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Politizar o “não lugar”: os estudantes e a descolonização da RAM

Por Juliana Mesomo

Que a sensação de estar “fora do lugar” seja nosso ponto de partida para a construção de novos espaços de produção do conhecimento, mais democráticos e plurais; mais contra-hegemônicos e combativos. Não se trata de encontrar um “lugar” próprio para os estudantes, conservando intacta a hierarquia, mas de questionar a atual atribuição naturalizada de lugares a cada quem e a cada qual.

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É preciso politizar a sensação de estar “fora do lugar” que nos acomete quando estamos em congressos acadêmicos e ambientes disciplinares. Edward Said tratou a própria sensação de estar “fora do lugar” em sua autobiografia (2004) e defendeu esta inscrição como um modo de ser e de atuar politicamente e, sobretudo, como uma forma de produzir conhecimento. O intelectual, diz ele, deve ser um outsider, um perturbador do status quo, principalmente em espaços institucionalizados. Aqueles que não têm “escritório seguro” nem “territórios para consolidar e defender” podem e devem apresentar suas características desconcertantes e dissonantes nos espaços onde circulam. Este ponto “fora do lugar” é um “posto de observação” (Said, 2005) vantajoso, de onde podemos lançar publicamente um olhar capaz de desnaturalizar o pertencimento a uma instituição, assim como seu funcionamento.

Quando um estudante de graduação ou pós-graduação em antropologia chega a um congresso acadêmico tem de lidar com sentimentos confrontados. Não tem dinheiro suficiente para hospedar-se bem e pagar a inscrição. Quando tem dinheiro suficiente e consegue chegar ao congresso, deve apresentar seu trabalho e discuti-lo em brevíssimos dez minutos ou simplesmente assistir às mesas redondas e grupos de trabalho (GT’s). Em alguns congressos brasileiros como a RBA, diz-se que o lugar do estudante de graduação é aquele da apresentação oral e a exposição de pôsteres, sendo vedada sua participação em GT’s. Nesta hierarquia nada tênue, devemos ocupar o lugar de espectadores de uma disciplina que se reproduz – afinal, estamos “em formação” – sem poder intervir nos debates que redefinem seus rumos. Alguns estudantes se perguntam: “o que estou fazendo aqui?”, “este evento é pensado para me receber?” Outros se resignam: “estou aqui apenas buscando pontos para o currículo porque é assim que a coisa funciona”. É certo que nesta dinâmica alguns alunos de pós-graduação já podem individualmente galgar degraus significativos na hierarquia, mas à grande maioria resta apenas assistir a reprodução de um mesmo modelo disciplinar. Eis a sensação de estar “fora do lugar”: nos sentimos incômodos porque o lugar que é gentilmente oferecido aos estudantes neste tipo de evento está sendo questionado.

Os estudantes vêm se tornando, pelo menos na RAM, uma presença cada vez mais visível e, de acordo com a sede do evento, conformam a clara maioria do público assistente. Em 2013, na X Reunião de Antropologia do Mercosul realizada em Córdoba, o desconforto com os preços das inscrições, com a pouca participação de estudantes de graduação nas apresentações em Mesas Redondas e GT’s e com o próprio modelo de organização do congresso foi enunciado publicamente pela primeira vez. O grito interpelou os responsáveis pelo evento e aglutinou forças para construir a XI RAM, em Montevidéu. Esta última edição, em 2015, teve suas características transformadas pelo efeito da mobilização estudantil em 2013 e apontou para uma reorganização do encontro.

Às vésperas da realização da reunião em Montevidéu, uma carta aberta foi enviada à organização problematizando a participação dos estudantes, sinalizando os altos preços de inscrição que persistiam e retomando os acontecimentos de Córdoba. A organização da XI RAM respondeu de forma criativa. Na edição de 2015, os estudantes que colaboraram voluntariamente na realização do encontro foram exonerados do pagamento da inscrição. Esta pequena ideia possibilitou que muitos estudantes comparecessem ao evento e, como qualquer ideia nova, foi colocada à prova. Uma das dificuldades sentidas pelos voluntários foi a falta de tempo para assistir aos GT’s e Mesas redondas que gostariam já que, em alguns momentos, havia um volume de trabalho considerável a realizar. Isto deverá ser corrigido caso se replique tal esquema que, ainda assim, mostrou-se bastante efetivo para garantir a presença dos estudantes.

