Alex Martins Moraes – Grupo de Estudos em Antropologia Crítica
Desde o primeiro momento das manifestações de rua em Porto Alegre, diversos companheiros se ocuparam em defender publicamente sua legitimidade e em desencadear certas disputas ideológicas no interior da mobilização coletiva. Passaram alguns meses e agora estamos defrontados com o maior ciclo de protestos populares no Brasil desde 1992 – quando Fernando Collor sofreu impeachment. Este fato nos coloca diante de novas exigências e inquietações, que foram sintetizadas há pouco tempo pelo amigo Alexandre Peres Lima: “os eventos recentes são enorme desafio cognitivo. Essa máquina-de-guerra, é absurdamente desafiadora. Não há espaço para a simplicidade, para a redução para generalidade. O complexo toma conta. Não consigo parar de pensar nas possibilidades, nas conexões, analogias, posicionamentos, cálculos”. É inegável que os protestos nacionais chegaram, rapidamente, a um “momento crítico” que obriga todos nós, que nos sentimos identificados com muitas da demandas levantadas pelas ruas, a refletir sobre as possibilidades dessa “máquina de guerra” ativada em diversos pontos do país. Conhecendo pelo menos alguns aspectos da enorme composição de forças que ocupa as avenidas de nossas cidades, tenho certeza que os encaminhamentos reflexivos apresentados na sequência repercutem ânimos e perspectivas amplamente compartilhados. Dividi o argumento em tópicos para manter certa precisão temática no meio dessa chuva de informações e variáveis que se adensa a cada dia.
Elucidação política e possibilidade transformadora
Não é verdade, como afirmam constantemente diversas matérias jornalísticas, que “os protestos” exprimem propósitos pouco claros. Daí a importância de abandonar certa perspectiva “difusionista” segundo a qual a nacionalização das lutas é fenômeno secundário do levante perpetrado pelo Movimento Passe Livre em São Paulo. Um conjunto de consignas hoje visíveis nas ruas de todo o Brasil vêm sendo maturadas em nível local há vários meses, ou seja, elas refletem a experimentação local das contradições do desenvolvimentismo, da democracia “controlada” e do sistema político-partidário por parte de diferentes grupos sociais urbanos. Tais contradições foram aprofundadas com a posta em marcha, nas grandes cidades brasileiras, das obras de infraestrutura associadas à Copa do Mundo FIFA 2014 e ao Programa de Aceleração do Crescimento II, destinado a subsidiá-las com fundos públicos nacionais. Além disso, os movimentos sociais urbanos promovem, há vários anos, uma forte agenda de debates sobre direitos humanos que hoje em dia atinge alto grau de capilarização social. Sendo assim, o rechaço imediato e generalizado das cenas de violência policial em pleno centro das capitais brasileiras não deve surpreender-nos; ele emerge de um “caldo de cultura” pretérito que problematiza o direito à cidade, à livre circulação e à moradia. Mais do que a “disseminação” de um descontentamento abstrato (este seria o sonho da direita) ou o reflexo de uma nova “tendência” de protesto social originada em Wall Street, o que observamos é a emergência condensada de exigências locais concretas e relacionadas entre si.
Um momento crítico
Todos os processos massivos atravessam momentos críticos, caracterizados pelo impasse e pela contradição, nos quais um conjunto claro de alternativas nem sempre conciliáveis confronta todos aqueles que decidem mobilizar-se. Atrevo-me a dizer que pelo menos uma contradição central já está delineada para os grupos que tomaram as ruas do Brasil nos últimos tempos. Esta contradição se manifesta sob a forma de duas possibilidades latentes e mutuamente excludentes. Uma delas irá hegemonizar, a outra será suprimida ou minoritarizada. Poderíamos sintetizá-las por meio de uma pergunta: estamos falando de levantes majoritariamente anti-sistêmicos, movidos por exigências de transformação social profunda – leia-se, mudança estrutural, reinvenção da política, reconstrução dos sistemas valorativos, ataque concreto aos dispositivos da reprodução sistêmica em suas manifestações oficiais e oficiosas – ou se trata, por outro lado, de uma nova onda moralizadora, comprometida com as soluções de sempre – cadeia, repressão, judicialização, incremento do policiamento, desideologização da política (muitas vezes disfarçada de “despartidarização”), manutenção das retóricas da desigualdade (direitos humanos “versus” direitos dos manos; ciadão de bem “versus” vagabundo e por aí vai), chauvinismo, patriotismo escapista –?
Se válida, esta pergunta já não pode ser respondida somente através das redes sociais, precisa alcançar outras esferas públicas, seus termos devem ser elucidados diante do maior número possível de pessoas o tempo inteiro, incansavelmente, de forma a incorporar novos sujeitos políticos em condições de disputar o processo em marcha e alijar intérpretes indesejáveis que, entre uma manifestação e outra, tentam significar os fatos ao seu bel prazer. A constituição de fóruns permanentes baseados na ocupação de espaços emblemáticos da vida urbana brasileira poderia ser uma tática interessante para a implantação irrevogável do confronto decisivo entre as alternativas ideológico-políticas apresentadas.
