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Gilles Deleuze e Félix Guattari leitores de Marx: a inspiração marxista do conceito de desejo desenvolvido no Anti-Édipo

Por Guillaume Mejat (tradução: Grupo de Estudos em Antropologia Crítica)

Ao reencontrar o ser objetivo e ao reestabelecer o processo de produção que define o verdadeiro desejo – o desejo “saudável”, poderíamos dizer – nós reencontramos um sujeito fluido, que pode passar de uma atividade à outra. Um sujeito do qual Marx nos fala seguidamente sob a denominação de “indivíduo total”.

O texto também pode ser baixado em PDF no idioma original e em português.

Um pouco mais sobre marxismos, Guattari e Deleuze: Deleuze, Guattari e Marx (Entrevista com Isabelle Garo e Anne Sauvagnargues); Coyuntura o acontecimiento: la subjetivación revolucionaria en Guattari, Althusser y Deleuze (Guillaume Sibertin-Blanc); La théorie de l’Etat de Deleuze et Guattari: Matérialisme historico-machinique et schizoanalyse de la forme-Etat (Guillaume Sibertin-Blanc)

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Gilles Deleuze e Félix Guattari leitores de Marx: a inspiração marxista do conceito de desejo desenvolvido no Anti-Édipo

No primeiro capítulo de sua obra intitulada O Anti-Édipo, Gilles Deleuze e Félix Guattari sentam as bases de uma nova concepção de desejo que se opõe, segundo eles, a uma concepção clássica, que é qualificada como idealista e que havia dominado a história da filosofia até então. Eles censuram a tradição idealista por pensar o desejo negativamente, fazendo-o derivar de uma suposta falta (manque). Os dois autores procuram, em oposição a esta tradição, devolver ao desejo sua dimensão positiva. Empreender tal tarefa exige defender a tese segundo a qual o desejo é um processo de produção. Para defender essa tese eles retomam os conceitos e os desenvolvimentos presentes na obra de Marx, que é evocada sucessivas vezes, de forma explícita ou implícita, ao longo do primeiro capítulo do Anti-Édipo.

Consideramos que seria interessante estudar a maneira como Gilles Deleuze e Félix Guattari fazem uso, no primeiro capítulo do Anti-Édipo, do pensamento de Marx. Não nos deteremos sobre todas as referências feitas à obra de Marx em dito capítulo para poder concentrar nossa atenção principalmente sobre a definição de desejo como processo de produção. Tal definição constitui um ponto central na luta de Deleuze e Guattari contra o idealismo. Em seguida, procuraremos entender uma referência a Marx que parece, a primeira vista, estranha, posto que alude a uma noção que não faz parte daquelas que estamos acostumados a atribuir ao pensador alemão: “Como diz Marx, não existe falta, existe paixão como “ser objeto natural e sensível”” 1. Para concluir, tentaremos identificar, levando em conta toda a reflexão desenvolvida ao longo do texto, até que ponto Deleuze a Guattari seguem Marx.

O desejo como processo de produção

No Anti-Édipo, o ponto de partida de Gilles Deleuze e Félix Guattari é a definição de desejo como um processo de produção, processo que deve ser entendido em dois sentidos.

Num primeiro sentido, processo quer dizer, segundo eles, “colocar o registro e o consumo na própria produção, fazer deles produções de um mesmo processo” 2 . Aqui reencontramos Marx e sua crítica da economia política, que vê a produção, o consumo, o intercâmbio e a distribuição como categorias independentes que às vezes se articulam, mas que num primeiro momento estão separadas. Esta crítica é claramente formulada por Marx na Introdução a Crítica de Economia Política de 1857. Neste texto ele propõe, como alternativa ao esquema idealista da economia política, um conceito de processo de produção que integra outros elementos (consumo, distribuição e intercâmbio) no seio da categoria de produção. Para ele, assim como para Deleuze e Guattari, qualquer parte da produção é produção.

