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Das sublevações à democracia controlada

Neste exato momento, estamos sendo investidos por processos de assujeitamento que tendem a expurgar paulatinamente de nossas vidas aquelas reservas de expressividade que soubemos cultivar e compartilhar no exercício das sublevações. Com o pacto de segurança posto sobre a mesa, trata-se, agora, de criar os sujeitos que justificariam sua promulgação: terroristas, vândalos e black blocs de um lado; o cidadão amedrontado, a vítima indefesa e o Estado ameaçado de outro.

Por Alex Martins Moraes

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As práticas sublevatórias que marcaram o ano de 2013 terminaram por redefinir os horizontes da democracia brasileira. Se por um lado abriram-se linhas de fuga com enorme potencial transformador, por outro lado velhos dispositivos de controle institucional foram sofisticados e novos elementos jurídicos – como a lei anti-terror – aguardam ansiosos para ingressar nas dinâmicas da vida coletiva. Neste momento, estamos defrontados com uma disjuntiva entre a experimentação política no terreno da incerteza e a democracia controlada no terreno da segurança. “Segurança”, aqui, não deve ser entendida como o oposto de incerteza, mas sim como a pretensão de neutralizar tudo aquilo que, no marco de uma dada estratégia de poder, é representado como incerto e, portanto, perigoso. O que proponho, nas próximas linhas, é uma espécie de breve diagnóstico da repressão e do controle. Gostaria que este texto fosse recebido como um convite para refletir sobre o devir coletivo e identificar aquilo que rechaçamos para nosso futuro.

Desde 2013, e inclusive antes, um conjunto de agrupações como o Movimento Passe Livre de São Paulo ou o Bloco de Luta pelo Transporte Público em Porto Alegre (experiência que conheço de perto) tornaram-se catalizadores do que Félix Guattari denominara macro-agenciamento de enunciação, ou seja, uma agitação social abrangente capaz de excitar libido dispersa no corpo social e operar a negativa pragmática do poder significante das gramaticalidades dominantes. Organizar ocupações de terrenos públicos em áreas de franca valorização imobiliária (como a Ocupação Copa do Povo, protagonizada pelo MTST), tomar os parlamentos municipais e estaduais (como ocorreu em Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro), disputar os espaços da cidade com as forças policiais através do enfrentamento direto e atrever-se a questionar a própria realização da Copa do Mundo foram meios de expressão de um pragmatismo sublevatório que recuperou o caráter político de certas experiências sociais até então inibidas pela gramática do consenso fabricado em torno do campeonato mundial. Sublevar – vale lembrar – é trazer algo à tona, sub(embaixo)-levare(levantar), erguer o que está embaixo, o que não possuía expressão audível, o que existia como inexistência, ou melhor, o que era produzido como inexistente em razão de um suposto “dever ser” da Copa do Mundo, da reconversão urbana, da rentabilidade das empresas de ônibus.

A polifonia dos macro-agenciamentos transbordou por todos os lados a ordem de prioridades manejada pelos governos de turno e pelos partidos políticos que os respaldavam. A cooperação entre as agrupações que haviam saído às ruas, bem como o fortalecimento recíproco de suas demandas, acabaram se desdobrando mais além dos espaços de aglutinação e articulação da esquerda tradicional. Esta última, majoritariamente instalada em posições de mando no governo federal, viu subitamente deslocada sua capacidade de representação quando o consenso mundialista que lhe servira de suporte legitimador terminou parcialmente diluído por uma agenda política “selvagem”. As forças sociais que decidiram explorar as consequências mais radicais abertas pela conjuntura sublevatória foram justamente aquelas cujo projeto de emancipação, as demandas por reconhecimento e a própria experiência de sociedade couberam cada vez menos no horizonte pragmático da esquerda governista. Esta miríade de movimentos – que inclui agrupações de juventude, tendências socialistas dos partidos no governo, agremiações anarquistas, comitês populares da Copa do Mundo, organizações de comunidades tradicionais, movimentos pela igualdade de gênero, alguns sindicatos, novos movimentos populares urbanos, etc. – negou o discurso tutelar da política oficial para exercer uma resoluta disposição em cuidar dos próprios assuntos, utilizando um repertório tático que a frustração com a institucionalidade colocara ao seu alcance.

