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Por Alex Martins Moraes e Tomás Guzmán Sánchez
Para nós, não se trata apenas de situar e circunscrever a emergência dos sujeitos em determinados contextos relacionais, mas sim de explorar as potencialidades destituintes da teoria através da sua articulação com reservas de expressividade apócrifas, que conformam o inconsciente político das subjetividades realmente existentes.
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(…)de/lira, ou seja, transfere sua leitura de um plano semiótico a outro
Franco Bifo (Félix)
Os breves parágrafos que se acumulam na continuação poderiam ser lidos como a primeira e esperançada tentativa de diagnosticar um certo mal estar com relação à determinadas ênfases investigativas recorrentes nas ciências sociais mais convencionais. Este esboço de diagnóstico chama a atenção para um tipo de elemento que convulsiona a pretensa estabilidade das representações analíticas construídas pelos cientistas sociais. A evocação desse elemento não só habilita uma crítica epistemológica das perspectivas acadêmicas, mas também ilumina caminhos possíveis para articular a teoria social com uma crítica vívida e vivida dos sistemas de dominação. As indagações, objeções e intuições formuladas ao longo do diagnóstico emergem na intersecção entre perspectivas teórico-políticas reticentes quanto aos sectarismos teóricos e despreocupadas em prestar tributo aos cânones disciplinares. Nosso texto condensa, em suas entrelinhas e fora delas, algumas percepções derivadas de diálogos longos e nem não longos com a obra de Walter Benjamin, Félix Guattari, Karl Marx, Bertolt Brecht, Michel Foucault e Michael Taussig. Deste núcleo mais elementar de fabulação teórica se desprendem, é verdade, alguns dardos polêmicos; o mais importante, no entanto, é que dali também emanam intenções de diálogo e articulação com outros programas reflexivos.
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Os cientistas sociais em geral e os antropólogos em particular deveriam colocar entre parênteses essa reiterada pretensão de representar “a ordem”, seja ela sociocultural, estrutural, morfológica ou classificatória. Por quê, em vez de representar a “ordem”, não tentamos re-apresentá-la posicionando o foco da reflexão sobre suas inconsistências e rupturas? Rupturas não significam, aqui, pseudo-transformações que refazem ou atualizam a “estrutura” através da redistribuição dos “papeis” concernentes ao “drama social”. As rupturas são dissidências concretas, hostis a qualquer cenário asfixiante. As rupturas existem e proliferam o tempo todo em todas as partes. Elas ocorrem sempre que as coisas precisam ser fixadas, sempre que se torna necessário estabilizar uma relação específica entre os sujeitos e a materialidade que os envolve e constitui: quanto mais se pretende que as coisas continuem sendo as mesmas, mais as coisas mudam. Quanto mais se estende o uso de certas tecnologias sociais e equipamentos coletivos em favor da construção de uma dada realidade, mais se multiplicam outros mundos de possíveis; mundos discretos, sem dúvida: resquícios, excrescências da realidade plausível. O plausível, o ordinário, o ordenado, o normalizado, o repetido se constituem em tensão com os possíveis. As ciências sociais convencionais parecem estar sempre a procura de uma estabilização, de uma circunscrição do mundo, de algo que revele sua plausibilidade, ainda que seja para depois desculpar-se evocando a inelutável transitoriedade de qualquer conjuntura. Nossas pesquisas acadêmicas expressam, frequentemente, o desejo de realizar uma representação dramática e exacerbada do dever ser social, esquecendo-se de que uma enorme fatia do cotidiano realmente vivido é, em si mesma, extra-ordinária. Explicamos: os processos de subjetivação – ou seja, de composição transitória de sujeitos – não são o mero resultado da repetição canônica de uma rotina visível e óbvia ( ir para o trabalho, para a sala de aula, para a prisão, para uma mesa de negociações, para o convento, para a pós-graduação). A subjetivação é uma experiência muitíssimo mais ampla e dinâmica que transborda todos diagramas e modelos, redimensiona as coisas e desestabiliza os enunciados. O que as ritualísticas repetitivas da rotina fazem é justamente suspender esse mundo enorme de possibilidades em favor de um conjunto delimitado de significações, atitudes, decisões e comportamentos fabricados como plausíveis. A rotinização e modelização de nossas vidas através do contato sistemático com as instituições e com outros sistemas menos formalizados de hierarquização, inclusão e exclusão funciona como uma espécie de rito permanente de conjuro: instaurar e repetir certos procedimentos é, ao mesmo tempo, produzir como inexistente um excedente de práticas, vontades, inclinações e intensidades que, a partir de então, passarão a compartilhar natureza semelhante à da matéria escura fabulada pelos físicos teóricos. Este tipo de matéria, apesar de invisível, seria a substância mais abundante no universo.