A enunciação do segundo sentido de processo acompanha, ainda, os passos de Marx e é indissociável da primeira definição.

Com efeito, para Deleuze e Guattari a adequada compreensão do segundo sentido de processo evita que caiamos no esquema idealista que mencionamos mais acima. Este segundo sentido é formulado pelos autores da seguinte maneira: “homem e natureza não são como dois termos confrontados, mesmo que entre eles procuremos estabelecer relações de causação, de compreensão ou de expressão (causa-efeito, sujeito-objeto, etc.); pelo contrário trata-se de uma única e mesma realidade essencial do produtor e do produto. A produção como processo transborda todas as categorias ideais e forma um ciclo que se relaciona com o desejo enquanto princípio imanente” 3. Aqui encontramos o Marx dos Manuscritos de 1844 e sua posição “naturalista”. Uma passagem situada no final do primeiro manuscrito enuncia a questão: “A natureza, ou seja, a natureza que não é ela própria o corpo humano, é o corpo não orgânico do homem. Dizer que o homem provém da natureza significa afirmar que a natureza é o seu corpo; um corpo com o qual o homem deve permanecer constantemente em contato para não morrer. Dizer que a vida psíquica e intelectual do homem está indissoluvelmente ligada à natureza é o mesmo que dizer que a natureza está ligada a ela mesma, porque o homem é uma parte da natureza” 4. Este naturalismo não é fácil de entender. Em que sentido esta concepção da união essencial do homem com a natureza nos ajuda a sair do idealismo? Para compreender este ponto, podemos seguir o comentário de Gérard Granel, citado por Deleuze e Guattari em suas notas. Este comentário dos Manuscritos de 1844 se encontra em um artigo intitulado A ontologia marxista de 1844 e a questão da separação (L’ontologie marxiste de 1844 et la question de la coupure). Neste artigo, Granel mostra que Marx, em 1844, se apoia, antes de qualquer coisa, sobre a filosofia de Feuerbach para sair do esquema idealista que distingue sujeito de objeto. Este esquema idealista teve em Hegel seu último grande representante. Mas qual seria o pensamento feuerbachiano sobre o qual se apoiaria Marx segundo a perspectiva de Granel? A este respeito, Granel escreve o seguinte: “quando Feuerbach afirma “eu preciso de ar para respirar”, ele não pretende fazer a constatação trivial da dependência de uma função fisiológica no que diz respeito ao ambiente físico. A questão, na verdade, é estabelecer uma unidade essencial: “Um ser que respira é impensável sem o ar, um ser que vê é impensável sem a luz…”. Isto significa que a luz, na abertura na qual qualquer coisa é dada a ver, não é uma abertura que poderia se produzir como um movimento das coisas, um evento no real, mas uma abertura sobre o modo do sempre-já 5. Neste texto, Granel nos mostra como Feuerbach sai da concepção da “relação entre o homem e a natureza”. Quando falamos de “relação” se subentende que existem dois termos (o homem e a natureza) e mesmo se esta relação é enunciada como necessária (aqui esta relação necessária seria aquela do homem com o ar), ela acaba nos fazendo perder o que Granel chama de “unidade original do ser e do homem”, ou seja, a unidade original da natureza e do homem. Esta crítica feuerbachiana é uma crítica da metafísica moderna e de sua concepção do homem. Segundo Granel, esta concepção metafisica do homem foi fixada por Descartes em sua definição da essência do homem como coisa que pensa. Coube a Hegel realizar filosoficamente dita perspectiva. Esta metafísica da subjetividade e do ser pensante define a linguagem da razão moderna que nos conduz ao equívoco ao fazer-nos crer em uma distinção sujeito-objeto, na existência de uma interioridade que preexiste à sua inscrição no mundo, na exterioridade. Isto nos faz perder o terreno primeiro da experiência humana, o “sensível” ou ainda a “passividade” ou a “necessidade” que “testemunha que o homem não está em uma “relação” 6 nem consigo mesmo nem como as coisas”. Mas como podemos representar esta concepção anti-metafísica tão contrária à estrutura da linguagem? Como pensar o ser-no-mundo do homem sem a categoria “relação”? Granel nos esclarece este ponto ao desenvolver um exemplo feuerbachiano sobre a respiração: “Se eu respiro, eu recebo do ar não somente o que eu respiro, mas também a minha própria respiração”. Então isto não é nunca uma simples troca de oxigênio e CO2. O homem só respira, ou seja, aspira, retém profundamente e relaxa lentamente o abdome como uma resposta ao sopro do ar: esta forma-de-mundo que eu denomino “ar” não é uma mistura de gases, mas uma modalidade do ser-sobre-a-terra, da mesma natureza e da mesma extensão que as cores das madeiras, elas também respiradas, e que a luz que enche os pulmões dos olhos7. A