Geral

Carta aberta dos estudantes de pós-graduação em Ciências Sociais do Rio de Janeiro

Luiza Dias Flores

Manifestações públicas de intelectuais criminalizando os movimentos sociais antecedem a publicação da carta aberta apresentada abaixo. Esse lugar de fala especializada e legítima ocupado por acadêmicos, e sua apresentação distorcida e distanciada daquilo que acontece nas ruas, acaba por reforçar a lógica de perseguição aos manifestantes – tais como: seqüestros relâmpagos e ameaças; invasões nas casas dos militantes e nas sedes dos movimentos populares, com apreensão de materiais e livros de cunho político; acusações de formação de quadrilha. Trata-se, sobretudo, da incapacidade de certos acadêmicos compreenderem as lutas sociais atuais para além da lógica partidária e da dicotomia esquerda e direita que a condiciona. O que as ruas trazem são passos largos à esquerda, é claro, mas para além da lógica de representação por partidos políticos. Sustentam uma crítica à representatividade e apontam para a necessidade de novas estratégias de organização da luta política.

Essa carta aberta escrita por pós-graduandos em Ciências Sociais do Rio de Janeiro, na qual faço parte, tem por princípio denunciar e distanciar-se dos usos e interpretações produzidas por certos acadêmicos sobre os atuais acontecimentos políticos e reafirmar o compromisso dos jovens pesquisadores com as ruas e com as lutas sociais. Ressalto que as reflexões apresentadas a seguir dizem respeito não apenas à realidade do Rio de Janeiro, mas também às repressões existentes nos demais estados brasileiros. De que lado estamos? Estamos nas ruas, ao lado dos Black Blocs, dos professores, dos indígenas, dos quilombolas, dos estudantes, da juventude negra, dos moradores de ocupações, dos movimentos sociais em geral e de todos aqueles que se revoltam contra as atrocidades do Estado e lutam por uma sociedade realmente democrática.  Segue a carta.

Autoria desconhecida
Autoria desconhecida

 De que lado estamos?

Nós, alunos de pós-graduação de diferentes áreas das Ciências Sociais do Rio de Janeiro, vimos a público nos contrapor à caracterização elaborada por intelectuais a respeito dos grupos que compõem as recentes manifestações que tomaram as ruas do Brasil nos últimos meses. São declarações para a imprensa, para corporações militares, e em congressos científicos que nada mais fazem além de generalizar o perfil e propósitos políticos de diferentes grupos empenhados na defesa de valores sociais democráticos, terminando por contribuir para a criminalização de suas ações, assim como para a repressão violenta e perseguições políticas realizadas por agentes e instituições do Estado. Em apoio à nota publicada pela Frente Independente Popular (http://frenteindependentepopular.wordpress.com/2013/09/17/o-que-e-isso-professora/), nos propomos matizar tais interpretações sobre a natureza política das manifestações desde uma perspectiva das ruas, onde temos nos feito presentes.

Distintas organizações laborais e estudantis populares e militantes independentes que compõem as manifestações se colocam contra a privatização e degradação de espaços e serviços básicos, contra a remoção compulsória de milhares de pessoas em benefício de grandes eventos e obras, contra o genocídio da população negra e indígena, pela reforma agrária, pela destinação prioritária de recursos públicos à educação, saúde e transporte. No Rio de Janeiro, particularmente, enfrentamos o número alarmante de 120 mil negros mortos e desaparecidos nos últimos dez anos, dados publicados recentemente em estudo (http://observatoriodefavelas.org.br/noticias-analises/10-mil-mortes-em-10-anos/), a expulsão truculenta pela Polícia Militar de indígenas do antigo Museu do Índio pelo governo do estado para satisfazer aos empresários da Copa do Mundo de Futebol, e a troca espúria de interesses entre empresários e governo, como é o caso dos transportes públicos. Às margens da atuação de grupos e partidos que cultivam os mesmos princípios, porém estagnados na ação institucional e recuada de intervenção na realidade social, a forma manifestação foi propulsionada nos últimos meses em proporções inéditas na história do país, tendo por objetivo fundamental denunciar as raízes sociais da profunda desigualdade e desrespeito à diversidade sociocultural que perseveram no Brasil. Em resposta, somam-se mais de dois mil detidos, dezenas de feridos graves, alguns mortos, e muitos seguem criminalmente indiciados. Há relatos de torturas e ameaças contra esses mesmos manifestantes identificados pelo aparato policial.

