Trata-se de uma obra relevante para questionar propositivamente os marcos analíticos e as orientações políticas que ainda orientam uma parte significativa dos estudos recentes em ciências humanas. Neste sentido, a Noite dos Proletários oferece um estilo de análise que preserva a dinamicidade dos processos de enunciação, evitando a tentação de fixa-los como inscrições de uma cultura para, em vez disso, tomá-los como momentos de transmutação dos sentidos nos quais novos marcos de referência são criados.
Alex Martins Moraes
* * *
Os estudantes da matéria de história cultural do IDAES, em Buenos Aires, foram convidados a comentar, a título de trabalho final, uma monografia historiográfica recente que estivesse relacionada com suas próprias preocupações teóricas e investigativas. Aproveitei a oportunidade para me debruçar sobre a Noite dos Proletários, de Jacques Ranciére. No texto que segue, procuro demonstrar a singularidade da proposta metodológica do autor em contraste com outros estilos de abordagem histórica inspirados pelo que poderíamos definir, muito genericamente, como interpretativismo.
Mais além do interpretativismo, de volta à Noite dos Proletários
(…) aquellas personas son tanto más admirables cuando
adhieren más exactamente a su identidad colectiva.
Jacques Rancière
La cuestión es hacer durar una aceleración del tiempo, una aceleración
de la apertura de los posibles.
Hasta ahora solamente las artes del relato –la literatura y el cine–
han logrado este tipo de operaciones.
Jacques Rancière

A relativamente recente tradução ao castelhano da obra La noche de los proletarios. Archivos del sueño obrero (Tinta Limón, 2010) é um convite para empreender uma dupla abordagem daquela que foi a thèse d’Etat de Jacques Ranciére, cuja primeira edição francesa data de 1981. A abordagem que proponho é “dupla” pois se desdobra, sucessivamente, no registro da “interpretação” e do “uso”, para retomar a distinção proposta por Humberto Eco (1992). Na primeira parte de meu comentário, levo em conta o contexto de publicação e a proposta teórico-metodológica da obra, procurando ressaltar sua singularidade em um momento que poderíamos chamar de “inflexivo” no campo da história social – refiro-me, especificamente, à emergência, na década de oitenta, de um Novo Historicismo influenciado por enfoques interpretativistas provenientes da antropologia social estadunidense. Na segunda parte da resenha, faço “uso” do texto de Jacques Rancière para ampliar o universo do seu discurso, colocando-o em contato com preocupações analíticas mais recentes que explicariam, a meu ver, a decisão aparentemente tardia de traduzir a Noche de los proletarios para o espanhol.
La nuit des proletaires. Archives du rêve ouvrier foi publicado pela editora Fayard em Paris dois anos depois de Carlo Ginzburg publicar seu ensaio sobre o “paradigma indiciário” numa célebre coletânea editada por Carlo Gargani (Crisi dela ragione) e um ano depois do aparecimento da terceira edição revisada de The Making of the English Working Class., de E.P. Thompson. Outro marco relevante para delimitar o campo de debates em voga na história social e cultural do momento poderia ser a publicação, três anos mais tarde, de The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History, livro de Robert Darnton que desencadeou intensas discussões sobre os limites do interpretativismo simbólico na análise de textos históricos. Ainda que Jacques Rancière só faça menções elusivas ao debate historiográfico da época, não é difícil identificar na Noche de los proletários um argumento que tenciona tanto as propostas analíticas de E.P. Thompson, como as de Carlo Ginzburg. E ao tencionar certas formas de abordagem identificáveis na obra deste segundo autor, Ranciére também acaba nos oferecendo insumos para confrontar a démarche interpretativista de Darnton, dado que ela compartilha com o paradigma indiciário uma mesma pretensão genérica de recuperar, a partir de cenas – ou rastros – pontuais do cotidiano das classes populares, todo um panorama cultural concernente a determinados períodos, regiões e populações.