Apesar dos avanços, segue pendente a realização da efetiva participação dos estudantes na concepção e elaboração do encontro – suas atividades, convidados, temas de debate, formato, etc. O que foi enunciado em Córdoba (2013) voltou a ser repetido em Montevidéu (2015): os estudantes desejam representação no comitê de organização do evento para poder discutir a disciplina e seus espaços e proporcionar que a reunião seja cada vez mais acessível tanto a estudantes quanto a profissionais sem vinculação com universidades – como mencionado na Carta Aberta à organização da XI RAM. No terceiro dia do evento, os estudantes reuniram-se em assembleia ao lado da Faculdade de Direito em Montevidéu, para discutir estas e outras questões e reafirmar que “a construção de outro mundo é possível apenas quando, em qualquer processo, haja inclusão de todos os atores, garantindo as condições para a realização das  potências criadoras de todxs”. Redigiu-se naquele momento uma carta que foi lida, em português e em castelhano, durante a cerimônia de encerramento da reunião. (Leia a carta completa ao final da postagem)

A carta destacava a reinvindicação de participação estudantil no evento através de um mecanismo concreto: a representação de estudantes da instituição-sede no comitê de organização da XII RAM. Além disso, o documento reivindicava maiores garantias à participação estudantil através de infraestrutura de hospedagem, alimentação, transporte e divulgação da Reunião; enfatizava a necessidade de criação de um espaço de debate coordenado por estudantes sobre os currículos dos cursos de antropologia na América Latina; e solicitava a prestação de contas desta e de outras edições do evento, afim de tornar mais transparente a destinação dos recursos levantados com as inscrições. Na sequência, defendia a necessidade de revisão do nome do evento, que faz referência ao bloco econômico denominado Mercosul, “em razão das suas conotações mercantis e neoliberais”. Uma sugestão que surpreendeu pela ousadia e que se mostra bastante pertinente neste momento em que os novos governos neoliberais eleitos na região buscarão torcer o Mercosul em direção à sua vocação inicial de livre-mercado em detrimento dos objetivos de integração política, social e cultural. A carta encerrou convidando a todos a conhecer e compor o próximo FELAA (Fórum Estudantil Latino Americano de Antropologia e Arqueologia), tradicional encontro de estudantes do continente, além de reafirmar o convite a seguir descolonizando o saber e o poder. VEJA O VÍDEO.

A notícia de que a próxima edição do evento será realizada na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), em Foz do Iguaçu, foi recebida com muita alegria entre os estudantes. A UNILA é um lugar que guarda na sua estrutura a inspiração de integrar as universidades da região, recebendo nas suas salas de aula discentes e docentes de países como Paraguai, Uruguai, Argentina e Brasil. É uma universidade onde os estudantes têm espaço e voz ativa. É importante reconhecer, também, a declaração final da XI RAM que manifesta o desejo de fortalecer espaços como a ALA (Associação Latino-americana de Antropologia) e a RAM enquanto cenários vitais de interlocução e consolidação de práticas e perspectivas antropológicas a partir do Sul, de forma a enfrentar a rearticulação do colonialismo intelectual – “expresso na crescente subordinação a agências e práticas dos estabelecimentos hegemônicos do Norte global”.

Fica a expectativa de poder construir juntos, docentes, estudantes e profissionais, uma Reunião que aponte cada vez mais a transformar os espaços disciplinares das antropologias do Sul. Que a sensação de estar “fora do lugar” seja nosso ponto de partida para a construção de novos espaços de produção do conhecimento, mais democráticos e plurais; mais contra-hegemônicos e combativos. Neste caso, não se trata de encontrar um “lugar” próprio para os estudantes, conservando intacta a hierarquia, mas de questionar a atual atribuição naturalizada de lugares a cada um e cada qual.

Notas referências:

SAID, Edward. Fora do lugar: memórias. Tradução: José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SAID, Edward. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. Tradução: Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Carta Aberta dos Estudantes

Montevideo, 4 de dezembro de 2015

Nós, discentes de antropologia, reunidos em assembleia na XI RAM, no dia 02 de dezembro de 2015, ao lado do prédio da Facultad de Derecho, debatemos entre outras coisas, sobre as condições de participação dos estudantes no evento. Acreditamos que como alguns dos fundamentos da antropologia estão orientados pelo principio de alteridade, e cientes de que somos antropólogos em formação, entendemos que se faz necessária uma maior contribuição discente nos processos de organização da RAM. Cremos que podemos nos auto-representar. Pensamos que a construção de outro mundo é possível apenas quando, em qualquer processo, haja inclusão de todos os atores, garantindo as condições para a realização das suas potências criadoras.

Diante disso, os discentes deliberaram alguns encaminhamentos que agora tornam públicos:

1 – Co-governo na construção da RAM, através de uma representação estudantil da instituição sede

2 – Incentivo à participação estudantil, em especial de graduação, garantindo: divulgação e articulação pré-evento e infra-estrutura durante o evento: alojamento, alimentação e transporte

3 – Criação de um espaço coordenado pelos estudantes na programação oficial para debater os cursos de antropologia na América Latina.

4 – Solicitamos a prestação de contas do evento (deste e dos próximos) para tornar mais transparente a gestão dos fundos arrecadados.

5 – Exigimos a revisão do nome do evento (Mercosul) em razão das suas conotações mercantis e neo-liberais. Por fim convidamos a todxs, discentes e docentes a participar e colaborar com a construção do próximo FELAA (Fórum Estudantil Latino Americano de Antropologia e Arqueologia).

CONTINUEMOS DESCOLONIZANDO O SABER E O PODER

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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