mercado mundial, estabelece uma condição social humana efetivamente universal que, no entanto, assume uma forma alienada. Ou seja, articula relações pessoais abstratas, aparentemente independentes, mutuamente indiferentes com o fato consumado da interdependência social objetiva. Portanto, o capitalismo introduz pela primeira vez “um sistema de metabolismo social geral, de relações universais , de necessidades gerais e de capacidades universais”. No entanto, “a dependência total dos produtores uns dos outros” está unida “com o total isolamento de seus interesses particulares”(1858 [1973: 158]). Nas palavras de Marx: “assim como a divisão do trabalho cria aglomeração, combinação, cooperação [etc.] (…) o intercâmbio privado cria o comércio mundial, a independência privada cria uma total dependência do assim chamado mercado mundial” (159). Assim, a universalidade da “produção baseada em valores de troca (…) produz não apenas a alienação do indivíduo de si mesmo e dos outros, mas também a universalidade e a abrangência de suas relações e capacidades” (162). Aqui, então, voltamos ao tema da universalidade com o qual Marx está centralmente preocupado em sua discussão sobre o ser genérico. A materialidade e a objetividade da interdependência global são vivenciadas dentro do capitalismo apenas como atomização (privação) e estranhamento. Isto, no entanto, é consequência material do modo de produção e do modo de vida capitalistas. É neles que a espécie humana atinge uma interconectividade e uma interdependência universais sem precedentes, e portanto, passa a habitar um espaço verdadeiramente planetário. Portanto, escondido dentro do modo existente de trabalho alienado e vida alienada, incubado dentro da “sociedade como ela é”, afirma Marx, podemos discernir parte das “condições materias (…) que são pré-requisito para uma sociedade sem classes” (159).
Rumo a uma antropologia marxiana?
Sugeri, no início deste ensaio, que a convergência entre uma genuína investigação sociopolítica crítica e as técnicas e os insights da antropologia permanecem, para nós, como o lócus de um problema urgente – uma questão aberta num horizonte aberto. Espero ter estabelecido que tal horizonte só pode ser adequadamente configurado numa escala planetária, num espaço global de mobilidades, onde o trabalho humano alienado abstrato e sua expressão prática enquanto força de trabalho manifesta todavia todas as potencialidades de nossas energias vitais coletivas, de nossas capacidades criativas e poderes produtivos como espécie. Em que medida poderemos prevalecer sobre o poder soberano do Estado e do capital e, finalmente, conseguir habitar nossa universalidade humana como algo mais do que a mera vida nua continua a ser o desafio decisivo e a tarefa definitiva. Eis o estado de exceção em que vivemos. Mas todas estas questões são propriamente “antropológicas”? O são somente na medida em que a antropologia puder ainda pretender abordar o problema do humano enquanto tal.
Referências bibliográficas
Agamben, Giorgio. 1995/1998. Homo sacer: Sovereign power and bare life. Stanford, CA: Stanford University Press.
Agamben, Giorgio. 1996/2000. Means without end: Notes on politics. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Agamben, Giorgio. 1999/2002. Remnants of Auschwitz: The witness and the archive. New York: Zone Books.
Agamben, Giorgio. 2003/2005. State of exception. Chicago: University of Chicago Press.
Arendt, Hannah. 1951/1968. The origins of totalitarianism. New York: Harvest/Harcourt.
Balibar, E´tienne. 1993/2002. ‘‘What is a border?’’ Pp. 75–86 in Politics and the other scene. New York, 2002: Verso.
Benjamin, Walter. 1921[1979]. ‘‘Critique of violence.’’ Pp. 132–54 in One-way street, and other writings. London/New York: New Left Books.
Benjamin, Walter. 1940[1968]. ‘‘Theses on the philosophy of history.’’ Pp. 253–64 in Illuminations: Essays and reflections. New York: Schocken Books.
Chatterjee, Partha. 1993. The nation and its fragments: Colonial and postcolonial histories. Princeton, NJ: Princeton University Press.
