Alex Martins Moraes
A partir da inflexão decolonial, podemos vislumbrar essas populações sistematicamente investidas pelo controle do trabalho, da autoridade, da “natureza” e da própria subjetividade — que Fals Borda denominava “grupos-chave” — como pessoas cujas esperanças, desejos e práticas sociais não cabem completamente nos cálculos do poder, originando espaços intersticiais de desobediência epistêmica.
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São outras formas, mais humanas, de ser, pensar, criar
e produzir que os capitalistas não foram capazes de apreciar,
mas que continuam vivas apesar de todas a hecatombes
sofridas desde 1492.
Orlando Fals Borda
1. Interpelando Fals Borda
Estaríamos interpelando Orlando Fals Borda a partir da perspectiva decolonial ou, alternativamente, deixando que Fals ecoe sua perspectiva crítica através das preocupações e das categorias nutridas pelo coletivo de argumentação modernidade/colonialidade? Fals Borda foi, no final das contas, contemporâneo de muitos dos principais sistematizadores do argumento decolonial e evocou diretamente alguns deles (por exemplo, Aníbal Quijano e Arturo Escobar) em momentos distintos da sua longa trajetória política e intelectual. Sua obra, portanto, não pode ser situada como exterioridade absoluta frente à inflexão decolonial. É certo, no entanto, que algumas derivações do debate sobre modernidade/colonialidade acabaram por afastá-lo dos interesses investigativos e das inquietações políticas formuladas por Fals. Entre as razões para isto, poderíamos mencionar a estranha atrofia da reflexão sobre classe social na obra dos autores mais visíveis da inflexão decolonial e certo ranço político nutrido por alguns deles em relação ao marxismo e suas manifestações políticas e partidárias. Não será possível discutir detalhadamente os aspectos problemáticos das simplificações, omissões e apagamentos disto decorrentes. Por ora, basta dizer que a incipiente interlocução com Fals Borda aqui esboçada é um convite para evitar sectarismos e oposições binárias (aliás, tão caras à modernidade) entre os que, a partir de diferentes perspectivas, lutam contra a opressão.
A leitura atenta e generosa das outras manifestações do pensamento crítico contemporâneo é uma garantia para o enriquecimento e a complexificação do arsenal de intervenção epistêmica e política à disposição do giro decolonial. É com esta motivação que, num primeiro momento, procuro evidenciar como Orlando Fals Borda propõe transcender as práticas intelectuais e acadêmicas estabelecidas para, no momento seguinte, indagar pelas eventuais convergências entre sua postura teórico-prática e a crítica decolonial aos aparelhos institucionais e disciplinares de captura e docilização do conhecimento inerentes à universidade moderna.
2. Ciência rebelde
Antes de dar início ao diálogo com Fals, um breve parênteses para apresentá-lo ao/à leitor/a menos familiarizado/a com sua obra. Meu “interlocutor” nestas linhas breves nasceu em Barranquilla, Colômbia, em 1925, vindo a falecer no ano de 2008, em Bogotá. Obteve Ph.D. em sociologia na Universidade da Flórida em 1955 e quatro anos depois fundou, ao lado de Camilo Torres Restrepo (que anos mais tarde abandonaria a academia para levar adiante a transformação social pela via da luta armada), a primeira faculdade de sociologia da América Latina, na Universidade Nacional da Colômbia (Bogotá). No Brasil, Fals é provavelmente mais conhecido por ter sido criador e um dos grandes promotores da Pesquisa Ação Participativa (IAP, na sigla em castelhano), método de investigação largamente aplicado não apenas na Colômbia, mas também em outras regiões do Sul do mundo e inclusive da Europa. Este pode ser, portanto, o ponto de partida para o nosso diálogo com Fals. Que concepção de ciência estava implícita, ou melhor, explícita no método que propunha?
“Uma ciência rebelde e subversiva”, responderia Fals. Rebelde porque se opõe abertamente ao colonialismo intelectual fixado pelas regras do jogo científico internacional. Regras caracterizadas pela imitação sistemática, pela importação de paradigmas e pelos ditames de cientificidade e publicabilidade promovidos nos meios de divulgação científica dominantes. Subversiva porque busca ativamente a mobilização de estratégias para modificar a ideologia que permeia o ensino das ciências sociais, tanto no norte como no sul global. O Fals Borda dos anos 70 propunha que a “dissidência” acadêmica teria por sujeito prioritário a denominada “anti-elite” intelectual, uma fração da intelectualidade politicamente inclinada a produzir conhecimento para outros beneficiários que não exclusivamente os Estados-nacionais dependentes, as agências financiadoras e os setores empresariais sedentos de “inovações”. Para o sociólogo colombiano, essa mesma “anti-elite ilustrada” se incluiria entre os protagonistas da revolução social, com a incumbência de orquestrar esforços e saberes emancipatórios.
