Por Josep Juan Segarra
Josep Segarra acompanhou a ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, ocorrida há exatos três anos. Seu engajamento com a mobilização deu origem ao documentário Morar na “Casa do Povo“ e a sua pesquisa de mestrado, disponível aqui. Nesta intervenção ele relembra os momentos de eferverscência política que marcaram a ocupação e nos conta o destino dos projetos de lei elaborados pelos manifestantes. Que limites as ideologias jurídicas e os regimes de poder estabelecidos impõem aos propósitos transformadores dos movimentos populares?
O documentário “Morar na ‘Casa do Povo’” também pode ser visto no final desta postagem com legendas em português, espanhol e inglês.
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Em 10 de julho de 2013 fiquei sabendo da ocupação da Câmara através do Facebook. Estava cumprindo uma das inúmeras obrigações acadêmicas decorrentes do mestrado em antropologia e seguindo as publicações sobre as lutas pelo transporte público através da página e do grupo de Facebook do Bloco. Quando anunciaram a ocupação e chamaram as pessoas para apoiar, peguei a filmadora e fui correndo. Meses depois, pude consultar o arquivo do Memorial da Câmara, onde se encontravam as filmagens da TV oficial do parlamento municipal. Ali obtive o vídeo da sessão plenária que estava em marcha na tarde do dia 10 de julho de 2013, antes de que o plenário fosse ocupado pelo Bloco de Lutas. “Morar na casa do povo” é resultado desta pesquisa de arquivo e das filmagens realizadas por mim durante a ocupação da Câmara.
Na minha dissertação de mestrado teci as seguintes reflexões sobre a realização do filme, que fez parte da pesquisa e constituiu um nexo importante entre minha proposta de investigação e o engajamento político com o Bloco de Lutas:
No caso de “Morar na ‘Casa do Povo’”, a forma do filme tem como grande referência a “Chronique d’un été” (Rouch e Morin, 1962), mas ao invés de serem dois autores em simetria de condições, como Rouch e Morin, no filme em questão eu sou o pesquisador e o responsável pela montagem final, e, no processo, o filme lida com a inteligência coletiva. Diferente de Rouch e Morin, não seleciono interlocutores chave. Pensando como colocar nos créditos os diferentes papéis das pessoas implicadas no filme, tive clareza de que não existe um diretor, como entendido no cinema clássico: alguém que dirige os atores e que seria pouco menos do que o Deus do filme. Habitualmente escutamos as pessoas se referirem aos filmes como “o último filme de Almodovar”, por exemplo. Acho que essa questão de individualizar obras eminentemente coletivas tem muito a ver com a nossa mentalidade individualista, competitiva e meritocrática. A manutenção de conceitos clássicos, como o de diretor, não daria conta da complexidade do processo e acabaria por enfraquecer a construção coletiva. Nesse sentido proponho o conceito de camadas de autoria. Este conceito permite, ao mesmo tempo, assumir uma autoria coletiva e levar em consideração a diversidade de papéis das diferentes pessoas que participam desta autoria. Trata-se de priorizar a dimensão coletiva do trabalho sem cair na ingenuidade da horizontalidade total. Sendo assim, me assumo como o realizador da montagem final, mas não como “o diretor” ou “o autor” único do filme. Sou o pesquisador que promove a investigação junto com companheiras e companheiros do Bloco de Lutas pelo Transporte Público de Porto Alegre. Estes, por sua vez, participam, entre outras coisas, da organização dos cine-debates. Sou, também, o “montador”, aquele que tem a última palavra sobre a montagem. O filme, no entanto, está repleto de imagens e ideias de muitas pessoas diferentes e não se ajustaria à realidade atribuir-lhe uma autoria individual. Explicitar no filme a forma de construí-lo é uma maneira de mostrar que esta forma poderia ser outra. Durante todo o trabalho é fundamental não esconder nem nossos corpos, nem nossas vozes, nem as tecnologias que utilizamos. É preciso mostrar os fluxos que unem os dispositivos, as pessoas e o filme, justamente para explicitar como estamos construindo a obra. Sobre a montagem, Perpignani (2009) explica que o trabalho de edição não reside só em montar um filme, consiste também em se relacionar com pessoas. É muito importante respeitar o papel criador das pessoas que trabalham nas diferentes montagens. Isto faz parte da tentativa de nos deslocar e praticar uma autoria coletiva.