respiração não é, então, uma relação de troca entre o interior (os pulmões) e o exterior (o ar). O ar é uma “modalidade do ser-sobre-a-terra” que existe numa unidade essencial do homem e da natureza. Granel entende tudo isso como o conjunto da vida e é esta perspectiva que lhe permite afirmar que “o mundo detém minha alma desmembrada em seu âmago; assim eu recebo um eu-mesmo que não posso pensar como separado de nada”. Permanecemos nas coisas antes de qualquer relação 8. Granel sugere que Marx assimila a revolução teórica feuerbachiana. Contudo, em Marx o reconhecimento da importância teórica da obra de Feuerbach vai de mãos dadas com uma crítica e com uma vontade de transcendê-la. A este respeito nós ainda podemos seguir o artigo de Granel, que aborda a questão num tópico intitulado Do “sensível” à “indústria”: o ser como produção. O conteúdo do tópico fica explícito no próprio título: trata-se de mostrar que a crítica de Marx a Feuerbach consiste em atacar o conceito feuerbachiano de “sensível” – muito teórico e ainda tributário da metafísica moderna – para lhe conferir um sentido mais prático graças à categoria de produção. Marx formula esta vontade teórica na quinta tese sobre Feuerbach: “Feuerbach, não satisfeito com o pensamento abstrato, faz um apelo à intuição sensível; mas ele não considera o mundo sensível enquanto atividade prática concreta do homem9”. A revisão do artigo de Granel deve nos permitir compreender um pouco melhor a leitura deleuzo-guattariana dos Manuscritos de 1844. Granel nos diz que a questão que deve nos ocupar é, fundamentalmente, a seguinte: “como e em que sentido o ser pode aparecer para Marx como produção? 10” Segundo ele, a resposta a esta questão se encontra na interpretação da equação formulada por Marx no primeiro manuscrito: “mas a vida produtiva é a vida genérica11”. Marx desenvolve esta ideia ao definir o vivente através da atividade (como Aristóteles, um dos seus mestres) e ao definir o modo de atividade de uma espécie viva como aquilo que nos permite defini-la. O modo de atividade vital de uma espécie define seu caráter genérico e Marx nos diz que “a atividade livre, consciente, é o caráter genérico do homem12”. Enquanto o animal se confunde com sua atividade vital, o homem faz dela o objeto de sua consciência e confronta de forma consciente e livre os produtos do seu trabalho. Ainda que o homem seja, junto com os animais, uma parte da natureza, um ser natural, ele dispõe de uma consciência que é fruto, por sua vez, de uma atividade natural. Esta especificidade do ser humano lhe permite criar para si um mundo que lhe é próprio. Marx nos mostra, assim, que existe uma vida especificamente humana. Enquanto ser genérico, ou seja, enquanto ser vivo consciente, o homem pode agir voluntariamente para os outros homens e pode produzir o mundo de determinada maneira. Em outras palavras, o homem pode recriar, transformar o mundo para ele e para os outros membros da sua espécie e inclusive para outras espécies porque, como diz Marx, ele (o homem) “sabe produzir à medida de todas as espécies e sabe aplicar ao objeto, em qualquer lugar, sua natureza inerente13 ”. Assim o homem se transforma a si mesmo e ao seu próprio gênero. Podemos, a partir de agora, regressar sobre o texto de Deleuze e Guattari que diz: “a indústria não está mais presa numa relação extrínseca de utilidade, mas sim em sua identidade fundamental com a natureza como produção do homem e pelo homem. Não mais o homem como rei da criação, mais sim o homem como aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas e de todos os gêneros (…) eterno auxiliar das máquinas do universo 14”. A partir daí podemos compreender como Deleuze e Guattari conseguem se apoiar na leitura dos Manuscritos de 1844 para construir seu conceito de desejo como processo de produção. Isto é o que lhes permite definir o “esquizo”, modelo conceitual do ser desejante, como “Homo natura”. É necessário acrescentar que esse “esquizo” será também qualificado como “Homo historia”, visto que Deleuze e Guattari não seguem Feuerbarch, mas sim Marx, que transcende Feuerbach ao fazer do “sensível” a produção – ou a indústria –, originando, assim, a equação “Natureza=Indústria, Natureza=História”. Também é interessante notar que Deleuze e Guattari se apresentam como os “Marx da psiquiatria”, superando o “Feuerbach da psiquiatria”, o doutor Clérambault: “Clérambault é o Feuerbach da psiquiatria no sentido em que Marx diz “na medida em que Feuerbach é materialista, nele já não podemos encontrar a história e na medida em que ele leva a história em consideração ele não é materialista. Uma psiquiatria verdadeiramente materialista se define por uma dupla operação: introduzir o desejo no mecanismo, introduzir a produção no desejo15”.