Retomemos, na Noche de los proletarios…, algumas passagens em que Rancière se posiciona com relação à historiografia do momento e reivindica a singularidade de seu próprio enfoque analítico. (Entre parênteses, uma breve ressalva: Jacques Rancière não é historiador, mas filósofo, condição profissional que parece eximi-lo de uma explícita tomada de posição a respeito dos paradigmas em pugna no campo da história cultural dos anos oitenta). O autor delineia da seguinte forma seu objeto de estudo: “El método parece recomendar un amor convincente a la ciencia y al pueblo. ¿Y no es lo que motiva en principio el presente trabajo: comprender en los gestos del oficio, los cuchicheos del taller, los desplazamientos del trabajo, las configuraciones y los reglamentos de la fábrica los juegos de sujeción y de resistencia, definiendo a la vez la materialidad de la relación de clases y la idealidad de una cultura de lucha? (Rancière, 2010, p. 38).Grifo meu. Estas palavras são um aceno de cumplicidade para a história social inglesa, enfocada na experiência de homens e mulheres comuns, concebidos como os habilidosos e imaginativos agentes voluntários de uma involuntária determinação material e histórica. Mas o gesto de Rancière não está isento de ironia, afinal, poucas páginas antes, o autor tecera comentários ácidos em alusão a certo estilo de abordagem que encontra ressonância nas obras de E.P. Thompson: “Unos han fijado en sepia la fotografía-recuerdo del joven movimiento obrero en vísperas de sus nupcias con la teoría proletária (…) A la solemne admiración por los soldados desconocidos del ejército proletario han venido a unírsele la curiosidad enternecida por la vida de los anónimos y la pasión nostálgica por los gestos acabados del artesano o el vigor de las canciones y de las fiestas populares” (Rancière, 2010, p. 22). Grifos meus. Ao ler estas considerações não poderíamos deixar de relacioná-las com algumas passagens da Formação da classe operária inglesa, como aquela na qual Thompson conclui que a partir de 1830 “veio amadurecer uma consciência de classe, no sentido marxista tradicional, mais claramente definida, com a qual os trabalhadores estavam cientes de prosseguir por conta própria em lutas antigas e novas” (Thompson, 1987, v. III, p. 307). Grifos meus. No prefácio desse mesmo livro encontramos, ainda, outra passagem que bem poderia exemplificar aquela “curiosidade enternecida” que Ranciére mencionara criticamente. Ali, Thompson reivindica o “pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão ‘utopista’ e até os seguidores enganados de Joanna Southcott” (Thompson, 1987, p.42).
De forma um pouco mais elusiva, o autor da Noche de los proletarios… também esboça precauções que bem poderiam ser aplicadas aos chamados paradigmas indiciários e interpretativistas. Se a intenção de Ranciére não é reproduzir fotografias em sépia de um emergente movimento operário prestes a desposar a teoria proletária, ele tampouco deseja oferecer o retrato de uma cultura popular da qual importam, em última instancia, seus aspectos massivos e generalizáveis por sobre os desvios pitorescos dos seus “portadores”. Ranciére desconfia dos procedimentos analíticos que, em busca da muda verdade da palavra operária, em busca do seu autêntico universo de referências, terminam “raspando” espessas camadas de supostos palavrórios e simulacros até atingirem o substrato de uma cultura radicalmente outra: a cultura plebeia. “¿Qué significa esta fuga hacia adelante que tiende a descalificar la verborrea de toda palabra proferida en beneficio de la elocuencia muda de lo que no se entiende?” (Rancière, 2010, p. 39). Grifo meu. Não é, no final das contas, uma espécie de “eloquência muda” o que as posturas indiciárias e interpretativistas procuram reconstruir com tanto afinco? Responder a esta questão exigirá retomar breves exemplos de ambos os enfoques.