Fals propõe à “anti-elite ilustrada” um desafio que lhe parece crucial para a descolonização das ciências: a busca pela endogênese, ou seja, pela recuperação e promoção, através de abordagens originais, dos enfoques e das prioridades existenciais desenvolvidos pelas populações locais, do trópico e do subtrópico. A ferramenta para responder a semelhante desafio é a Pesquisa Ação Participativa (de agora em diante, IAP de acordo com a sigla em castelhano), cuja regra geral consiste em assentar-se na realidade concreta, vinculando o pensamento com a ação. Motivado por tal premissa, Fals revisa o repertório de técnicas investigativas mais frequentes nos estudos qualitativos em ciências sociais, procurando avaliar sua compatibilidade com a IAP. Para ele, por exemplo, a observação participante não responderia senão em baixíssimo grau à regra do novo método. Isto porque, no máximo, ela dá acesso a uma descrição fiel e piedosa das comunidades (Fals, 2013), mas não supõe envolvimentos profundos para além da simpatia.
Fals encontra na observação-inserção o caminho mais pertinente para desenvolver as potencialidades da IAP. A observação-inserção implica o envolvimento do pesquisador com seus colaboradores no marco das dinâmicas estudadas, a partir de uma tomada explícita de posição em favor de certas alternativas políticas. Neste caso, o aprendizado não se dá apenas mediante observação, mas também através do próprio trabalho executado junto às pessoas com as quais o investigador identifica-se.
A IAP representa uma forma de pesquisa militante na qual as problemáticas e os objetivos são determinados pelos valores e metas dos grupos que aspiram a transformar a sociedade. O conhecimento, portanto, é gerado e retornado em condições controladas pelo próprio grupo. Desta forma, as hipóteses de pesquisa são confirmadas ou rechaçadas a partir do contato imediato com a realidade viva — e, agregaria eu, vivida –, de acordo com os julgamentos dos sujeitos que participaram do estudo.
Em meados da década de 1970, Fals revisou as experiências de investigação militante desenvolvidas em seu país e concluiu que os pesquisadores motivados por essa forma de abordagem vinham alcançando a inserção em campo e a armonizaçaão dialógica de perspectivas através de quatro posturas recorrentes: 1) estudo da estrutura de classes de uma região e compreensão de como a tradição e os fatores etnoculturais e demográficos incidiam nas experiências de classe localmente constituídas; 2) geração de conhecimento motivada pelos assuntos e enfoques que preocupavam de maneira prioritária os sujeitos que colaboravam com as pesquisas; 3) recuperação crítica; em outras palavras, a busca das raízes históricas das contradições que dinamizam os conflitos de uma dada região, assim como a recuperação dos repertórios de ação política e de resistência mobilizados outrora; 4) práticas de devolução sistemática baseadas no retorno dos resultados da pesquisa aos sujeitos com os quais o investigador identificou-se. Neste último ponto, Fals constata que o trabalho originado no marco da IAP não responde, em primeira instância, aos imperativos de publicação, “ainda que o conhecimento adquirido seja válido para esses fins rotineiros da sociedade burguesa” (Fals, 2013, p. 208).
A ideia-ação de Orlando Fals Borda não é imediatista e tampouco se esgota nos estreitos horizontes do nativismo e das políticas comunitárias. Ela se lança em um devir utópico abarcador, “universalista”: a construção do “socialismo raizal”. A IAP e a subversão acadêmica foram desenvolvidas em harmonia com seu “Plano V”, ”v” de volta ao campo e à vida. Campo possui, aqui, um sentido ambíguo. Parece remeter tanto ao contexto rural — no qual Fals identificava a presença intersticial de modelos alternativos de apropriação, uso e interação com a terra — quanto ao trabalho de campo revitalizado, inspirado e ancorado na experiência vivida das pessoas. Para nosso interlocutor, o socialismo raizal deveria consistir na possibilidade de autoemancipação dos sujeitos e de autogestão das comunidades, numa perspectiva de nação-em-rede. Raizal remete, portanto, às raízes histórico-naturais e de ambiente daqueles que Fals Borda definiu como povos de base: os indígenas, negros dos palenques colombianos, camponeses-artesãos empobrecidos e anti-senhoriais, colonos e patriarcas do interior agrícola. Deles emanariam os elementos básicos de um socialismo redefinido ao longo das experiências de luta e no marco dos processos imaginativos daquelas populações que precisaram enfrentar e resistir ao capitalismo em todo o mundo moderno-colonial. Um socialismo conformado pelo desejo de dignidade, autonomia, liberdade e pela prática cotidiana da solidariedade.