A partir deste pensamento do desejo como processo de produção tentaremos compreender em que consiste a noção marxista de “paixão”, sobretudo presente nos Manuscritos de 1844. Em seguida veremos como Deleuze e Guattari entendem a categoria em questão.

A noção de paixão do “Marx de 1844” como modelo do conceito deleuzo-guattariano de desejo

É necessário citar novamente a frase de Deleuze e Guattari que faz referência à paixão em Marx: “como diz Marx, não existe falta, existe paixão como “ser objeto natural e sensível””. Nesta frase dois elementos aparecem como essenciais: a paixão se opõe à noção de falta e a paixão decorre do “ser objetivo do homem”. Esses dois elementos estão ligados, o que parece evidente quando olhamos a passagem sobre a qual se debruçam nossos autores. Dita passagem se encontra no terceiro dos Manuscritos de 1844: “A dominação do ser objetivo em mim, o fluxo sensível de minha atividade essencial é a paixão que devém, assim, atividade do meu ser16”. Como já vimos, ao pensar o homem como ser objetivo, Marx suprime, na esteira de Feuerbach, a noção de relação (entre sujeito e objeto, entre interioridade e exterioridade). Suprimir a “relação”, a concepção do homem como estando numa relação com o mundo para, em vez disso, estabelecer a unidade essencial do homem e do mundo é o mesmo que suprimir, de um só golpe, a noção de falta. Deleuze e Guattari conectam essa concepção da necessidade ou do desejo como relação do homem com o mundo à tradição idealista (aquela que Gérard Granel denomina tradição metafísica moderna) da qual decorre a psicanálise de Sigmund Freud (sempre tributária da distinção sujeito-objeto, sendo o desejo, segundo ele, a tentativa de reencontrar um objeto perdido). Esta supressão da “relação” entre o sujeito (o homem) e o objeto (o mundo ou uma parte dele) assenta sobre uma concepção do desejo difícil de expressar, dado que nossa linguagem está marcada pelo pensamento metafísico moderno do qual fala Granel. Para tentar especificar o que pode ser esse desejo que é como a paixão do “Marx de 1844”, é necessário recorrer às imagens. Podemos, por exemplo, dizer que no quadro desse tipo de desejo o ser desejante é também “desejado” por aquilo que ele encontra, ou seja, este ser se engancha nas coisas do mundo que cruzam seu caminho ou é enganchado por elas. Este processo se dá de forma simultânea, tornando improcedente a distinção sujeito-objeto 16. Assim, nossos autores dizem que “o desejo está sempre próximo das condições de existência objetiva que ele desposa e segue. O desejo não sobrevive a essas condições, ele se desloca com elas 17”. É neste sentido que o desejo é sempre social e não pode ser circunscrito à família. O indivíduo não vive somente de sua família e a família está sempre construída pelo social. Contudo, é necessário acrescentar que Deleuze e Guattari, da mesma forma que Marx, não se limitam a evocar a unidade essencial do homem com a natureza. Eles também lançam mão da categoria de produção ou indústria. O desejo, para eles, se desdobra numa unidade essencial do homem e da natureza que existe sobre o modo de produção. É por isso que podem falar do “ser objetivo do homem para o qual desejar é produzir, produzir na realidade 18”. Nesta perspectiva, o desejo como processo de produção de Deleuze e Guattari pode ser considerado como uma reprise da noção de paixão elaborada por Marx em 1844 ou, melhor dizendo, como um desenvolvimento daquela noção; um desenvolvimento que Marx não teve tempo de efetuar e que nossos autores aproveitam no Anti-Édipo.