Em referência ao seu trabalho sobre os benandanti[1] do Friul (Los benandanti. Brujería y cultos agrarios entre los siglos XVI y XVII), Carlo Ginzburg sugere que a detecção, nos textos inquisitoriais, de relações propriamente dialógicas e de divergências autênticas entre processados e acusadores indicam a existência de uma “camada cultural que era totalmente estranha aos inquisidores” (Ginzburg, 1990, p. 15). É realmente bastante provável, como argumenta o autor, que os funcionários do Santo Ofício no Friul tenham se defrontado com uma vida religiosa camponesa que os encheu de perplexidade e desconcerto. Uma vida religiosa que deixou suas marcas nos registros produzidos pelos tribunais da Inquisição. A questão, no entanto, é indagar sobre o estatuto atribuído por Ginzburg a essa “camada cultural” oculta que teria transbordado o ambiente controlado e repressivo no qual os textos inquisitoriais eram produzidos. Para o historiador italiano, a “realidade cultural conflitante” que transpirava dos processos da Inquisição era a de “homens e mulheres” que se afastavam dos estereótipos estabelecidos por seus juízes. A asserção de Ginzburg é plausível, afinal de contas os estereótipos sempre costumam falhar quando se tenta fixá-los sobre realidades particulares que funcionam de acordo com seus próprios termos. O problema, contudo, reside no fato de que o reconhecimento da particularidade desses “homens e mulheres” é em seguida mortificado por um ímpeto interpretativista que instaura arquétipos – mais flexíveis, é verdade, que os estereótipos da Inquisição – recolhidos no suposto fundo religioso único e original das crenças europeias pré-cristãs. Às vezes tudo parece se passar como se estivéssemos diante de dois mundos radicalmente opostos. Um deles, o dos espelhismos e representações interessadas, é habitado pelos inquisidores; já o outro, das crenças pré-sabáticas de raiz pré-cristã, é povoado com ingênua felicidade pela plebe, que o faz transparecer em cada rubor, confissão ou artifício registrado pelos tribunais da Inquisição. Quando ambos os mundos se encontram, só resta ao segundo abrir caminho em meio a verborreia normalizadora da Inquisição para dar um indício fugaz de sua pureza e depois perder-se na marcha da história até que um pesquisador sagaz, munido dos marcos de legibilidade adequados, possa finalmente decifrá-lo.
Em se tratando de interpretações, será sempre pertinente a pergunta sobre o quanto de arbitrariedade pode haver em nossos marcos de legibilidade. E ainda quando estes marcos forem verossímeis, como é o caso na obra de Ginzburg, caberá uma questão de fundo a respeito do que concebemos como “crenças” e “culturas”, que são o objeto das nossas interpretações. Quando falamos de crenças e culturas, nos referimos a quê? À mobilização mais ou menos inventiva de certos elementos da realidade em conjunturas saturadas por muitas determinações? Ou, num sentido alternativo, fazemos referência a repertórios circunscritos de significados que precipitam sobre a vida coletiva balizando seu desenrolar? A primeira acepção nos convoca a observar a dimensão pragmática da vida social, na qual o dado se transfigura no criado e o significado, portanto, ganha vida e relevância em sua própria transubstanciação dialógica. Já a segunda acepção nos coloca diante da necessidade de fixar universos representativos dos quais a ação humana seria mera função – ou inscrição – e perderia, por conseguinte, seu interesse enquanto afirmação existencial radicalmente contextual e potencialmente criativa. No limite, os voos teóricos de Ginzburg parecem propender neste segundo sentido: o importante num ato de fala é que ele nos dá acesso a repertórios culturais específicos, tanto mais valiosos do ponto de vista científico quanto melhor possamos demonstrar sua vinculação a um “mundo” oculto de crenças disseminadas. Mas se quisermos ser justos com o autor dos Benandanti… deveremos reconhecer que para além dos eventuais arroubos generalizantes de mitologia comparada, ele nos oferece personagens vivazes e irreverentes. Talvez a necessidade de respaldar o que dizem esses personagens na rica constelação das crenças populares do início da Idade Moderna seja o preço a ser pago por um historiador que pretende atribuir o máximo de densidade, contexto e sentido aos “indícios” rarefeitos duma singularidade “cultural” que seria transformada substancialmente durante os séculos XVI e XVII pelos ventos da Contra Reforma.
Mesmo quando as reticências teórico-metodológicas de Rancière possam ser aplicadas, com diferente intensidade, tanto ao “paradigma indiciário” quanto às abordagens hermenêuticas, são estas últimas que padecem mais fatalmente das vicissitudes inerentes a qualquer analítica baseada em “raspagem”. Para chamar a atenção sobre essas vicissitudes – e, consequentemente, evidenciar a singularidade da alternativa metodológica delineada por Rancière – retomarei a título de ilustração algumas teses defendidas e exemplificadas por Darnton em seu célebre e controverso livro O grande massacre de gatos… Esta, como se sabe, é uma obra chave para compreender as motivações teóricas de um Novo Historicismo influenciado pelo diálogo com a antropologia estadunidense de orientação hermenêutica e textualista dos anos setenta e oitenta.