Entretanto, não se trata de tornar esta matéria escura visível lançando sobre ela a luz enceguecedora da glória intelectual. Trata-se, isto sim, de deixar-se alcançar por todas as faíscas e luminescências que dotam referida matéria de seu atributo escuro. Dito de outra forma, a matéria escura não é outra coisa que uma saturação de intermitências luminosas que chegam até nós sem ser vistas ou que só são percebidas na medida das suas irrupções; irrupções passageiras, como os vaga-lumes na noite. Estas irrupções constituem a materialidade histórica das configurações presentes que roçam nossa existência. Elas o fazem não como um horizonte, nem como totalitarismo, mas sim como uma totalidade em ruínas. Neste sentido, o que deve nos interpelar não é um momento de transição ou de reordenamento, mas sim um momento de fissura. Perguntar-nos sobre essas fissuras nos convoca irremediavelmente a voltar a Marx e ao marxismo como luminescência. O jovem Marx retorna a nós sob a forma de destempo ou, em termos de Benjamin, de tempo detido, suspenso. O tempo detido não é, de nenhuma forma, sincrônico ou diacrônico, nem historicista, nem presentista. Trata-se, na verdade, de um tempo saturado de tensões que se aproveita das eventualidades para se tornar disruptivo, para sair em busca de alternativas ao seu próprio tempo. Mas aqui não nos referimos a qualquer tempo, referimo-nos à temporalidade imposta pelo capitalismo. Esta temporalidade não é outra que a de um fluxo paralítico que se alimenta do desastre para preservar-se; esta temporalidade é a da naturalização da ordem que deixa por fora de si os resíduos que a contradizem; resíduos que saturam dita temporalidade com seu silêncio. Aquilo que está por fora da história é, portanto, a materialidade histórica. Esta materialidade está ligada ao presente como sua parte destitutiva. Trata-se, então, da contemporaneidade: o que não se ajusta ao seu tempo mas, no entanto, olha diretamente para os seus olhos.
A ciência social institucionalizada funciona, na maior parte do tempo, como um projetor de realidades mortas. E isto malgrado o esforço hercúleo de nossos pesquisadores por recuperar as paisagens da agência humana e não-humana, por delinear finamente os cenários da resistência, por evidenciar a operatória articulada das economias políticas e morais, por alertar sobre a interseccionalidade das desigualdades sociais, por demonstrar que as relações de poder não são unívocas, mas sim plurívocas, mediadas e lábeis. Mesmo ampliando progressivamente as variáveis que orientam nossas perspectivas, o mal estar subsiste, os mundos que conseguimos contar permanecem estranhamente mortos. É como se sempre chegássemos tarde ao campo de batalha, depois de consumado o desastre. Com sorte, e para inveja dos historiadores, alguns antropólogos talvez consigam presenciar o bombardeio, nada mais. Ao fim e ao cabo, aquilo que contamos ou já ocorreu, é fato consumado à espera de explicação, ou está em curso como processo relativamente bem delineado que possui nome próprio e aos poucos irá decantar numa realidade outra. Nos dedicamos, essencialmente, a embarcar na sucessão dos eventos com a ambição de interpretá-los – os mais ortodoxos diriam explicá-los – de maneira perspicaz. A pergunta sobre o porquê desse afã interpretativo é válida e urgente, mas não será este o lugar para abordá-la. O desafio desta intervenção é outro: trata-se de afirmar a necessidade de um antídoto para a morbidez analítica. Um antídoto que nos permita operar em outros níveis de realidade para visualizar, a partir daí, a matéria escura que prolifera e se acumula enquanto as coletividades humanas delineiam seus diagramas legais e normativos, enquanto os cálculos do poder são executados e processados por intermédio de extensas cadeias de agentes. Parece-nos necessário reconhecer que mais além dos sujeitos e objetos constituídos no transcurso das histórias coletivas, existe um excedente de