Agora procuraremos ver até que ponto Deleuze e Guattari seguem Marx (sobretudo o “jovem Marx”, aquele de 1844) e se eles avançam na esteira de uma teoria política que possa ser enunciada em termos marxistas ou, em todo caso, que se aproxime da teoria política marxista.

A alienação como parte da objetividade

Se Deleuze e Guattari seguem o “jovem Marx” no que diz respeito ao conceito de vida genérica, então pode ser que eles o sigam em sua teoria da alienação que, segundo Granel, apresenta-se como alienação desta vida [genérica].

Uma passagem que nós iremos citar parcialmente nos mostra que Deleuze e Guattari seguem Marx na teoria da alienação— em todo caso, em certa leitura da teoria da alienação: “o desejo devém então esse medo abjeto da falta. Mas não são precisamente os pobres ou os despossuídos que dizem isso. Estes, pelo contrário, sabem que estão próximos da erva e que o desejo tem “necessidade” de poucas coisas, não essas coisas que lhes são deixadas, mas das próprias coisas que lhes são incessantemente tiradas, e que não constituem uma falta no coração do sujeito, mas sim a objetividade do homem, o ser objetivo do homem para quem desejar é produzir, produzir na realidade. (…) Não é o desejo que exprime uma falta molar no sujeito, é a organização molar que destitui o desejo de seu ser objetivo19 ”. O desejo não é então a falta, mas ele devém falta numa certa organização da produção social. A organização da produção social que está em questão no primeiro capítulo do Anti-Édipo é a organização capitalista e, nessa passagem que nós acabamos de citar, o termo “despossuídos” parece fazer referência à teoria marxista da alienação no sistema capitalista. De qualquer forma, é necessário insistir no fato de que se esta passagem faz referência à teoria da alienação, ela o faz sempre do ponto de vista da leitura dos Manuscritos de 1844. De fato, Deleuze e Guattari falam, nesta passagem, da despossessão da objetividade. Segundo eles, o que os trabalhadores alienados perdem é o seu ser objetivo. Esta interpretação da teoria da alienação é a mesma que foi elaborada por um comentador contemporâneo de Marx, Franck Fischbach. Num artigo intitulado Atividade, passividade, alienação. Uma leitura dos manuscritos de 1844, Franck Fischbach defende esta interpretação. Uma parte deste artigo parece esclarecer nossa passagem do Anti-Édipo, aquela intitulada Ser sem objeto. Segundo ele, a alienação não se realiza na objetivação, como poderíamos ser levados a concluir depois de uma leitura rápida do texto de Marx que depositasse exagerada atenção a fórmulas do tipo: “o objeto que o trabalho produz, seu produto, se erige diante dele como um ser estranho, como uma potência independente do produtor20”. Para ele não é necessário ver nesse tipo de formulação a expressão de uma teoria da reificação, que é apresentada pelo autor como “o modelo que parte de um sujeito ativo e produtivo e que concebe a alienação como a perda e a fixação desta atividade no ser do objeto produzido21”. Esta maneira de pensar a alienação é fruto, segundo Franck Fischbach, da própria alienação. O