O experimentalismo político continuou repercutindo até o final de 2013 sob a forma de uma proliferação molecular selvagem – para utilizar a expressão cunhada, em algum momento, por José Miguel Wisnik. Selvagem porque situada mais além do controle policial e das pretensões explicativas totalizantes. A ruptura do modelo de embate político circunscrito a interlocutores previamente reconhecidos pelo Estado e pela “opinião pública” evidenciou a constrição e o esgotamento de uma esfera institucional que se pretendia em condições de representar e sistematizar todos os desejos e expectativas socialmente vigentes. Atores políticos e econômicos dos mais variados matizes souberam identificar nos sintomas desse esgotamento o umbral de um processo de dissolução muito mais perigoso, que poderia colocar em xeque não apenas uma Copa do Mundo, mas também as ambições eleitorais e as estratégias hegemônicas nutridas à esquerda e à direita do espectro político-partidário. Este temor compartilhado desembocou na ativação de uma miríade de dispositivos de controle social energizada pela atuação articulada dos meios de comunicação concentrados e dos poderes estatais. Para funcionar, tais dispositivos tiveram – como diria o filósofo italiano Giorgio Agamben – que fabricar seus próprios sujeitos, ou seja, capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos. Explicitemos o conteúdo de alguns desses procedimentos.

1) Mais além do direito, defender a ordem

Em dezembro de 2013 o Ministério da Defesa publica uma portaria (protocolada como MD33-M-10) que regula o uso das Forças Armadas em operações para a garantia da “lei e da ordem” (disponível aqui). O texto explicita quais seriam os procedimentos a serem adotados pelos militares, em articulação com as demais forças de segurança, para neutralizar as “forças oponentes”, definidas como segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos sociais, “entidades, instituições, e/ou organizações não governamentais que poderão comprometer a ordem pública ou até mesmo a ordem interna do País, utilizando procedimentos ilegais”. A caracterização das “forças oponentes” oferecida pelo Ministério da Defesa parecia descrever, em alguma medida, as práticas adotadas por determinados grupos de pressão durante os meses de Junho e Julho, fato que provocou uma enorme reação crítica entre os movimentos sociais e levou o governo a alterar a terminologia do texto. Apesar dessas alterações, a portaria MD33-M-10 já havia deixado claro qual era o foco da pretensão vigilantista do governo federal em caso de futuros distúrbios, do mesmo modo que também tornara explícita a finalidade dessa vigilância: manter a “ordem pública” acima de tudo, inclusive por meios militares.

Meses antes da publicação da portaria, em outubro de 2013, uma jovem estudante da Universidade de São Paulo foi presa próximo do local onde manifestantes haviam atacado uma viatura da Polícia Militar paulista. Entre outras acusações, pesou sobre ela a de ter transgredido a Lei de Segurança Nacional, aprovada em 1983, durante a ditadura militar. Esta lei prevê penas de três a dez anos a quem “pratica sabotagem contra instalações militares, meios de comunicação, estaleiros, portos e aeroportos”. A estudante e um amigo, que também foi preso, portavam na ocasião da abordagem policial uma mochila contendo latas de tinta, uma bomba de gás lacrimogênio deflagrada e um livro de poesia com conotação e protesto, conforme noticiou o jornal Folha de São Paulo (ver reportagem).

Para compreender o que significa defender a ordem no contexto do atual paradigma de segurança é preciso avaliar situações onde a ordem é concretamente produzida. Mesmo que a prisão da estudante não tenha ocorrido no marco das operações previstas pela portaria MD33-M-10, ela nos dá um indício de que o imperativo de manutenção da ordem é processado, na prática, como “estado de exceção” pelas forças repressivas. Walter Benjamin alertava, já em 1921, que ainda que a polícia mobilize a violência com “fins de direito”, esta mesma prerrogativa autoriza os policiais a fixarem esses fins dentro de limites muito amplos. Na prática, a polícia atua, tal como os advogados e os juízes, em condição de verdadeira operadora do direito, mas com a seguinte particularidade: ela funda e conserva simultaneamente a lei de acordo com critérios de arbítrio não codificados formalmente. Esta constatação permite afirmar que os fins buscados e eventualmente alcançados pela violência policial costumam não estar conectados com os objetivos que se arroga o direito, principalmente quando se trata de “manter a ordem e ponto final”.