expressividade que não teve acesso à história imediatamente visível, não cristalizou-se ou fixou-se em formas reconhecíveis, existe como virtualidade conjurada que povoa silenciosa e insidiosamente os universos de referência já constituídos. Não estamos nos referindo a situações de “resistência”, porque nelas, como observa Franco Bifo, não existe a esperança, só a defesa de configurações societárias, valorativas e imaginárias que se definem integralmente em relação de oposição ou de sobredeterminação frente às estratégias de poder. Os mundos de possíveis, cujo mapeamento nos parece um antídoto à morbidez analítica, não resistem; são mundos que persistem na intersecção dos processos de repetição e transformação sob a forma de um capital de possibilidade, para utilizar a expressão de Félix Guattari. Eles são o concreto vivido, por oposição à “realidade social”; são, para retornar à Marx, a “síntese de muitas determinações”. Esta síntese é apenas passível de ser re-apresentada através de um exercício de abstração que nos permita vislumbrar os contratempos da história, o que as gramaticalidades dominantes já não podem abarcar nem prever, aquelas proliferações indóceis que definem o mais além — ou pelo menos a inconsistência — dos equipamentos de poder.
Voltar a Marx não é, de forma alguma, um tipo de nostalgia ou anacronismo. Voltar a Marx é parte do exercício de tornar as análises das ciências sociais – em especial da antropologia, que se nega veementemente a isso – contemporâneas. Não se trata de linhas duras ou linhas suaves do pensamento: trata-se de expandir o presente como uma disrupção contínua, ou como um processo dissipativo: um compromisso com o concreto. Este compromisso, diz Marx, é voltar sempre a apresentar a realidade num sentido estratégico, é construir para o pensamento essa totalidade em ruínas, esse tempo carregado de tensão. A recomposição dessa totalidade não é outra coisa que uma montagem, no sentido do teatro épico de Brecht. A montagem é a tomada de posição frente ao presente, ou seja, uma forma de olhar nosso tempo bem nos olhos sem pertencer completamente a ele: justaposição de imagens. A imagem dialética benjaminiana é esta possibilidade de montagem entendida como detenção momentânea, como verdade fugaz no aqui e no agora. Marx, por exemplo, nunca vacilou a este respeito. Ele recuperou em sua análise as formulações socialistas que o antecederam e colocou-nas em tensão com as análises dos economistas liberais, oferecendo uma leitura completamente contemporânea do capitalismo que fulgura até hoje. Este tipo de épica foi a que permitiu que Marx pensasse como o proletariado poderia se tornar um possível elemento disruptivo. Quando Marx diz: o operário se torna uma mercadoria tanto mais vil quando mais mercadorias ele cria, está justapondo duas imagens que detêm o tempo numa relação tensa e desigual. Esta relação tensa e desigual tem dois desdobramentos: o desastre e a disrupção. O desastre é a dominação que a vida das coisas exerce sobre a vida a vida dos homens, tornando-os ruínas. Em poucas palavras: é o fetichismo da mercadoria, o Juízo Final que anuncia o fim da história na escatologia capitalista. A disrupção consiste, por outro lado, em uma faísca fugaz produzida pela situação de se tornar mercadoria da mercadoria. A faísca permite profanar o caráter divino outorgado aos objetos (tornar a totalidade uma ruína); permite, no fundo, como diria Lênin, “tomar o céu de assalto” ou, seguindo Agamben restituir aos homens aquilo que fora apropriado pelos deuses. Nos termos de Benjamin, esta montagem de imagens corresponde à ideia do caleidoscópio. Para Benjamin, cada vez que giramos o caleidoscópio, destruímos uma ordem e constituímos outra nova, razão pela qual o caleidoscópio precisa ser quebrado. Em síntese, a cada nova tentativa de repetição da ordem, esta é colocada em risco de ruptura enquanto atualidade, podendo nunca mais se reconstituir como ordem.