que ele quer dizer com isso? Que esta maneira de pensar a alienação como reificação supõe que concebamos o indivíduo como um sujeito que porta em si uma subjetividade puramente ativa. Ora, segundo o autor esta concepção do indivíduo é a expressão teórica de uma alienação real que faz do sujeito o portador de uma pura atividade subjetiva, sua força de trabalho. Esta alienação real é apresentada como segue: “o fenômeno descrito por Marx é então o seguinte: ele descreve uma situação na qual os indivíduos não trabalham e, portanto, não se objetivam de outra forma senão através de sua privação de todo acesso à objetividade. O que está implicado no fato de só ser possível acessar por conta própria o trabalho à duríssimas penas? Esta situação supõe que os indivíduos sejam reduzidos a não ser outra coisa senão os portadores de uma pura capacidade de trabalho, de uma capacidade abstrata de trabalho – uma capacidade que podemos considerar como puramente subjetiva, dado que está separada tanto do trabalho real como do objeto que ela cobiça afim de passar da pura potência ao ato. Neste sentido, aquilo do qual o trabalhador alienado está separado e privado não é somente a objetividade em geral, mas também a objetividade do seu próprio ser22”. O trabalhador assalariado é então privado de sua objetividade. Quais são as consequências disso? A passagem que acabamos de citar deve ser especificada. Fischbach especifica sua referência a essa noção da seguinte maneira: “considerar, como Marx faz aqui, que a alienação do trabalho consiste no fato de que ele é uma objetivação que se efetua como perda do objeto e, mais radicalmente, como perda da objetividade em geral, supõe encarar o trabalhador como um ser objetivo – a perda do objeto não pode ser alienante salvo para um ser para o qual a objetividade é essencial. Os homens não são os sujeitos que a natureza enfrenta na condição de um objeto, mas sim seres objetivos existentes em ato como “parte da natureza (Teil der natur)”. Este é, para Marx, o ponto de partida de qualquer programa filosófico que leva a sério o giro antropológico e naturalista que Feuerbach imprimiu à filosofia23”.

Este desvio pelo artigo de Franck Fischbach nos permite compreender com mais precisão como a ligação se dá, necessariamente, entre uma concepção do homem como ser objetivo, “homo natura” e “homo historia” por parte de Deleuze e Guattari, e uma concepção de alienação capitalista como perda de objetividade sofrida pelo indivíduo alienado. Desta forma nós também compreendemos como a sociedade capitalista implode o desejo na falta e no fantasma. Ao implementar o trabalho assalariado, o capitalismo faz do trabalhador o portador de uma pura atividade subjetiva (sua força de trabalho) que o torna compatível com o sujeito da metafísica moderna, tal como Granel o descreve. Este sujeito está cara a cara com o mundo. Ele pode se objetivar no mundo, mas o fato é que ele permanece em uma “relação” com aquilo que define desejo como falta e tanto mais quanto, no mundo capitalista, as pessoas, especialmente os trabalhadores, carecem do que é essencial.