Retomemos, então, alguns encontros, tensões e intenções que deram corpo ao filme e definiram a experiência cotidiana de quem morou na casa do povo.

Foto: Bruna Andrade / Jornalismo B
Criatividades e conflitos
Nas próximas linhas reflito sobre como um movimento social anticapitalista, organizado a partir de comissões e assembleias, entrou na luta política e legislativa em Porto Alegre. Procuro pensar sobre as implicações e consequências de uma estratégia política que aceitou certas mediações estatais para veicular suas pautas reivindicatórias. Depois de finalizada a ocupação da Câmara de Vereadores (entre os dias 10 e 18 de julho de 2013) tais pautas não foram objeto de um acompanhamento continuado por parte dos seus protagonistas e os projetos de lei elaborados pelos manifestantes naquela época aguardam, até hoje, pela votação e aprovação da Câmara.
Uma vez concretizada a ocupação, no dia 10 de julho, todos os ali presentes foram convidados a participar de alguma das comissões organizativas* encarregadas de gestionar a presença dos manifestantes no parlamento. O engajamento político, portanto, era obrigatório. Não bastava a simples presença fisica. Além de fazer vídeos, participei do Departamento de Limpeza, na faxina dos banheiros. Achei justa a crítica de uma companheira que, após assistir um dos vídeos de divulgação** que tínhamos elaborado na ocasião, observou que a imagem de um rapaz limpando os banheiros não refletia o real engajamento dos homens nas atividades de limpeza. Na realidade, até aquele momento, eram as mulheres que desempenhavam mais ativamente este tipo de tarefa. Reconheço que, inicialmente, duvidei sobre que atitude tomar a respeito das comissões: deveria participar das outras tarefas ou me dedicar a filmar e a editar vídeos exclusivamente? No final das contas, para mim ficou clara a importância da distribuição rotativa dos afazeres logísticos nas comissões, já que ela permitia desestabilizar a divisão do trabalho baseada, por exemplo, em gênero e classe.
Algumas companheiras contaram que um dos membros da Comissão de Organização dormia com o microfone na mão, ao lado dos alto-falantes. Dizia-se que este tipo de situação era reflexo do grande apego de certos ativistas ao lugar de fala e visibilidade habilitado pelo uso do microfone. Parecia haver uma preocupação constante com o fato de que determinados ocupantes, principalmente aqueles vinculados à Comissão de Organização, estavam, na maior parte do tempo, falando ao microfone. Um militante anarquista, que desistiu de participar do Bloco “porque não quer[ia] ser massa de manobra de ninguém”, comentou o seguinte a respeito: “analisando o filme [Morar na ‘Casa do Povo’], fica muito claro: em geral as pessoas iam falar ao microfone e voltavam aos seus lugares nas mesas e nas bancadas. Mas alguns estavam sentado o tempo todo aí, do lado do microfone. O espaço deles era ao lado do microfone”.
O rechaço à especialização das atividades organizativas era parte de uma crítica mais geral à imposição de normas de conduta e à distribuição dos lugares de fala e de poder típicas das instituições da democracia representativa. As mensagens no crucifixo (imagem 1), a foto dos pelados (imagem 2), os banheiros unissex, o vídeo do companheiro fumando na mesa da presidência da Câmara, entre outras situações, foram momentos de criatividade que confrontaram valores e legalidades institucionais e geraram algumas das cenas mais transcendentes da ocupação. A popularidade destas ações talvez se explique por sua capacidade de desafiar uma moral cristã e uma política representativa calcadas nas ideias de “paz”, “ordem” e “progresso” propaladas pelos mais poderosos.
Outras pautas muito visíveis nos cartazes e também presentes em algumas falas ao microfone provinham, por exemplo, do campo da educação (reivindicação do piso salarial dos professores), do campo da saúde (“Thiago Duarte não me representa. Não à internação compulsória”) ou versavam sobre questões de gênero (reivindicações por igualdade na hora de preparar a comida, limpar os banheiros da ocupação, etc.). Algumas dessas questões não só eram reivindicadas verbalmente, mas também colocadas em prática através de coordenadas organizativas concretas.