Sabemos, a esta altura, que o proletariado não é por antonomásia o lugar da dominação, nem tampouco a única frente de luta ou de disrupção. Mas também podemos entender o proletariado muito além da sua condição de classe e vislumbrar nele um ponto de partida para pensar em categorias mais amplas. Em Benjamin o proletariado adquiriu sentidos outros sob a noção daquilo que é oprimido: tudo o que ficou fora da história oficial, mas cujas vozes se tornam presentes na memória das irrupções atuais. Gramsci ampliou este panorama com a categoria “subalterno” para dar conta de outras situações de dominação. Os estudos subalternos fizeram sua parte ao concretizar estes sujeitos de forma relacional em momentos históricos particulares de revolta ou insubordinação. Os estudos pós-coloniais e descoloniais ainda se encontram, de certa forma, tentando definir quais sujeitos poderiam ser definidos como oprimidos, subalternos ou “alternativos à modernidade” levando em conta as relacionalidades atuais. Todas essas perspectivas fazem parte de um mapa de percurso que orientou nossos interesses enquanto pensávamos a elaboração do presente manuscrito. Contudo, para nós, não se trata apenas de situar e circunscrever a emergência dos sujeitos em determinados contextos relacionais, mas sim de explorar as potencialidades destituintes da teoria através da sua articulação com reservas de expressividade apócrifas, que conformam o inconsciente político das subjetividades realmente existentes. Por óbvio, a sistematização analítica e a reflexividade teórica são absolutamente insuficientes quando se trata de impulsionar dinâmicas políticas destituintes. No entanto, se ambas puderem ser inscritas no horizonte pragmático dos agenciamentos coletivos em curso parece-nos, então, que a vitalidade da investigação social será recuperada na esteira de uma práxis sugestivamente emancipadora.
VERSIÓN EN CASTELLANO
Brindis por una antropología delirante.
Alex Martins Moraes y Tomás Guzmán Sánchez
(…)De/lira, es decir, transfiere su lectura de un plano semiótico a otro.
Franco Bifo (Félix).
Los breves parágrafos que se presentan a continuación podrían ser leídos como la primera y, desde luego, esperanzada tentativa de diagnosticar un cierto malestar con relación a determinados énfasis investigativos recurrentes en las ciencias sociales convencionales. Este esbozo de diagnóstico busca llamar la atención para cierto tipo de elemento que convulsiona la pretensa estabilidad de las representaciones analíticas construidas por los científicos sociales. La evocación de estos elementos no sólo habilita una crítica epistemológica de las perspectivas académicas, sino que además ilumina caminos posibles para articular la teoría social como una crítica vivaz y vivida de los sistemas de dominación. Las indagaciones, objeciones e intuiciones formuladas a lo largo de este diagnóstico emergen de la intersección entre perspectivas teórico-políticas poco preocupadas por hacer ningún tipo de tributo a los cánones disciplinares. Este texto condensa, en sus entrelíneas y también por fuera de éstas, algunas percepciones que derivan de diálogos largos y no tan largos con obras de autores como Walter Benjamin, Félix Guatarri, Karl Marx, Bertolt Brecht, Michel Foucault y Michael Taussig. De este núcleo elemental de fabulaciones teóricas se desprenden, sin duda alguna, ciertas consideraciones polémicas. Sin embargo, lo más importante es que de allí también emanan intenciones de diálogo y articulación con otros programas reflexivos.
