Por Juliana Mesomo
Existem duas formas de nos relacionarmos com os conceitos que aprendemos nas salas de aula da universidade. Podemos vivificá-los e distorcê-los no calor de um engajamento com o mundo ou podemos transformá-los em ferramentas de descrição passiva que mediam nossa relação com a realidade existente. Se quisermos ser fieis à irremediável abertura das situações, devemos adotar a primeira atitude e descartar definitivamente a segunda.
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Ideologia e atuação do conceito
Há pelo menos duas formas de nos relacionarmos com os conceitos que aprendemos nas salas de aula da universidade. Uma delas vivifica o conceito, distorcendo-o necessariamente mediante sua atuação no mundo. Isto ocorre quando acreditamos na verdade contida num conceito x ou y e nos propomos a agenciá-lo para construir a política, seja na provocação e na agitação públicas, seja na elaboração de um argumento ou de um pensamento sobre a situação em que nos encontramos. Um exemplo desta forma de relação com o conceito foi o momento em que o Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC) assimilou e retrabalhou as formulações de Eduardo Restrepo e Arturo Escobar sobre as relações de poder-saber no “sistema-mundo da antropologia”. Com a ajuda das definições introduzidas por estes dois autores, foi possível abordar as antropologias em sua pluralidade, a partir das práticas concretas e situadas dos antropólogos, assim como a partir das dinâmicas institucionais dos estabelecimentos antropológicos. Isto nos permitiu questionar os fundamentos de certas definições de antropologia baseadas em fórmulas normativas (o que “deve” ser a antropologia) e fortalecer a construção de um pensamento que expressasse a ruptura política (e seus motivos) com o estabelecimento antropológico ocorrida em 2011 durante os acontecimentos da greve de estudantes de mestrado do PPGAS/UFRGS. Tratou-se de uma autêntica atuação do conceito. Se a evocação d”a” antropologia serve ao reforçamento de normas institucionais específicas, então é possível praticar outras antropologias ao romper com estas normas travestidas de “antropologia”. A atuação, por sua vez, não ocorre pela simples capacidade do conceito de nos convencer discursivamente de algo, mas pela conjunção entre uma situação política singular, a verdade contida no conceito e a nossa vontade de crer nesta verdade. É claro, nem todos os conceitos podem ser atuados diretamente, mas todos contêm desdobramentos políticos que devem ser indagados e perscrutados.
A segunda forma possível de relação com o conceito é o extremo oposto da primeira e se assemelha à maneira como se estrutura a ideologia, nas formulações de Slavoj Žižek. Vou denominá-la, portanto, de modo ideológico de relação com o conceito. Para Žižek, nossa relação com as normas e com o poder nas instituições não é de ignorância, mas de conhecimento: eu sei bem como as coisas funcionam, mas tanto faz. Essa piscadela cúmplice à ordem é o que nos permite ser livres: agora que sei que não preciso obedecer às normas tal e qual elas se apresentam, tampouco morrerei por denunciá-las, posto que nem são tão efetivas assim. Essa postura nos dá total liberdade, exercida no espaço de uma vida secreta e dupla, é claro. Para Žižek esta estrutura subjetiva é o núcleo da própria ideologia.
Podemos ver a segunda postura encenada numa pequena animação que anda circulando pelas redes sociais. O vídeo retrata o encontro entre um professor universitário especialista em Michel Foucault e uma jovem estudante que pretende “fazer Phd em teoria”. Empolgada com as descobertas que veio fazendo nas aulas e nas leituras, a jovem declara seu intenso desejo de tornar-se uma “teórica” e dedicar-se às abstrações mais elevadas. O professor tenta pacientemente explicar a ela que o caminho mais interessante seria escolher algum “objeto” privilegiado de indagação e um “campo” de estudos específico no qual aprofundar seus conhecimentos (já que não existe um “PhD em teoria”). Depois de optar, por exemplo, entre literatura, história ou antropologia, a estudante poderia, então, dedicar longos anos de sua vida ao desenvolvimento de uma árdua rotina de estudos. Concluído este périplo ela finalmente teria a certeza, assim como seu professor, de ser “especialista” em determinado assunto. Num dos pontos altos do diálogo, a jovem declara que considera Foucault “muito legal”, pois ele nos convida a “liberar nossa sexualidade”, a enfrentar o mundo das normas sexuais. O professor rebate: “acho que você não entendeu muito bem o ponto do Foucault”. A menina segue discordando da leitura do professor sobre o filósofo francês, mas, em certo momento da conversa, o acadêmico muda de postura: de “mestre paciente” passa a representar uma figura irônica e sarcástica. Começa a elogiar as formulações da menina, diz que pode ajudar com uma carta de recomendação e que acredita que brevemente ela será chamada para dar aulas em alguma grande universidade, já que possui a capacidade de elaborar ideias tão brilhantes. Ela agradece o reconhecimento e segue convicta de suas opiniões. No final do vídeo, vemos o professor fazer um gesto (que somente o espectador vê) em que ridiculariza a postura da estudante, dando a entender que “ela está meio louca”.