No ensaio que inspira o título do seu livro, Darnton recupera o relato autobiográfico de Contat, operário tipográfico francês que, por volta de 1730, empreendeu ao lado dos seus colegas de oficina uma grande caçada de gatos na rua Saint-Séverin, em Paris. Contat e outros companheiros de ofício, descontentes com o tratamento humilhante que lhes destinava o patrão, decidiram assolar suas noites de sono com miados estridentes e insidiosos. Sem poder dormir há dias, o patrão achou por bem autorizar seus funcionários a desencadearem uma perseguição implacável aos gatos da vizinhança. No contexto desta caçada, a morte de grise, gata de estimação da esposa do patrão, consumou o que Darnton interpreta como um ato burlesco de vingança simbólica ancorado em diversos elementos da cultura popular francesa. Tais elementos, advindos de um imaginário eclético no qual confluiriam referências à caça das bruxas, ao carnaval e aos charivaris, permitiram, por um lado, a associação da esposa do patrão com a figura da bruxa e por outro, a identificação metonímica entre sua genitália e a gata grise (a conotação sexual do vocábulo francês chatte – gata – faz referência à vagina). Esta manipulação astuta de símbolos abriu caminho para uma espécie de estupro simbólico altamente ofensivo à honra do patrão. Este, contudo, não pôde perpetrar qualquer represália diante da insolência dos seus subordinados, afinal “nada” havia acontecido concretamente, ou seja, os significados tinham sido “disfrazados con una metáfora” (Darnton, 1995, p. 113). “Pienso que es válido – comenta Darnton a respeito de seu ensaio sobre a matança de gatos – concluir que “la broma funcionó porque los muchachos lograron aprovechar tantas variantes de temas culturales comunes. Realizaron una puesta en escena virtuosa: un simbolismo polisémico compuesto por un ritualismo polimórfico” (Idem).
Os críticos de Darnton o censuraram, entre outras razões, por tomar acriticamente o relato do tipógrafo Contat como a descrição transparente de um fato real – e não como ponto de vista interessado de apenas um dos seus protagonistas – (Chartier, 1995) e por fazer generalizações apressadas com base em contextualizações arbitrárias (Levi, 1995). Em resposta a seus exegetas, Darnton afirmou reconhecer a eventual pluralidade de significações em jogo nas circunstâncias por ele analisadas, mas observou que, não obstante a multivocidade de qualquer ritual, o historiador pode explorar os diversos significados em jogo e “trazar un mapa con cierta precisión, aunque no puede saber precisamente como empleaba [los significados] cada uno” (Darnton, 1995, p. 114). Apesar das ressalvas de Darnton, seu método de abordagem continua padecendo de falências notáveis que foram sintetizadas com precisão pelo historiador Giovanni Levi: “las relaciones entre patrones y trabajadores, el simbolismo de los gatos, la visión de mundo del pueblo y de la burguesía están dados, contexto inmóvil que no se modifica: aquello que el artículo explica es pues la muerte violenta de algún gato en un cuadro ya visto de cultura carnavalesca y de revuelta obrera, conocidos a través de estudios mucho más importantes e innovadores” (Levi, 1995, p. 79-80). A rebelião popular “simbólica” orquestrada pelos tipógrafos da rua Saint-Séverin é relevante para Darnton porque constitui a mise en scène particular de um repertório simbólico e de um sistema de posicionalidades sociais selecionados pelo próprio historiador para fazer as vezes de marco estrutural constante, subjacente aos detalhes variáveis das narrativas individuais (cf. Darnton, 1995 p. 115). Em última instância, os massacradores de gatos da rua Saint-Séverin só são atraentes para a historiografia de Darnton na medida em que, às custas de “raspar” detalhes narratológicos e situacionais, seja possível fazê-los aderir de forma coerente a sua (pré-)suposta identidade coletiva.