3. Desobediência epistêmica
Durante sua carreira profissional, Fals Borda teve que se dirigir a audiências heterogêneas ao redor do mundo, procurando, sempre, fazê-las pensar com ele sem violentar suas específicas sensibilidades. Por esta razão, a tônica das explanações que fazia costumava ser cambiante. Às vezes, justificava seus postulados através dos cânones da sociologia, instilando-lhes, cuidadosamente, elementos conceituais e propostas teóricas desestabilizadoras. Em outras ocasiões, mais precisamente nos seus livros, onde podia desenvolver mais longamente o trabalho persuasivo, deixava antever com clareza o caráter original e indócil do pensamento que esgrimia. Subsistem, apesar de tudo, tensões importantes no seu corpus teórico. Através de alguns instrumentos analítico-críticos desenvolvidos no marco da coletividade de argumentação modernidade/colonialidade, podemos evidenciar tais tensões e, num momento seguinte, oferecer ponderações pertinentes e criativas.
Por vezes, Fals parece muito comprometido com a promoção e divulgação da sociologia, ora apresentando-a como um espaço etéreo onde se cruzam perspectivas e se acumulam conhecimentos, ora sublinhando suas lógicas institucionais e seus efeitos propriamente “disciplinares”, que obliteram ou desautorizam formas alternas de pensar e construir mundos. A primeira visão, entretanto, é a que parece impor-se, produzindo implicações epistemológicas problemáticas. Como, na maioria das vezes, a sociologia adquire para Fals os ares de um “espaço” a ser defendido, dignificado e aperfeiçoado – justamente porque constitui o lugar privilegiado para a crítica social –, nosso autor termina incorrendo na reiteração de um regime específico de divisão do trabalho intelectual que poderia ser definido da seguinte maneira: se bem os sujeitos com quem o pesquisador está identificado oferecem as ênfases e a temática do trabalho investigativo, compete ao segundo desenvolver as sistematizações para, ato seguido, devolvê-las aos “demandantes do conhecimento” que, finalmente o aplicariam e verificariam sua validade. Isto pode soar como se os colaboradores da investigação fossem, na maior parte do tempo, produtores de problemáticas e objetivos de pesquisa e só eventualmente formuladores de soluções e análises.
Fals sustenta, em várias ocasiões, que a ciência deveria servir a determinados “grupos-chave” – precisamente aqueles situados no pólo explorado das relações de produção e no pólo expoliado dos conflitos agrários. O problema desta proposta é que nela a ciência continua sendo apresentada como zona autônoma e potencialmente liberadora, que “serve” aos “grupos-chave”. Caberia questionar, contudo, se “a” ciência constitui um lugar epistemológico privilegiado em detrimento de outros ou, mais radicalmente ainda, se ela existe como realidade para além da universidade corporativa, seu espaço mais tradicional de atualização e reprodução; espaço este definido por Wallerstein como “oficina de ideologias e templo da fé” (Wallerstein, 2005, p. 72 apud Restrepo, Rojas, 2010). É oficina de ideologias porque vai forjando tudo aquilo que deve operar como verdade, e ao mesmo tempo é lugar de culto porque promove as ciências como se elas gozassem de uma natureza excelsa, autônoma às aparelhagens autoritárias, elitistas e produtivistas que garantem sua emergência como discurso e como prática. A noção de corpo-política do conhecimento oferece uma saída para este impasse.
A corpo-política do conhecimento opõe-se à ego-política do conhecimento, que tem sido a postura epistemológica predominante nas ciências positivistas, na filosofia e nas ciências sociais mais convencionais. A ego-política remete a um “eu” cartesiano desencarnado e deslocalizado, capaz de emitir enunciados universais sobre o mundo que observa. Desta forma, o sujeito falante está sempre desvinculado da sua “localização epistêmica/étnica/racial/de gênero/sexual” (Grosfoguel, 2006, p. 21). Este tipo de enunciado empoderou a cientifização do conhecimento em detrimento de outras formas de conhecer e viver o mundo. No entanto, como sugere o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez, todos os conhecimentos são situados. É impossível falar de lugar nenhum. Desejar fazê-lo não passa de pretensão ou hybris do ponto zero, o desejo do “olho de deus”, que observa a todos a partir de um ponto inobservável de observação.