Reprodução Facebook

Os projetos de lei
No contexto daquilo que ficou conhecido como “Jornadas de Junho” de 2013, o Bloco de Lutas pelo Transporte Público criou dois projetos de lei durante a ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Um deles versava sobre a Transparência das Contas das Empresas de Ônibus e o outro instituía o Passe Livre para estudantes, desempregados, indígenas e quilombolas. Na reunião de conciliação presidida pela juíza Cristina da Silva no dia 17 de julho de 2013 foi determinada a desocupação da Câmara seguida da protocolação dos projetos de lei em questão. No contexto do primeiro cine-debate em torno do filme “Morar na ‘Casa do Povo’” (7 de julho de 2014), Briza, ativista do Assentamento Urbano Utopia e Luta e membro da Comissão de Organização do Bloco expressou como segue seu desconhecimento a respeito do processo de tramitação dos PL’s protocolados:
Nenhuma confiança no parlamento, né? Porque dois projetos encaminhados, nenhuma resposta. A gente nem sabe se está na mão do Prefeito, se não ficou engavetado. As sessões que a Câmara ia marcar de Audiências, nada foi encaminhado. Ao contrário, teve um processo de criminalização que já entrou… a gente já fez depoimentos, tem um inquérito e um processo andando.
Em entrevista concedida para esta pesquisa, a juíza Cristina Luísa Marquesan da Silva definiu assim a sua mediação conciliadora:
Não precisou chamar a Brigada para desocupar, o que teria gerado um tumulto como em outros lugares do país ocorreu. Eu procurei chamar as pessoas para dialogar, olho no olho. Porque a gente não tem uma cultura de conciliação, a gente tem uma cultura de conflito. Tanto que o estado do Rio Grande do Sul é o estado que mais litiga no país, apesar de não ser o estado mais populoso (…) na conciliação a gente explica para as partes que estão em litígio que cada uma vai ter que abrir mão de alguma coisa para chegar a uma resolução pacífica do conflito. Se não, vai ter uma resolução judicial que vai agradar a uma parte e vai desagradar à outra (…) na conciliação tu responsabilizas a quem está dialogando. Tu deixas de ter um terceiro que vai decidir por ti.
Os vereadores próximos ao governo de José Fortunati (PDT), avessos ao diálogo com os manifestantes, sentiram-se “castigados” pela juíza, que procurou um acordo harmonioso. Alguns deles, como Professor Garcia, no dia 17 de julho de 2013, antes da “Audiência de Conciliação”, irromperam no Foro Central de Porto Alegre aos gritos de “cadê a juíza?”. Quando um funcionário se dirigiu a eles pedindo que fossem educados e harmoniosos, os vereadores responderam: “tá difícil trabalhar assim, né? Ela foi lá na nossa casa e desrespeitou a resolução de outro juiz. Agora nós estamos aqui na casa dela”. Parece que nesse momento acalorado o vereador acabou por revelar que a Câmara era a sua própria casa. Já não era mais, portanto, “a Casa do Povo”.
Fiz algumas averiguações na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e o Projeto de Lei de Passe Livre (elaborado durante a Ocupação) foi protocolado no mesmo dia da desocupação (18 de julho de 2013), conforme o acordo estabelecido em presença da Juíza. Contudo, um dia depois (19 de julho de 2013) o vereador Thiago Duarte (PDT), que naquele momento presidia Câmara, arquivou-o. Isto significa que o presidente da Câmara desrespeitou o termo da audiência que assinou diante da juíza Cristina Luísa Marquesan da Silva e da representante do Ministério Público, Maria Cristina de Lucca.
Na mesma linha, o Projeto de Abertura das Contas das Empresas de Ônibus se encontrava em dezembro de 2014 no Setor Legislativo da Câmara Municipal, na Ordem do Dia, desde o início de 2014. Isto significa que estava pronto para votação mas nunca foi votado. A situação se agrava quando levamos em consideração que, no acordo, diz-se explicitamente que deve ser tramitado com “regime de urgência”. Por quê, então, nunca foi votado? Bati em várias portas do PSOL (gabinete da Ver. Fernanda Melchionna e do Ver. Pedro Ruas) e do PT (gabinete do Ver. Comassetto e do Ver. Kopittke) e ninguém tinha ideia do que estava acontecendo com esses projetos. Esses vereadores têm parte da responsabilidade, pois na audiência de conciliação se comprometeram a tramitar o projeto de abertura das contas das empresas de ônibus. E isso significa tramitar até votar, conforme me explicou no seu escritório a juíza Marquesan.