Podemos depreender que, até certo momento, há um debate entre os dois personagens do vídeo, onde a estudante é claramente o alvo da caricatura. Entretanto, salta aos olhos o fato de que o primeiro a assumir a atitude cínica do “eu sei bem, mas tanto faz” é o professor. Ele pode discordar da proposta e das críticas da estudante, mas não quer se engajar nessa disputa argumentativa. Não deixa isso claro a ela e assume uma espécie de distância cínica. Antes da reviravolta, porém, há o embate entre duas posturas frente aos conceitos em questão: ainda que de forma incipiente e estereotipada, a jovem os encara como potencializadores de dinâmicas e rupturas no seio do seu cotidiano; reencena-os de acordo com as necessidades e vontades colocadas no seu caminho. Na minha interpretação, novamente é um exemplo de atuação de um conceito, acompanhada das inevitáveis distorções que lhe são inerentes. Além disso, a estudante jamais deixa de ter razão nas suas colocações: a formulação abstrata é extremamente enriquecedora para certos contextos e reflexões, ela conserva autonomia em relação à empiria vulgar; já o empirismo (ou positivismo) cultivado na academia muitas vezes responde a objetivos bem pouco liberadores da ação e da reflexão. Ademais, a teoria em si não pertence a nenhuma disciplina em particular. Daí a ânsia da personagem em saltar diretamente para um “PhD em teoria”, sem precisar pagar pedágio às solenidades, cânones e mantras disciplinares. Para a estudante, estão em jogo a vida, as rupturas e a potência da abstração. O professor, por outro lado, encara os conceitos no pano de fundo de uma vida pragmática: cumprir os anos de estudos, escolher uma disciplina e um objeto, etc. Talvez não creia nos conceitos como a menina ou talvez creia neles apenas de forma parcial, na medida em que lhe permitem saber algo, mas nunca organizar uma intervenção no mundo. Os conceitos são, assim, objeto passivo que media a relação com uma realidade já dada. Mas eles perderam a capacidade de afetar-nos. É possível ler nas entrelinhas dessa postura os seguintes mantras: “sim, existem instituições, hierarquias e relações de poder-saber, mas tanto faz, elas podem permanecer assim”; “Sim, existem posturas políticas e escolhas existenciais que podem ser derivadas da obra de Foucault, por exemplo, mas este não é exatamente ‘o ponto’”.
Para tornar ainda mais explícita a distinção que estou tentando fazer entre atuar conceitos e encará-los de modo ideológico, quero evocar a noção deleuziana de repetição e a idéia – trabalhada por Žižek a partir da obra de Deleuze – de traição/fidelidade. Ser fiel a um autor (ou a um evento político) é necessariamente trair sua literalidade para repetir seu espírito, sua novidade radical; para relacionar-se, enfim, com o que numa obra vai além dela mesma: seu excesso. Nas palavras de Žižek, haveria, por exemplo, dois modos de repetir Kant: “Pode-se tomá-lo ao pé da letra, elaborando ou modificando seu sistema, como fazem os neokantianos (até Habermas e Luc Ferry), ou pode-se retomar o impulso criativo que o próprio Kant traiu ao atualizar seu sistema (por exemplo, relacionar-se com o que já era ‘em Kant, mais que Kant’, mais que seu sistema explícito: seu excesso). Existem então duas formas de trair o passado. A autêntica traição consiste no ato teórico-ético de continuar sendo fiel: é preciso trair a letra de Kant para permanecer fiel (e repetir) o ‘espírito’ do seu pensamento. É precisamente ao permanecer fiel à letra de Kant que se trai o núcleo íntimo de seu pensamento, o impulso criativo que subjaz nele. Deveríamos levar o paradoxo ao limite. Não só se pode ser realmente fiel a um autor ao traí-lo (ao trair a letra atual do seu pensamento); num nível mais radical, também a afirmação contrária é válida, ou seja, só se pode trair um autor repetindo-o, sendo fiel ao núcleo íntimo de seu pensamento. Se não repetirmos um autor e ficarmos simplesmente ‘criticando’, relocalizando, girando no seu entorno, etc., permanecemos ainda inconscientemente dentro de seu horizonte, de seu campo conceitual” (Žižek, 2007, p. 156).