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Los científicos sociales en general y los antropólogos en particular deberían colocar entre paréntesis esa reiterada pretensión de representar el “orden”, sea éste sociocultural, estructural, morfológico o clasificatorio. La cuestión es: ¿Por qué en vez de representar el “orden” no intentamos re-presentarlo, poniendo el foco de la reflexión sobre sus inconsistencias y rupturas? Rupturas aquí no significan pseudo-transformaciones que rehacen o actualizan la “estructura” a través de la redistribución de los “papeles” concernientes al “drama social”. Las rupturas son disidencias concretas, hostiles a cualquier escenario asfixiante. Las rupturas existen y proliferan todo el tiempo en todas partes. Estas rupturas ocurren siempre que las cosas necesitan ser fijadas; siempre que se torna necesario estabilizar una relación específica entre los sujetos y la materialidad que los envuelve y constituye: cuanto más se pretende que las cosas continúen siendo las mismas más las cosas cambian. Cuanto más se extiende el uso de ciertas tecnologías sociales y equipamientos colectivos en favor de la construcción de una realidad dada, más se multiplican otros mundos de posibles. Mundos discretos, sin duda. Estamos hablando de resquicios y excrecencias de la realidad plausible. Lo plausible, lo ordinario, lo ordenado, lo normalizado, lo repetido se constituye en tensión con lo posible. Las ciencias sociales convencionales parecen estar siempre en la búsqueda de una estabilización, de una circunscripción del mundo, de algo que revele su plausibilidad, aunque sea para después disculparse evocando la ineluctable transitoriedad de cualquier coyuntura. Nuestras investigaciones académicas expresan, frecuentemente, el deseo de realizar una representación dramática y exacerbada del deber ser social. Sin embargo, lo que olvidamos como científicos sociales es que una enorme franja del cotidiano realmente vivido es, en si misma, extra-ordinaria. Es decir, para explicarnos mejor, que los procesos de subjetivación — o sea, de composición transitoria de sujetos –, no son un mero resultado de la repetición canónica de una rutina visible y obvia (ir al trabajo, a la sala de aula, a la prisión, a la mesa de negociaciones, al convento, a la posgraduación). La subjetivación es una experiencia muchísimo más amplia y dinámica que transborda todos los diagramas y modelos, redimensiona las cosas y desestabiliza los enunciados. Lo que las ritualísticas repetitivas de la rutina hacen es justamente suspender ese mundo enorme de posibilidades en favor de un conjunto delimitado de significaciones, actitudes, decisiones y comportamientos fabricados como plausibles. La rutinización y modelización de nuestras vidas a través del contacto sistemático con las instituciones y con otros sistemas menos formalizados de jerarquización, inclusión y exclusión funciona como una especie de rito permanente de conjuro: instaurar y repetir ciertos procedimientos es, al mismo tiempo, producir como inexistente un excedente de prácticas, voluntades, inclinaciones e intensidades que, a partir de entonces, pasarán a compartir una naturaleza semejante a la materia oscura fabulada por los físicos teóricos. Este tipo de materia, a pesar de invisible, sería la más abundante en el universo.
Sin embargo, no se trata de hacer visible esta materia oscura lanzando sobre ella la cegadora luz de la gloria intelectual. Se trata, de otro lado, de dejarse alcanzar por todos los destellos y las luminiscencias que la dotan de su atributo oscuro. Dicho de otra manera, la materia oscura no es otra cosa que una saturación de intermitencias luminosas que nos llegan sin ser vistas o que solo se perciben en la medida de sus irrupciones, irrupciones pasajeras, cual luciérnagas en la noche. Y estas irrupciones constituyen la materialidad histórica de las configuraciones presentes que nos rozan, no como horizonte ni como totalitarismo, sino más bien como una totalidad en ruinas. Y es en este sentido que lo que nos debe interpelar no es un momento de transición o reordenamiento sino uno de fisura. Preguntarnos por estas fisuras nos convoca irremediablemente a volver a Marx y al marxismo como luminiscencia. El joven Marx vuelve aquí en forma de destiempo o en términos de Benjamin de tiempo detenido. El tiempo detenido no es de ninguna manera sincrónico o diacrónico, ni historicista, ni presentista. Se trata, en cambio, de un tiempo saturado de tensiones que se aprovecha de las eventualidades para tornarse disruptivo: en búsqueda de alternativas a su propio tiempo. Pero aquí no nos referimos a cualquier tiempo, nos referimos a la temporalidad impuesta por el capitalismo. Esta temporalidad no es otra que la de un flujo paralítico que se alimenta del desastre para preservarse; esta temporalidad es la de la naturalización del orden que deja por fuera los residuos que la contradicen y que son, justamente, los que van saturando dicha temporalidad con su silencio: aquello que está fuera de la historia, es por tanto, la materialidad histórica. Y esa materialidad está ligada al presente como su parte destitutiva. Se trata entonces de la contemporaneidad: lo que no se ajusta a su tiempo pero lo ve directo a los ojos.