Ao “penso logo existo” a corpo-política do conhecimento opõe o “sou onde penso”. Conforme indica Walter Mignolo, “o critério básico é que o conhecedor está sempre implicado corpo e geopoliticamente no que é conhecido, ainda que a epistemologia moderna (a hybris do ponto zero) tenha conseguido encobrir ambas as dimensões e criar a figura do observador desapegado (…) que ao mesmo tempo controla as regras disciplinares e se situa numa posição privilegiada para avaliar e definir” (Mignolo, 2009, p.14). Um pouco mais adiante, Mignolo sinaliza qual é o lugar da corpo-política na realização da desobediência epistêmica, ou seja, da auto-enunciação corporizada e localizada dos sujeitos subalternos: “A corpo-política é um componente fundamental do pensamento decolonial, do fazer decolonial e da opção decolonial ao revelar, primeiro, as táticas da epistemologia imperial para afirmar-se a si mesma na humanitas do primeiro mundo desenvolvido e, por outro lado, ao empreender a criação de saberes decoloniais que respondem às necessidades dos anthropos do mundo não desenvolvido ou em vias de desenvolvimento” (Idem, p. 26).
A realização de uma corpo-política depende, contudo, da mudança dos lugares e das formas de enunciação e produção do conhecimento. Implica refutar, então, o privilégio do logocentrismo, da universidade corporativa e das disciplinas acadêmicas hiperreais (“a” sociologia, “a” antropologia), para apostar em “pensamentos/conhecimentos outros, entendidos não como um pensamento ou conhecimento mais, que poderia ser adicionado ao conhecimento “universal” (…) mas sim um pensamento/conhecimento plural a partir das diferenças coloniais, conectado pela experiência comum do colonialismo e marcado pelo horizonte colonial da modernidade” (Walsh, 2007, p. 110 in Rojas, Restrepo, 2010, p. 143). De acordo com Arturo Escobar (2009), além de mudar a forma e o conteúdo da conversa, precisamos mudar o lugar onde ela se desenvolve: “uma característica da onda atual de crítica é ocupar-se não só de questões epistemológicas (as condições de conhecimento, como ainda era o caso do pós-estruturalismo), mas também ontológicas, ou seja, com perguntas básicas sobre a natureza do mundo, apontando na direção da construção de teorias baseadas em diferentes compromissos ontológicos” (Escobar, 2009, p. 257). Portanto, não mais universalidade, mas sim “pluriversalidade”, um novo espaço de sentido que resulta do diálogo entre particularidades decoloniais, ou seja, exterioridades relativas ao projeto da modernidade.
Fals Borda nos falava de “grupos-chave”, cuja experiência coletiva – desenvolvida tanto na realidade da produção material de tipo capitalista, como nos processos identitários emergentes desencadeados pelo enfrentamento, resistência e denúncia dos modos hegemônicos de apropriação dos corpos e dos territórios – resultava essencial à prática de uma ciência rebelde e subversiva. A partir da inflexão decolonial, podemos vislumbrar essas populações sistematicamente investidas pelo controle do trabalho, da autoridade, da “natureza” e da própria subjetividade como pessoas cujas esperanças, desejos e práticas sociais não cabem completamente nos cálculos do poder, originando espaços intersticiais de desobediência epistêmica. A noção de desobediência epistêmica permite radicalizar a proposta de Fals, porque nos exime do compromisso obrigatório com “a” ciência objetiva para empreendermos a busca de outras objetividades – outros mundos possíveis –, no marco de uma ecologia de saberes capaz de devir em desobediência civil.
Referências
ESCOBAR, Arturo. Contra el (neo)desarrollismo. In Colectivo Situaciones (org.): Conversaciones en el Impasse. Dilemas políticos del presente. Buenos Aires: Tinta Limón, 2009.
FALS BORDA, Orlando. Ciencia, compromiso y cambio social. Buenos Aires: El colectivo – Lanzas y Letras – Extensión Libros. 2013.
GROSFOGUEL, Ramón. La descolonización de la economía política y los estudios postcoloniales. Transmodernidad, pensamiento fronterizo y colonialidad global. In: Tabula Rasa, nº9, pp. 29-37. 2006
MIGNOLO, Walter. Desobediencia espistémica, pensamiento independiente y libertad decolonial. In: Otros Logos: revista de estudios críticos. nº1, pp. 8 – 42. 2009
RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán: Samava. 2010
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