Carlo Ginzburg precisou atravessar o véu opaco dos processos inquisitoriais até encontrar as vozes camponesas não-controladas que lhe permitiram embarcar nos passeios noturnos dos benandanti do Friul. Robert Darnton, por sua vez, construiu um mapa de referências simbólicas e jogos de significados que operou, no contexto de sua análise, como background dissipador da névoa de estranheza que envolvia aquelas jornadas conspiratórias e brutais de 1730 na rua Saint-Séverin. Descolado das inclinações indiciárias e hermenêuticas, Jacques Ranciére adentra à noite dos proletários parisienses do século XIX por vias alternativas. O acontecimento histórico que motiva sua análise é, precisamente, a irrupção no mundo da escrita de pessoas “que se suponía vivían el mundo ‘popular’ de la oralidad” (Raciére, 2010, p. 7). Tal acontecimento, do qual Ranciére se propõe a fazer sentir as vibrações poéticas e o conteúdo intelectual, foi proporcionado pela disseminação de doutrinas e debates orientados a ponderar e ingerir sobre a realidade social da volumosa classe operária parisiense numa conjuntura que poderíamos chamar de “revolucionária”: os anos trinta do século XIX. Trata-se de uma conjuntura revolucionária porque se desdobra na antessala da Comuna de Paris, abarcando um período que vai desde a Revolução de Julho de 1830 até pouco depois da Revolução Francesa de 1848, que pôs fim ao reinado de Luis Felipe I e deu origem à Segunda República. Difundiam-se, nessa época, diversas seitas políticas e movimentos sociais que posteriormente seriam classificados como “utópicos” pelos ideólogos do socialismo autoproclamado “científico”. Entre as expressões “utópicas” do jovem movimento operário encontrava-se o sansimonismo, professado por boa parte dos protagonistas das noites proletárias estudadas por Rancière.
Os autores das fontes históricas abordadas no livro – basicamente cartas pessoais, artigos publicados em jornais de trabalhadores e relatórios elaborados pelos apóstolos da família sansimoniana – eram operários que, por volta de 1830, somavam vinte e poucos anos de idade e tinham decidido “cada uno por su cuenta no soportar más lo insoportable” (Ranciére, 2010, p. 19). O insuportável, aqui, não são exatamente as condições de trabalho e de alojamento, ou os salários pagos pela indústria nascente, mas sim a obrigação de trabalhar diuturnamente para abastecer uma máquina de alienação do trabalho que não oferecia qualquer outra perspectiva futura senão a eterna repetição das condições de vida presentes. Os protagonistas da Noche de los proletarios… arrancam à sucessão autoritária de dias de trabalho e noites de reposição das ‘forças úteis’ um quantum de tempo reflexivo suscetível de interromper a reiteração repetitiva da subordinação laboral e fazer florescer, neste interstício, perspectivas pessoais de profundo estranhamento frente à realidade circundante. A noite, uma vez desterrada do estatuto de momento de descanso prévio a nova jornada laboral, torna-se a superfície da qual se valem os proletários de Rancière para empreender a análise do seu próprio tempo; análise que ganha corpo na forma de colunas jornalísticas, poesias e missivas enviadas aos demais colegas sansimonianos.
Ranciére identifica na produção intelectual das noites proletárias uma interrupção do curso “normal” das coisas, “onde se vive já o impossível”: “la suspensión de la ancestral jerarquia que subordina a quienes se dedican a trabajar con sus manos a aquellos que han recibido el privilegio del pensamiento” (Ranicére, 2010, p. 20). A instauração dessa anormalidade criativa é fruto, não obstante, dos esforços de gente “normal”. Ranciére demonstra que, no que diz respeito às suas trajetórias biográficas, origens familiares, regiões de procedência e faixas etárias, os protagonistas do livro refletem a normalidade de uma classe operária em permanente processo de formação. Normalidade que o autor depreende, convincentemente, da análise cruzada dos perfis dos encarcerados na revolução de 1848 e das estatísticas elaboradas por Bertillon em 1833 (cf. Ranciére, 2010, p. 191).