A concepção idealista do desejo é o reflexo teórico de um modo de produção alienado e alienante. Este modo de produção implode o desejo na falta, na necessidade e no fantasma. Como podemos reencontrar o verdadeiro desejo, aquele que é processo de produção? A passagem do Anti-Édipo que citamos, aquela que fala da perda do ser objetivo, oferece uma pista. Esta passagem estabelece a existência de uma classe revolucionária, os despossuídos, os trabalhadores que, em definitiva, nesta sociedade capitalista que “faz o desejo desabar no grande medo de carecer24”, conseguem escapar do medo e estão prontos para entrar em movimento para recuperar seu desejo, que é como a paixão do “jovem Marx”. É possível tecer um vínculo entre o texto de Deleuze e Guattari e uma passagem da Ideologia Alemã que se centra na crítica de Max Stirner. Neste texto, Marx distingue a paixão do “interesse” (souci). Segundo ele, o interesse é o sentimento que acompanha necessariamente o trabalho do burguês. É uma angústia difusa ligada ao interesse contábil, à própria natureza da posse de capital, à alienação produzida pela posse de dinheiro. Marx insiste sobre o caráter tranquilo e medíocre deste sentimento. A paixão, por outro lado, está ligada ao sentimento de urgência experimentado pelo proletário em sua vida cotidiana. Ela está ligada a uma angústia de morte. Sendo assim, ela gera no operário uma atividade revolucionária enquanto que o burguês, no melhor dos casos, torna-se um reformista. Para aprofundar na compreensão desta distinção entre dois sentimentos e duas práticas políticas é necessário evocar a dialética do amo e do escravo, desenvolvida por Hegel na Fenomenologia do Espírito. Alexandre Kojève, comentador de Hegel, nos esclarece esse ponto em sua Introdução à leitura de Hegel: “o homem que nunca experimentou a angústia da morte não sabe que o mundo natural é hostil a ele, que tende a matá-lo, a destruí-lo, que é essencialmente inapto para satisfazê-lo realmente. Este homem permanece, no fundo, solidário com o mundo dado. Ele desejará, no máximo, “reformá-lo” (…) [A] transformação revolucionária do mundo pressupõe a “negação”, a não-aceitação do Mundo dado em seu conjunto. E a origem dessa negação absoluta não pode ser outra coisa senão o terror absoluto inspirado pelo Mundo dado ou, mais exatamente, por aquilo ou aquele que domina esse Mundo” 25.

Resta-nos, ainda, averiguar se é possível fazer convergir, pelo menos em parte, o projeto político de Deleuze e Guattari com o de Marx.

O projeto de fluidificação dos desejos

O projeto político de Deleuze e Guattari organiza-se, como já vimos, em torno do conceito de desejo. Para eles a questão é permitir que o desejo floresça, ou seja, torne-se novamente processo de produção. Esta concepção do desejo verdadeiro, que “funciona bem”, parece levar a sério o projeto de fluidificação dos desejos enunciado na Ideologia Alemã. A filigrana desse projeto aparece em um texto enviado para publicação, mas é enunciado claramente numa passagem rasurada do manuscrito. É preciso então sublinhar que este texto deve ser tomado com muita precaução.

Neste texto, a primeira frase enuncia o projeto de fluidificação dos desejos: “os comunistas, ao atacar a base material sobre a qual repousa a fixidez até agora fatal dos desejos e dos pensamentos, são os únicos cuja ação histórica devolve à sua fluidez natural esses desejos e esses pensamentos estancados” 26. O primeiro capítulo do Anti-Édipo parece levar a sério tal projeto. As diferentes sínteses que Deleuze e Guattari apresentam como constitutivas do desejo enquanto processo de produção conduzem a emergência de uma espécie de sujeito múltiplo e fluido.