A decisão da juíza decretando a necessidade do diálogo pode ser pensada como a imposição da negociação para reproduzir o status quo. No texto “Harmonia Coerciva. A economia política dos modelos jurídicos”, Laura Nader (1994) defende que a harmonia e a controvérsia fazem parte das ideologias num mesmo continuum e não são, necessariamente, benéficas ou adversas. Nader acredita que, no fundo, o estilo harmônico, bem como as ideologias relacionadas, são, possivelmente, acomodações internas à conquista e à dominação.
Por outra parte, nós, ativistas do Bloco, não ficamos de olho na tramitação dos projetos de lei construídos como principal estratégia da ocupação ou, no mínimo, não apresentamos nenhuma reclamação formal diante da juíza pelo não cumprimento do termo de conciliação por parte dos vereadores. Conforme sugere Nader, não devemos subestimar o papel das ideologias jurídicas na estruturação ou desestruturação dos conflitos sociais. O modelo legal de harmonia parece ser uma técnica de pacificação. Enquanto cidadãos críticos, não podemos nos deixar capturar por certos sistemas de pensamento que operam em nossas próprias culturas, privando-nos, assim, de reconhecer que os estilos de disputa e de resolução de conflitos são um componente das ideologias políticas e tendem, portanto, a referendar a correlação de forças estabelecida (cf. Nader, 1994).
Entendo que o Bloco de Lutas protagonizou, desde inícios de 2013 até as eleições de outubro de 2014, uma mudança nos tempos e nos usos dos espaços que condicionaram as vidas de muitos cidadãos porto-alegrenses. O fato de organizar atos semanais foi um dos grandes esforços do Bloco. Mas, a partir da ocupação da Câmara, identifico, também, a vontade de passar para o papel um projeto de transporte público para a cidade. Vários ativistas do Bloco apontaram que a tática da ocupação permitiu “sentar” e ampliar o “acúmulo político” a partir de diversos projetos de lei. Outros também apontaram que tais projetos não eram um fim em si mesmos, mas dispositivos para estabelecer um diálogo com a população e avançar na luta por um sistema de transporte coletivo 100% público.
Olhar para o futuro
Quero destacar, aqui, a peculiaridade da ocupação enquanto repertório de ação coletiva que permite pensar e praticar uma quantidade muito maior de questões políticas cotidianas. Morar oito dias seguidos juntos é muito diferente do que caminhar quatro horas seguidas pelo centro da cidade e depois seguir rumos diferentes. Numa ocupação é preciso lidar de forma mais aprofundada com tarefas cotidianas como limpar, lavar ou cozinhar. Ocupando e morando juntos abordamos questões de gênero, cor, afeto, sexo, religião, saúde, educação, arte, moradia, logística, economia, classe social, geração, etc. Estas questões são fundamentais na hora de construir alternativas políticas abrangentes. Neste sentido, destaco a potência das ocupações como uma espécie de laboratório integral para fomentar a construção de uma sociedade diferente, mais respeitosa com as diferenças, mais combativa frente às desigualdades, que enfrente suas próprias contradições e que supere a distância existente entre ideias e práticas concretas de transformação social.
* Com exceção da mídia alternativa que foi autorizada pela assembleia para acompanhar a ocupação e não precisava fazer parte das comissões ou grupos de trabalho.
** Com exceção da mídia alternativa, que foi autorizada pela assembleia para acompanhar a ocupação e não precisava fazer parte das comissões ou grupos de trabalho.
Textos mencionados
NADER, Laura. Harmonia Coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, ano 9, 1994, pp.18-29.
SEGARRA, Josep Juan. “Paz entre nós, guerra aos senhores”. Uma etnografia sobre o Bloco de Lutas pelo Transporte Publico e a Ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado. PPGAS. UFRGS. 2015.
DOCUMENTÁRIO – legendas em português
DOCUMENTÁRIO – legendas em espanhol
DOCUMENTÁRIO – legendas em inglês
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