A estrutura da obra de Ranciére é atípica. Não consiste na apresentação e análise progressiva de fontes históricas sobre o plano de fundo de um argumento teórico que encontraria sua culminação ao final do livro sob a forma de conclusões ou postulados bem definidos. La noche de los proletarios se parece mais a uma coletânea de reflexões, debates políticos e intercâmbios de ideias que, dispostos em ordem cronológica, abarcam as dinâmicas internas do sansimonismo a partir do ponto de vista dos seus entusiastas na classe operária. O grande desafio para o autor consiste, portanto, em acompanhar os processos reflexivos através dos quais as imagens eloquentes do glorioso exército solidário de trabalhadores – fabuladas pelos patriarcas saintsimonianos – são recuperadas, negadas e recompostas por pessoas que, mais além de suas aptidões produtivas ou dos símbolos do ofício que professam, identificam na própria existência outros elementos dignos de enaltecimento. Não se trata, então, de raspar as imagens para deixar circular, sob a pompa do heroísmo, “la sangre de una vida más salvaje y más tranquila”: “no escarbar las imágenes para que la verdad aparezca sino moverlas para que otras figuras se compongan y descompongan con ellas” (Ranciére, 2010, p. 37). Ranciére não vislumbra, em suas fontes históricas, qualquer indício de uma verdade encarnada a espera de ser decifrada. Os operários sansimonianos estão plasmando, eles também, seus espelhismos e representações: figuras de um mundo que ainda não é, mas bem poderia ser, não fossem as restrições e determinações impostas pelo cotidiano laboral.
A singularidade das palavras emitidas pelos protagonistas da Noche de los proletarios não reside no fato de elas oferecerem acesso privilegiado a realidade de um mundo outro, mas sim numa verdade mais elementar: elas são o que alguns operários podiam dizer no momento de sua irrupção no mundo da escrita; constituem o registro de suas ambições e expectativas, dos seus novos deslumbramentos. O carpinteiro Gauny, por exemplo, lembra-se das conversas de um domingo ensolarado, ao lado de outros trabalhadores sansimonianos, numa pensão interiorana: “nuestras mil y mil ansias sólo podían expresarse mediante suspiros, emociones múltiples, ardientes, hipótesis elevadas, derrumbadas, poesía, inlucidez metafísica, vehemencia, reticencia, vestigios ideales, byronismo …] La tierra se hundía o nos subíamos a la ola, ya que vimos desplegarse creaciones que no son en absoluto de aquí […]” (Ranciére, 2010, p. 155). Mas o domingo é rapidamente substituído pela alternância dos dias “úteis”, imprimindo na consciência do operário uma tristeza que, nas palavras do mesmo Gauny é “suprema pues es razonada” (Ranciére, 2010, p. 45): o drama desse trabalhador não deriva unicamente da exploração direta do seu corpo e tampouco se circunscreve à violência da opressão política que subordina seus modos de vida. Seu drama também é produto da tensão consciente entre paixões demasiado vastas e possibilidades demasiado estreitas de expressá-las com potência política e legitimidade artística.
O carpinteiro Gauny recebera, em maio de 1832, uma carta de seu amigo, o pedreiro Bergier, na qual este o pressionava, com as seguintes palavras, a viver a verdadeira vida da comunidade sansimoniana: “Pronto tu abandonarás este mundo donde ya no digo lo que dices aún con Victor Hugo: ‘mis días se van de sueño en sueño’. Quién mejor que nosotros para sentir todo lo que hay de doloroso en la expresión de ese verso, nosotros que tantas veces procuramos mostrarnos a la luz sin poder conseguirlo; nosotros que conocemos todos los placeres que Dios ha extendido sobre la tierra y que sin embargo jamás hemos disfrutado más que en nuestra imaginación (…)” (Ranciére, 2010, p. 46). Quem melhor que os próprios operários para enunciar o vasto conteúdo de suas dores? E quem melhor do que eles para prefigurar o mundo onde esses padecimentos já não mais constituiriam uma condição constante e intransponível da existência proletária?
A família sansimoniana foi o lugar no qual muitos trabalhadores encontraram a possibilidade de entregar-se a novos exercícios do espírito, mas também ali suas pretensões foram eventualmente desdenhadas por propagandistas remediados como Vinçard, que numa carta ao “Pai Supremo” Enfantin comenta o seguinte a respeito de um alfaiate alemão, recentemente iniciado na doutrina sansimoniana por um missionário analfabeto: “[se trata de un] [r]azonador nebuloso que se pierde en un cúmulo de hipótesis sazonadas con antiguas citas filosóficas. Ahí tenéis encima uno que es fastidioso […] Yo lo quiero de todas formas, pero sobre todo cuando escucha, lo que no sucede con frecuencia” (Ranciére, 2010, p. 43). Desencontros desta ordem serão frequentes em um movimento político no qual confluem intelectuais marginais desejosos de atender as dores proletárias e operários em busca do segredo das nobres paixões e das possibilidades materiais para poder exercê-las.