La ciencia social institucionalizada funciona, la mayor parte del tiempo, como un proyector de realidades muertas, pese al esfuerzo titánico de sus investigadores por recuperar los paisajes de la agencia humana y no-humana, por delinear finamente los escenarios de la resistencia, por evidenciar la operatoria articulada de las economías políticas y morales, por alertar sobre la interseccionalidad de las desigualdades sociales, por demostrar que las relaciones de poder no son unívocas, sino plurívocas, mediadas y lábiles. Incluso ampliando progresivamente las variables que orientan nuestras perspectivas, el malestar persiste, y los mundos que conseguimos contar permanecen extrañamente muertos. Es como si siempre llegásemos tarde al campo de batalla, después de consumado el desastre. Con suerte, y para envidia de los historiadores, algunos antropólogos quizás consigan presenciar solamente el bombardeo. Al fin y al cabo, todo aquello que contamos o ya ocurrió como hecho consumado a la espera de explicación, o está en curso como proceso relativamente bien delineado que posee nombre propio y que de a pocos se irá decantando en otra realidad. Estamos dedicados, esencialmente, a embarcarnos en la sucesión de los eventos con la ambición de interpretarlos –los más ortodoxos dirían explicarlos – de manera perspicaz. La pregunta sobre el porqué de este afán interpretativo es válida y urgente, pero no es este el lugar para abordarla. El desafío de esta intervención es otro: se trata de afirmar la necesidad de un antídoto para la morbidez analítica. Un antídoto que nos permita operar en otros niveles de realidad y visualizar, con ello, la materia oscura que prolifera y se acumula mientras las colectividades humanas delinean sus diagramas legales y normativos; mientras los cálculos del poder son ejecutados y procesados por intermedio de extensas cadenas de agentes. Nos parece, por tanto, necesario reconocer que más allá de los sujetos y objetos constituidos en el transcurso de las historias colectivas, existe un excedente de expresividad que no tuvo acceso a la historia inmediatamente visible. Nos referimos a un excedente que no se cristalizó o se fijó en formas reconocibles, sino que existe como virtualidad conjurada que habita silenciosa e insidiosamente los universos de referencia ya constituidos. No por ello nos estamos refiriendo a situaciones de resistencia. Entendemos que en estas situaciones, como señala Franco Bifo, no existe la esperanza, sino sólo la defensa de las configuraciones societarias, valorativas e imaginarias que se definen integralmente en relación de oposición o sobredeterminación frente a las estrategias de poder. Los mundos de posibles, cuyo mapeo nos parece un antídoto a la morbidez analítica, no resisten. Son mundos que persisten en la intersección de los procesos de repetición y transformación como un capital de posibilidad, para utilizar la expresión de Félix Guatarri. Ellos son lo concreto vivido, por oposición a la “realidad social”. Son, para retornar a Marx, la “síntesis de múltiples determinaciones”. Estas síntesis son apenas susceptibles de ser re-presentadas a través de un ejercicio de abstracción que nos permita vislumbrar los contratiempos de la historia, lo que las gramaticalidades dominantes ya no pueden abarcar ni prever: aquellas proliferaciones indóciles que definen el más allá –o por lo menos la inconsistencia- de los equipamientos de poder.