De Genova, Nicholas. 2010. ‘‘The deportation regime: Sovereignty, space, and the freedom of movement’’. Theoretical overview. In: The deportation regime: Sovereignty, space, and the freedom of movement, ed. Nicholas De Genova, and Nathalie Peutz, 33–65. Durham, NC: Duke University Press.
De Genova, Nicholas, and Martina Tazzioli (eds.). 2016. ‘‘Europe/Crisis: New keywords of ‘the Crisis’ in and of ‘Europe’’’. Near Futures Online. New York: Zone Books.
Du Bois, W. E. B. 1900. The present outlook for the dark races of mankind. A.M.E. Church Review 17(2(66)): 95–110.
Du Bois, W. E. B. 1903[1982]. The souls of black folk. New York: Signet/Penguin.
Harvey, David. 1975/2001. ‘‘The geography of capitalist accumulation: A reconstruction of the Marxian theory.’’ Pp. 237–66 in Spaces of capital: Towards a critical geography. New York: Routledge.
Harvey, David. 2000. Spaces of hope. Berkeley: University of California Press.
Klein, Naomi. 2007. The shock doctrine: The rise of disaster capitalism. New York: Penguin. Loewenstein, Antony. 2015. Disaster capitalism: Making a killing out of catastrophe. New York, London: Verso.
Marx, Karl. 1844[1964]. Economic and philosophic manuscripts of 1844. New York: International Publishers.
Marx, Karl. 1844[1970]. ‘‘Introduction to a contribution to the critique of Hegel’s ‘Philosophy of right’.’’ Pp. 129–42 in Critique of Hegel’s ‘‘Philosophy of right’’. New York: Cambridge University Press.
Marx, Karl. 1846[1970]. ‘‘Theses on Feuerbach.’’ Pp. 121–23 in Karl Marx and Friedrich Engels, The German ideology, part one (with selections from parts two and three and supplementary texts). New York: International Publishers.
Marx, Karl 1847[1963] The poverty of philosophy. New York: International Publishers.
Marx, Karl. 1858[1973]. Grundrisse: Foundations of the critique of political economy. New York: Vintage/Random House.
Marx, Karl. 1867[1976]. Capital: A critique of political economy, volume one. New York: Vintage/Random House.
Marx, Karl. 1870[1971]. ‘‘From confidential communication.’’ Pp. 252–55 in Karl Marx and Friedrich Engels, Ireland and the Irish question. Moscow: Progress Publishers.
Marx, Karl and Friedrich Engels. 1846[1970]. The German ideology, part one (with selections from parts two and three and supplementary texts). New York: International Publishers. Marx, Karl and Friedrich Engels. 1848[1967]. The communist manifesto. New York: Penguin Books.
Mezzadra, Sandro and Brett Neilson. 2013. Border as method, or, the multiplication of labor. Durham, NC: Duke University Press.
Mirowski, Philip. 2013. Never let a serious crisis go to waste: How neoliberalism survived the financial meltdown. New York, London: Verso.
Nevins, Joseph. 2008. Dying to live: A story of U.S. immigration in an age of global apartheid. San Francisco: Open Media/City Lights Books.
Pateman, Carole. 1988. The sexual contract. Stanford, CA: Stanford University Press.
Richmond, Anthony. 1994. Global apartheid: Refugees, racism, and the new world order. Toronto: Oxford University Press.
Sharma, Nandita. 2006. Home economics: Nationalism and the making of ‘‘migrant workers’’ in Canada. Toronto: University of Toronto Press.
Walters, William. 2006. Border/control. European Journal of Social Theory 9(2): 187–203.
Walters, William. 2011. Rezoning the global: Technological zones, technological work and the (Un-) making of biometric borders. In The contested politics of mobility: Borderzones and irregularity, ed. Vicki Squire, 51–73. London, New York: Routledge.
0 comments on “Rumo a uma antropologia marxiana? A nudez da vida, a abstração, a mobilidade, o global”