Na medida em que a nova religião sansimoniana vai se tornando uma fé popular, é inevitável que seus princípios sejam constantemente apropriados pelas urgências e motivações “contrabandeadas” por cada um dos novos fiés. Não são poucos os que, mesmo cativados pela doutrina e convencidos do grande futuro por ela anunciado, irão demandar à família sansimoniana o apaziguamento de suas carências materiais: pedirão empréstimos, barganharão postos de trabalho e desencadearão, ao fazer tais pedidos, diversos debates doutrinários sobre o sentido do sacrifício, a natureza do egoísmo, a sinceridade da fé e o lugar do trabalho na vida operária. Nas cartas e relatórios que trocavam entre si, os hierarcas sansimonianos lamentavam a confusão que faziam certos trabalhadores entre os objetivos de sua Associação e as práticas caritativas católicas. Censuravam também o egoísmo dos novos fiés, debitado de uma suposta rotina individualizadora, maculada pela constante necessidade de pedir trabalho a outrem em nome da imediata satisfação das necessidades particulares; rotina egoísta cujas vicissitudes deveriam ser amainadas pela apologia da abnegação e do sacrifício material. Os discursos provenientes das esferas hierárquicas mais elevadas da Associação são confrontados pelo autor com algumas perguntas retóricas: “¿Del modo en que se la presenta y la insistencia que se pone en la religiosidad de su principio, la asociación no vuelve siempre a prometer a los proletarios un porvenir de bienestar conseguido con menores esfuerzos? ¿Raymond Bonheur mismo, no pide a la Doctrina tomar a cargo a su familia para permitirle disfrutar en lugar del “pan de la pasión cristiana”, el “pan más dulce de la transfiguración del amor?” (Ranciére, 2010, p. 258). Raymond Bonheur, um dos diretores distritais da Associação sansimoniana, era artista, mas não vivia dos seus quadros e sim de escassas aulas de desenho. Não é um operário, mas seus ingressos se equiparam aos obtidos por quem ele educa e procura converter à Doutrina. Bonheur, menos acomodado que outros diretores, não concebe tão claramente uma linha divisória entre a conversão autêntica ao amor pelo Outro e o recebimento de contrapartidas materiais num contexto marcado pela insegurança econômica. Este artista talvez pressinta, como sugere Ranciére, “que la cuestión del egoísmo no se deja reducir a una cuestión de moral, que este nuevo cristianismo que quiere ser la religión de la era industrial no es, sin embargo, contemporáneo a la era proletaria” (Ranciére, 2010, p. 255).
A forma como Ranciére recupera o debate sansimoniano sobre os limites da caridade e os fundamentos do suposto egoísmo operário expressa um estilo de análise e argumentação recorrente ao longo do livro. O autor acompanha o desenrolar dos argumentos de seus personagens pontilhando a exposição e contextualização das suas falas com sequências de perguntas que retomam e sintetizam pontos de vista recolhidos em momentos anteriores da narrativa operando, assim, uma espécie de retotalização crítica das perspectivas em jogo. Os textos se interpretam e interpelam uns aos outros num dinâmico jogo de espelhos que permite a circulação simétrica da palavra entre um conjunto de sujeitos igualmente interessados – ainda que por razões distintas – em refletir sobre seu tempo, seu lugar no mundo e suas perspectivas de futuro. Trata-se, se quisermos, de uma interpretação “na cultura”, por oposição à interpretação das culturas. Aqui, não poderíamos estar mais distantes do interpretativismo de matriz geertziana, que nos convoca a “salvar o ‘dito’ [no discurso social] da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis” (Geertz, 1989 [1973], p.15). Ranciére, pelo contrário, não pretende fixar nada, mas sim “fazer durar uma aceleração do tempo” e deixar que nela proliferem uma multidão de possíveis sem jamais reificá-la em formas “pesquisáveis” como, por exemplo, “a cultura”. O que o autor da Noite dos Proletários retotaliza em seu livro não é o apanágio de imagens e significados disponível ao pensamento dos homens e mulheres de determinada época – o que alguns chamam de “cultura” –, mas sim um instante no qual o próprio sentido do mundo estava sendo engendrado em meio a uma polifonia audível – ou legível – e no marco de debates que jamais cessariam por completo. Federico Galende acerta na mosca ao afirmar que a Noite dos Proletários não pretende recuperar “a voz dos que não tem voz”, mas sim apresentar “todas esas voces que se traban unas a otras mientras discurren a un costado de la explotación que las estandariza” (Galende, s.n.). Ranciére capta e encena em seu livro esse instante no qual a palavra é literalmente tomada por motivações inesperadas, desatando intensos debates sociais cuja apresentação conjunta, no tecido do texto escrito, abole a hierarquia dos discursos desvelando, assim, sua igualdade poética.