As três sínteses apresentadas por Deleuze e Guattari são as seguintes: síntese conectiva de produção, síntese disjuntiva de registro e síntese conjuntiva de consumo. Reencontramos os elementos apresentados por Marx na Introdução à Crítica da Economia Política de 1857 como sendo constitutivos do processo de produção. O movimento desse processo de produção desejante pode ser assim resumido: pela síntese conectiva de produção “o desejo não cessa de efetuar o acoplamento de fluxos contínuos e de objetos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados” 27; esse acoplamento de fluxo cria uma série linear e binária que associa sempre o produzir ao produto; nestas séries lineares se insere um terceiro termo, o “corpo sem órgãos”, espécie de elemento de anti-produção que é, por conseguinte, a condição da produção. É na relação do corpo sem órgãos com as sínteses conectivas que nascem as outras duas sínteses: a síntese disjuntiva de registro e a síntese conjuntiva de consumo. A síntese disjuntiva registra a produção sobre o “corpo sem órgãos” e a organiza segundo o que Deleuze e Guattari denominam o “ou…ou”, ou seja, de acordo com uma constante permutabilidade. A síntese conjuntiva por sua vez “é produzida por e na produção de registro” 28. É através dela que podemos localizar alguma coisa que se pareça a um sujeito. Segundo nossos autores, este sujeito está “sem identidade fixa, errando sobre o corpo sem órgãos, sempre ao lado das máquinas desejantes, definido pela parte que ele toma para si do produto, recolhendo em todos os lugares os bônus de um devir ou de um avatar, nascendo dos estados que ele consome e renascendo a cada estado” 29. Este sujeito só pode nascer sobre a base da produção de registro que, como dissemos, funciona por sínteses disjuntivas. Devido a sua origem disjuntiva, o sujeito é fluído, móvel. Não é um sujeito no sentido clássico do termo, mas sim uma espécie de sujeito esquizofrênico; sujeito difícil de apreender, é verdade, afinal parece contraditório que a esquizofrenia permita a existência de um sujeito. Este sujeito parece realizar o programa enunciado por Marx na Ideologia Alemã.

Ao reencontrar o ser objetivo, ao reestabelecer o processo de produção que define o verdadeiro desejo – o desejo “saudável”, poderíamos dizer – nós reencontramos um sujeito fluido, que pode passar de uma atividade à outra. Um sujeito do qual Marx nos fala seguidamente sob a denominação de “indivíduo total”.

NOTAS

1 DELEUZE Gilles, GUATTARI Félix. L’Anti-Oedipe : capitalisme et schizophrénie 1. Paris: Editions de Minuit, 1972, p. 10

2 Ibid., p. 10

3 Ibid., p. 10-11

4 MARX, Karl. Manuscrits de 1844. Paris: Garnier-Flammarion, 1996. p. 114

5 GRANEL, Gérard. Traditionis Traditio. Paris : Gallimard, 1972. (Le Chemin). p. 214

6 Ibid., p. 215

7 Ibid., p.215

8 Ibid., p. 215-216

9 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Idéologie Allemande. trad. de Renée Cartelle et Gilbert Badia. Paris : Éditions sociales, 1971, p. 33

10 GRANEL, Gérard. Traditionis Traditioop. cit., p. 223

11 MARX, Karl. Manuscrits de 1844op. cit., p. 115

12 Ibid., p. 115

13 Ibid., p. 116

14 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. L’Anti-Œdipe : capitalisme et schizophrénie 1,op. cit., p. 10

15 Ibid., p. 29

16 MARX, Karl. Manuscrits de 1844, op. cit., p. 155

17 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. L’Anti-Œdipe : capitalisme et schizophrénie 1,op. cit., p. 34

18 Ibid., p. 35

19 Ibid., p. 35

20 MARX, Karl. Manuscrits de 1844, op. cit., p. 109

21 FISCHBACH, Franck. « Activité, Passivité, Aliénation: une lecture des Manuscrits de 1844 ». In RENAULT, Emmanuel, dir. Actuel Marx, N° 39, 2006. Paris : PUF, 2006. 224 p. (p. 13 à 27), p. 16

22 Ibid., p. 20

23 Ibid., p. 21

24 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. L’Anti-Œdipe: capitalisme et schizophrénie 1,op. cit., p. 36

25 KOJEVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947, p. 13

26 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Idéologie allemandeop. cit, p. 295

27 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. L’Anti-Œdipe : capitalisme et schizophrénie 1,op. cit., p. 11

28 Ibid., p. 22

29 Ibid., p. 23

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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