Agrupar manifestantes e manifestações sob o rótulo reducionista de um suposto fascismo em nada contribui tanto para uma compreensão ampliada da conjuntura, quanto para o avanço de pautas e discussões políticas defendidas, não apenas por manifestantes, mas pelos que agora vêm a público delimitar erroneamente seu perfil e suas motivações. Partindo de um reducionismo abstrato, esta análise da luta de classes no Brasil confina-se a dois pressupostos: 1) o dualismo “direita e esquerda” e 2) dados e reflexões sobre o sistema eleitoral a partir de uma perspectiva hiperinstitucional. Ou seja, sob este ângulo, posicionamentos políticos restringem-se à dicotomia “direita e esquerda” dentro do sistema partidário, e o atual sistema representativo é qualificado a priori como democrático. Assim, qualquer crítica geral aos partidos e ao sistema eleitoral é identificada como contrária à “democracia”.

Do mesmo modo, fala-se, não sem causar espanto, em “perda de poder dos ruralistas” a partir da aceitação de certas classificações sobre a composição produtiva nacional, tornando a análise novamente pobre e reducionista, por desconsiderar um importante conjunto de estudos que comprovam a centralidade do agronegócio na política macroeconômica nacional. Nos últimos dez anos foram aprovadas, por exemplo, diversas leis que favorecem este setor da classe dominante, encontrando nas recentes alterações do Código Florestal um de seus emblemas. As condições de possibilidade que culminaram na copiosa elaboração de leis ruralistas nos últimos anos são recuperadas em trabalho recente (Partido da Terra, Alceu Luis Castilho), apontando os vínculos de representantes políticos de todo o país com a posse e concentração de propriedades rurais. Ao reificar o discurso do Estado, alinha-se ao seu projeto desenvolvimentista, e contribui-se para a manutenção de uma ordem social definida hiperinstitucionalmente como “democrática”, mas que tem continuamente defendido os interesses de grandes grupos econômicos e das oligarquias por todo país.

O Levante Popular, a Revolta do Vinagre ou as Jornadas de Junho possivelmente desencadearam um novo processo de mobilização e manifestações pelo país que escapa à atuação de partidos políticos e organizações populares, sindicais e estudantis institucionalizadas. Tais enquadramentos conceituais por parte de cientistas sociais compactuam diretamente com a violenta repressão e criminalização realizada pelo Estado contra manifestantes e movimentos sociais, e com a manutenção das desigualdades sociais. Revela, ainda, a continuidade das reações autoritárias, e o apagamento deliberado da violência do Estado perante o acirramento de conflitos históricos.

Rio de Janeiro, 4 de outubro de 2013.

Assinam este texto:

Discentes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional/UFRJ
Discentes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – UFF
Discentes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – UFRJ
Discentes do Programa de Pós-Graduação em Agricultura, Sociedade e Desenvolvimento – UFRRJ: Ariane Brugnhara, Maria Luiza Duarte Azevedo Barbosa, Sérgio Botton Barcellos, Vanessa Hacon, Frederico Magalhães Siman, Rômulo de Souza Castro, Dan Gabriel D’Onofre.
Discentes do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PUC: Amanda Costa Reis de Siqueira, Claricio dos Santos Filho, Janderson Bax Carneiro, Fernanda Maria de Almeida, Paulo Emilio Azevedo, Jonas Soares Lana, Eduardo José Diniz, Alessandra Maia Terra de Faria, Olivia Nogueira Hirsch, Carla Soares, Gabriel Improta, Thelma Beatriz Carvalho Cajueiro Lersch, Paula Campos Pimenta Velloso, Guilherme Gonçalves, Marcele Frossard de Araujo, Laura de Almeida Rossi, Luisa Santiago Vieira Souto, Leonardo Seabra Puglia, Ana Carolina Canegal Pozzana, Beatriz Brandão dos Santos, Thiago Fernandes, Caroline Araújo Bordalo.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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