Volver a Marx no es de ningún modo una suerte de nostalgia o anacronismo. Volver a Marx es parte del ejercicio de tornar los análisis de las ciencias sociales, en especial de la antropología que se niega vehementemente a esto, contemporáneos. No se trata de líneas duras o líneas suaves del pensamiento: se trata de expandir el presente como una disrupción continua o un proceso disipativo: un compromiso con lo concreto. Este compromiso con lo concreto, nos dice Marx, es siempre volver a presentar la realidad en un sentido estratégico: es reconstruir para el pensamiento esa totalidad en ruinas, ese tiempo cargado de tensión. La recomposición de esta totalidad no es otra cosa que un montaje en el sentido del teatro épico de Brecht. Y este tipo de montaje es la toma de posición frente al presente, es decir, mirando nuestro tiempo a los ojos sin pertenecer completamente a este, yuxtaponiendo imágenes. La imagen dialéctica benjaminiana es esta posibilidad de montaje en tanto detención momentánea, en tanto verdad fugaz en el aquí y el ahora. Marx, por ejemplo, nunca vaciló en hacerlo: tomó para sus análisis las formulaciones socialistas que lo antecedieron y las colocó en tensión con los análisis de los economistas liberales dando una lectura completamente contemporánea del capitalismo que fulgura hasta hoy. Y este tipo de épica fue la que le permitió a Marx pensar como el proletariado se tornaba un posible elemento disruptivo. Cuando Marx dice: el obrero se convierte en una mercancía tanto más vil cuantas más mercancías crea, esta yuxtaponiendo dos imágenes que detienen el tiempo en una relación tensa y desigual. Y esta relación tensa y desigual tiene dos desdoblamientos: el desastre y la disrupción. El desastre es la dominación total de la vida de las cosas sobre la vida de los hombres que los torna ruinas: el fetichismo de la mercancía. El juicio final que anuncia el fin de la historia en la escatologia capitalista. La disrupción consiste, de otro lado, en el destello fugaz que produce el tornarse mercancía de la mercancía y que permite profanar el carácter divino ahora otorgado a los objetos (tornar la totalidad una ruina): es en el fondo, como diría Lenin, “tomarse el cielo por asalto”: restituir a los hombres aquello que ha sido apropiado por los dioses, diría Agamben. En términos de Benjamin este montaje de imágenes se corresponde con la idea del caleidoscopio. Para Benjamin, cada vez que se le da vuelta al caleidoscopio se destruye un orden y se constituye uno nuevo, por lo cual el calidoscopio debe ser roto. Es decir, en cada intento de repetición del orden este se coloca en riesgo de romperse como actualidad y de, quizás, nunca más reconstituirse como un orden.
Sabemos a estas alturas que el proletariado no es el lugar por antonomasia de la dominación, ni tampoco el único frente de lucha ni de disrupción. Pero también podemos entender el proletariado mucho más allá de su condición de clase y vislumbrar en este un punto de partida para pensar en categorías más amplias. En Benjamin el proletariado adquirió muchos más sentidos bajo la noción de lo oprimido: todos aquellos que se quedaron por fuera de la historia oficial y cuyas voces se tornan presentes para la memoria de las irrupciones actuales. Gramsci nos amplió el panorama con la categoría de subalterno para dar cuenta de otras situaciones de dominación. Los estudios subalternos hicieron su parte al concretizar estos sujetos de forma relacional en momentos históricos particulares de revuelta o insubordinación. Los estudios poscoloniales y decoloniales aún se encuentran, de cierta forma, intentando definir qué sujetos podrían enmarcarse como oprimidos o subalternos en las relacionalidades actuales (también las de raza y género). Todo esto hace parte de un mapa de ruta que guía nuestros intereses para pensar este manuscrito. Sin embargo, para nosotros no se trata apenas de situar y circunscribir la emergencia de los sujetos en determinados contextos relacionales, pero si de explorar las potencialidades destituyentes de la teoría a través de su articulación con reservas de expresividad apócrifas. Expresividades que conforman el inconsciente político de las subjetividades realmente existentes. Esta claro, no obstante, que la sistematización analítica y la reflexibilidad teórica son absolutamente insuficientes cuando se trata de impulsar dinámicas políticas destituyentes. De cualquier forma, si nuestras apuestas teóricas y analíticas pudieran ser inscritas en el horizonte pragmático de los agenciamientos colectivos en curso, entonces nos parece que la vitalidad de la investigación social podría ser recuperada como praxis sugerentemente emancipadora.
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