2) Disseminar a suspeita

Em fevereiro de 2014 um cinegrafista da rede de televisão Bandeirantes faleceu em decorrência do impacto de um fogo de artifício contra sua cabeça durante uma manifestação no Rio de Janeiro. A grande imprensa utilizou o corpo sem vida de um jornalista como suporte para a propagação da retórica sensacionalista do horror. O corpo mudo foi convertido em índice de uma potência sinistra, de uma violência “gasosa” cuja origem, nos termos da antropóloga Rossana Reguillo, não é passível de ser atribuída a outra coisa que não a entes fantasmagóricos. Trata-se de uma violência difícil de prever porque não segue um padrão inteligível, porque parece espreitar em todos os lugares. Foi efetivamente neste contexto que a palavra “terrorista”, uma verdadeira fantasmagoria, passou a operar, ao lado de “vândalo”, como dispositivo retórico potencialmente aplicável a qualquer manifestante.

No Senado Federal a categoria terrorista começou a percorrer velozmente os caminhos que poderiam levar a sua instalação jurídica oficial. O senador Jorge Viana, do Partido dos Trabalhadores, justificou a necessidade e o objetivo de uma lei que tipificasse o crime de terrorismo no Brasil com as seguintes palavras: “a lei hoje permite que o cidadão exploda primeiro, atinja a cabeça de alguém, solte um rojão e depois é que nós vamos ver o que fazer com ele. Não dá para ter uma ação preventiva de impedir que ele carregue aquele material que coloca em risco os manifestantes, a estrutura do Estado e a própria União?”. Concretamente, o texto em discussão no Senado (Lei 499) define “terrorismo” como a ação de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade da pessoa”. Nesta caracterização não aparecem quaisquer menções à finalidade do ato de “infundir terror”, de modo que um leque amplíssimo de práticas delitivas – incluídas aquelas sem motivação política explícita – poderia ser enquadrado pela lei em questão. Outro aspecto chamativo do texto é a noção de “pânico generalizado”. Como medir a generalização do pânico? Ou ainda: como um fato “X” pode ser difundido de modo a criar pânico generalizado? A repercussão dada pela grande imprensa ao falecimento do cinegrafista da Rede Bandeirantes oferece alguns indícios para responder a essas indagações.

3) Envolver e controlar

Ao longo do mês de fevereiro de 2014 a polícia civil do Estado de São Paulo convocou centenas de pessoas a prestar depoimento no marco de um inquérito conhecido pelos policiais como “inquérito do Black Bloc” (ver matéria produzida pela agência Pública). Não raro, as datas e horários fixados para tomar os depoimentos coincidiram com aqueles escolhidos para a realização de manifestações populares na cidade. Uma das singularidades desse inquérito reside na pretensão de averiguar se existem articulações entre os ativistas envolvidos em atos de depredação, o que abriria caminho para seu enquadramento no delito de associação criminosa. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado de São Paulo, o objetivo do inquérito é “dar um basta à violência, uni[ndo] as polícias Civil e Militar ao MP (Ministério Público) para, numa operação rápida, identificar os suspeitos de atos criminosos que atrapalham o direito de manifestação”. De acordo com diversos manifestantes chamados a depôr em São Paulo, era comum que os agentes policiais baseassem o interrogatório em denúncias publicadas pelos meios de comunicação e demonstrassem especial interesse em mapear as inclinações político-ideológicas dos investigados. Algo semelhante ocorreu no Estado do Rio Grande do Sul quando, após o cumprimento de sucessivos mandados de busca e apreensão nas sedes de agrupações políticas envolvidas com os protestos iniciados em 2012, o Ministério Público acusou cinco militantes do Bloco de Luta pelo Transporte Público de constituição de milícia privada, entre outros crimes. O inquérito foi acolhido pelo poder judiciário e convertido em processo penal no mês de Junho de 2014. A acusação do MP se baseou, fundamentalmente, no relato de policiais encarregados da repressão aos protestos em Porto Alegre e no depoimento de um jornalista do Grupo RBS (associado à Rede Globo) que teria presenciado o planejamento de ações vandálicas em assembleia do Bloco de Luta.