Polarização e nacionalização das lutas
Há dez dias, as primeiras cenas públicas daquilo que se tornaria um processo político nacionalizado apontavam, com diferentes matizes, na direção da primeira das alternativas apresentadas (transformadora e emancipatória). É impossível negar que a ocupação das ruas, num momento inicial, fora protagonizada por coletivos reduzidos, mas portadores de notável potencial crítico e organizativo – cada um ao seu modo, mas todos bastante eficientes, é preciso reconhecê-lo. Falo de juventudes partidárias de esquerda, altamente reticentes quanto ao atual modelo de desenvolvimento; grupos libertários preocupados com a destruição das aparelhagens repressivas do Estado; sujeitos identificados com a resistência anti-capitalista e a luta ambiental; coletivos artísticos opostos à desertificação das cidades, ao fechamento dos bares, à clausura das ruas e parques; sindicatos de trabalhadores de empresas de ônibus; membros dos Comitês Populares da Copa, etc. A articulação dessas coletividades e sua capacidade de convocatória deu vazão a notáveis demonstrações de força (só para dar dois exemplos: em Porto Alegre, ainda no mês de abril de 2013, dez mil pessoas já haviam tomado as ruas contra o aumento da passagem; meses antes, em 2012, uma multidão derrubara o mascote da Copa do Mundo, instalado no centro da cidade, como forma de protesto contra a privatização dos espaços públicos).
Em um segundo momento, depois da violenta repressão policial em São Paulo, os protestos se avolumaram e se articularam em escala nacional. Chegaram a gozar, inclusive, de uma suspeitíssima simpatia dos grandes meios de comunicação que, afinal, precisam garantir um quantum mínimo de legitimidade para continuar existindo. Mas o “apoio” da mídia não se explica apenas por questões de legitimidade ou pelo interesse das empresas em defender os direitos e a integridade física dos seus jornalistas, ostensivamente agredidos pela polícia militar de São Paulo. A mídia corporativa também visualizou nos protestos atuais a possibilidade descabelada e petulante de reeditar sua deprimente tentativa de “golpe branco”, perpetrada em 2004-2005 a partir de uma poderosa campanha moralizadora cujo único e evidente objetivo era associar o recém-empossado presidente Lula (que eles escreviam “Lulla”, evocando o malfadado Fernando Collor) com “escândalos” de corrupção no congresso.
Tendo em conta o que foi dito, quero sugerir que existem dois “impulsos nacionalizadores” no levante popular urbano brasileiro. Um deles se assenta na afinidade de demandas entre os diferentes movimentos sociais locais, fundamentalmente aquelas relacionadas com a redução das tarifas de ônibus e metrô, o passe livre nacional, a crítica à violência policial, ao modelo de transporte urbano e o questionamento das violências ocasionadas pelas obras da Copa do Mundo sobre as vidas de diversos grupos sociais, em especial as classes populares. O segundo “impulso nacionalizador” é orquestrado pelos grandes meios de comunicação com respaldo entusiástico de um setor extremamente autoritário da classe média, desesperado por recuperar seus desgastados diacríticos distintivos e desestabilizar um governo nacional que, apesar de todas suas ambiguidades e alianças esdrúxulas, ainda se apresenta como temerário aos olhos dos proto-fascistas. A estratégia consciente deste processo reacionário de nacionalização do “descontentamento” civil é esvaziar as consignas concretas que vinham sendo levantadas, convertendo o lema “não é só por vinte centavos…” em uma forma de inocular nos protestos o veneno da “moralização nacional”. Não é a toa que na marcha da última quinta-feira em São Paulo, grupelhos de extrema-direita procuravam distribuir bandeiras do Brasil entre os ativistas para “nacionalizar” a manifestação. A bandeira, o hino – assim como repetir “não é só por vinte centavos” e deixar a frase inconclusa – são significantes flutuantes, mas de fácil apropriação e fixação reacionária no contexto brasileiro.
Otimismo da vontade
Existem duas frentes de expansão da onda de protestos no Brasil. Uma delas – popular e democrática – pode, com algum esforço, chegar a transcender os estudantes e os setores progressistas da classe média para originar uma ampla aliança com o movimento popular e as classes trabalhadoras. Isto enriqueceria seu repertório crítico-organizativo e enraizaria seus protagonistas no curso histórico das lutas emancipatórias brasileiras. A outra “frente de expansão” é, na melhor das hipóteses, estéril; e na pior delas, fascista. Determinar um rumo a seguir para superar com êxito a primeira grande contradição desta sublevação popular não é uma tarefa individual e tampouco se trata de um desafio colocado apenas aos sujeitos atualmente mobilizados. Cumprir esta meta depende, também, da compreensão, da boa vontade e da ousadia dos setores ativos e massivos do campo popular, organizados, atualmente, em outras frentes de luta: sem-terra, sem-teto, professores, sindicatos de esquerda, movimentos pela liberdade de gênero. Tais sujeitos políticos nunca estiveram adormecidos, nunca puderam dormir em paz, são caminhantes incansáveis na longa noite capitalista. A hegemonia do discurso anti-sistêmico nutrido pelas classes médias radicalizadas não poderá se impor sem o auxílio deles.


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