Mais de trinta anos após ser publicada em francês, a Noite dos Proletários ganhou sua primeira tradução ao castelhano graças à editora Tinta Limón. Já estamos distantes, conforme afirma o próprio Ranciére em um post scriptum de 1997, das circunstâncias “en las cuales y contra las cuales” o livro foi escrito. Para o autor, tanto o positivismo histórico, preocupado em fazer a clara separação entre fatos e representações, quanto o discurso dos “novos filósofos”, que condenava as grandes narrativas e desprezava qualquer delírio interessado em fundar princípios de transformação da realidade, conformam, hoje, “una sola y misma sabiduría nihilista, señalando que nada puede ser nunca sino lo que es” (Ranciére, 2010, p. 25). No contexto atual, Ranciére sugere que as histórias contadas em seu livro adquirem nova radicalidade, pois para romper o nihilismo imperante é necessário prestar atenção nos esforços de quem, sem ter o pensamento como profissão, encontrou uma forma de romper a divisão do tempo e do pensamento colocando “en cuestión la evidencia de las relaciones entre las palabras y las cosas, el antes y el después, el consenso y el rechazo” (Idem). A edição em castelhano da Noite dos Proletários é seguramente um ato político em favor da análise desses momentos nos quais a performance da igualdade no plano da linguagem arrefece posicionalidades sociais, debilita a univocidade dos significantes e antecipa outros marcos nos quais a vida coletiva possa transcorrer.
A publicação da Noite dos Proletários em espanhol não é tardia. Ela se inscreve em debates político-teóricos atuais. Fazendo eco da motivação de ampliar o universo do discurso deste livro, sugiro que se trata de uma obra relevante para questionar propositivamente os marcos analíticos e as orientações políticas que ainda orientam uma parte significativa dos estudos recentes em ciências humanas. Neste sentido, a Noite dos Proletários oferece um estilo de análise que preserva a dinamicidade dos processos de enunciação, evitando a tentação de fixa-los como inscrições de uma cultura para, em vez disso, tomá-los como momentos de transmutação dos sentidos nos quais novos marcos de referência são criados. Mas onde reside a importância de uma modalidade analítica que nos fala tão pouco sobre as sólidas realidades da subordinação e que descreve tão escassamente os mecanismos de reprodução da sociedade e da cultura? Passadas tantas noites de elucubração, nada mudou objetivamente para os proletários de Ranciére. No entanto, observa o autor, “nada será como antes (…) pues es en esos momentos cuando el mundo real vacila en la apariencia, más que en la lenta acumulación de experiencias cotidianas, cuando se forma la posibilidad de un juicio sobre ese mundo”.
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[1] No final do século XVI, o inquisidor das dioceses de Aquileia e Concordia registrou uma série de declarações que provariam a existência de uma seita cujos membros se autodenominariam benandanti. Suas crenças distam bastante das classificações estabelecidas pela demonologia erudita que inspirava os processos inquisitoriais da época. De acordo com as confissões obtidas no Friul e analisadas por Ginzburg (2005[1966]), a seita agruparia dois tipos de indivíduos. Por um lado, estão os homens que nasceram envoltos pela membrana fetal, investidos do dom de empreender viagens espirituais noturnas para lutar contra bruxos e bruxas que poderiam prejudicar as colheitas. Por outro, encontram-se as mulheres que, havendo nascido nas mesmas condições, realizam procissões noturnas em momentos específicos do ano não para combater os bruxos, mas sim para ver os mortos que vagam pela escuridão.
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