Além das investigações policiais massivas, que envolvem centenas de ativistas políticos em todo o país, as polícias militares vêm aplicando técnicas de cercamento ostensivo das manifestações. Uma dessas técnicas se assemelha ao Caldeirão de Hamburgo – utilizado pela polícia alemã nos protestos de 1986 contra a construção de usinas nucleares – e consiste no cercamento e “amputação” de setores inteiros das marchas para, em seguida, submetê-los a um verdadeiro estado de exceção marcado pela agressão física sistemática, falsos flagrantes e prisões arbitrárias. Se o panóptico de Bentham emblematiza o desejo de poder nas sociedades disciplinares, o Caldeirão de Hamburgo e seus assemelhados constituem uma sugestiva expressão do desejo de poder em nossa democracia controlada. Agora já não se trata de vigiar e punir pontual e individualmente. Tampouco está em questão o direito de manifestação – como esclarece o texto da SSP de São Paulo. O Brasil não está empreendendo o caminho de retorno à ditadura. A democracia controlada tolera relativamente bem as expressões da diferença, do dissenso e do antagonismo, desde que estas não ocasionem acidentes “perigosos”. Envolver os manifestantes num sistema generalizado de interrogatório, controlar as redes sociais, influenciar o curso das marchas mediante cercamento, determinar quando e onde elas devem começar e terminar é construir garantias à ordem, é antecipar-se à disrupção.

Por sua vez, as investigações policiais, as prisões temporárias e o indiciamento de ativistas políticos expressam algo que vai mais além da pretensão de punir delitos individualizados. Trata-se, nestes casos, do desdobramento de uma estratégia do medo. O caráter amedrontador dos expedientes policiais e judiciais em curso é identificável, por exemplo, na elaboração de denúncias baseadas em escassa materialidade, em infrações mal estabelecidas, em teorias do “domínio do fato” segundo as quais o mero exercício de liderança política num protesto em particular seria suficiente para imputar à um sujeito todo tipo de responsabilidade penal. O que vemos, aqui, não é a reação da justiça à um delito comprovado, mas sim seu rechaço ao “perigo real”, aquele representado por todas as marchas vindouras, por todas as potenciais inclinações violentas dessa “população-alvo” difusa que começa a emergir depois do esvaziamento de certos consensos desenvolvimentistas e na medida em que vão se esgotando espaços mais tradicionais de aglutinação e articulação política.

Neste exato momento, estamos sendo investidos por processos de assujeitamento que tendem a expurgar paulatinamente de nossas vidas aquelas reservas de expressividade que soubemos cultivar e compartilhar no exercício das sublevações. Com o pacto de segurança posto sobre a mesa, trata-se, agora, de criar os sujeitos que justificariam sua promulgação: terroristas, vândalos e black blocs de um lado; o cidadão amedrontado, a vítima indefesa e o Estado ameaçado de outro. A comunidade futura com que esses dispositivos nos acenam parece ser aquela erigida sobre o paradigma da imunidade, ou seja, da salvaguarda do corpo social através do controle preventivo e permanente; é, em suma, a exacerbação da “comunidade dos que não têm comunidade”, dos que partilham apenas a lei, a dívida e a culpa. Ainda existe, no entanto, uma imensa fissura entre os dispositivos de poder vigentes e a energia coletiva liberada no último ano, de modo que continuam abertas diversas perspectivas de inovação militante em condições de preservar as brasas da revolta e conferir às expressões políticas da dissidência algum poder efetivo nas relações de força concretas.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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