Como a situação encenada na animação não configura um caso realmente existente, com suas prováveis nuances, posso dizer com convicção que o único personagem ali caricaturizado que estava disposto a repetir Foucault era, certamente, a jovem estudante, apesar do “mau uso” dos conceitos foucaultianos, denunciados pelo professor. Contudo, para desenvolver o argumento das próximas páginas, quero enfocar na postura ideológica do catedrático. Meu objetivo é identificar ecos de sua atitude nas formas como os conceitos costumam ser mobilizados por certo discurso antropológico disciplinar. Lembremos que na encenação, o professor é simplesmente a referência neutra, a encarnação do “bom senso”, do uso ponderado e correto que deve ser feito dos conceitos. Uma espécie de fiel da balança a partir do qual os outros usos (mais ou menos atuantes) podem ser medidos na sua legitimidade. Com isto em mente, passemos ao segundo tópico.
Cadê o iconoclasta que estava aqui?
A antropologia disciplinar ostenta uma tendência intrínseca de diluir processos singulares em esquemas mais gerais – tendência esta superada em escassas ocasiões, afinal, parafraseando Michel Trouillot, apesar da disciplina, coisas interessantes acontecem. É possível que o produtivismo da última década tenha exacerbado tal tendência, de modo que o uso ideológico (no sentido zizekiano) dos conceitos parece predominar na disciplina antropológica. Todo o prelúdio da primeira parte do texto tem como objetivo deixar mais claro o que chamarei, analisando mais adiante algumas situações vinculadas à disciplina, de (escassas) possibilidades da emergência do sujeito histórico nas produções antropológicas (ainda que tais possibilidades existam, apesar da disciplina). Em tempo: a emergência do sujeito histórico não tem a ver com a descrição detalhada de situações específicas cronologicamente datadas, a modo de relatório, mas com a possibilidade de expressar e fortalecer, numa composição discursiva e política, uma presença histórica singular ou a emergência dela.
Dadas as características institucionais do exercício da antropologia, nossa relação “normal” com os conceitos não é aquela atuante. Pelo contrário, atuar um conceito é algo extremamente raro, já que estamos quase completamente subsumidos num universo pragmático e utilitário (apesar de todo o nosso anti-utilitarismo): os conceitos e as descrições etnográficas servem para conseguir um diploma, uma carreira, situar-se numa temática, apresentar textos em congressos, inserir-se nas discussões da moda, seguir eventualmente a linha dx orientador/a, como já foi avaliado em outros textos neste blog (Ver, por exemplo, aqui e aqui). No máximo, estamos autorizados a encenar os conceitos de maneira poética, declarar nossa devoção a eles ou então testá-los em casos relativos “ao nosso campo” (o qual, assim apresentado, em descontinuidade com outros espaços da vida, mais parece um quintal cercado). É claro que a necessidade estratégica de concluir certas etapas de formação não é o que está sendo questionado aqui, mas sim a capacidade desta lógica de sobredeterminar a forma como produzimos discurso, conhecimento, teoria, política e vida.
A relação ideológica e utilitária com os conceitos se expressa de duas maneiras no contexto da disciplina antropológica. A primeira é a busca de conceitos mais adaptáveis à postura do “eu sei bem, mas tanto faz”: a disciplina prioriza conceitos débeis, meramente descritivos, tendentes a referendar discursos tolerantes diante de situações nas quais a hierarquia e a supressão saltam aos olhos. O afirmacionismo conservador de Bruno Latour é um bom exemplo disso. Neste caso, foge-se tanto quanto for possível de conceitos excessivamente carregados de responsabilidades políticas e nexos com grupos humanos em pé de guerra. Quando, por ventura, o antropólogo mainstream se vê seduzido por conceitos fortes, dotados de grande carga política, o utilitarismo ideológico encontra outra maneira de se impor. Esta consiste no esvaziamento político da novidade radical dos conceitos fortes. A micropolítica foucaultiana, por exemplo, transmuta-se em adaptacionismo a instâncias burocráticas autoritárias; os agenciamentos coletivos (de Guattarri-Deleuze) viram “arranjos” de qualquer tipo, variados e sem contradição interna: meras justaposições barrocas. A vida nua de Agamben vira só uma imagem textual chocante; a hegemonia gramsciana é dissociada sem muita explicação de seus vínculos com o conceito de dominação de classe e passa a servir como sinônimo “daquilo que todo o mundo pensa”, e por aí vai… Composto de tal maneira – conceitos encarados de forma pragmática e ideológica, esvaziamento da sua novidade radical, distanciamento irônico quanto às implicações de verdade de um conceito, etc. –, o exercício teórico em antropologia tem enveredado para uma tendência de esvaziamento da singularidade histórica das próprias situações com as quais os etnógrafos entram em contato.
Quando decidimos assumir os conceitos de maneira ideológica e em seguida projetá-los no real terminamos esvaziando este último da sua singularidade histórica, do seu conteúdo localizado, da sua potência política e, por que não dizer, da sua faceta humana (que é sempre singular quando aparece na história). Já havíamos definido este fenômeno como a “política em retirada na antropologia”, isto é, o fato de que a antropologia só consegue contemplar a política quando já lhe deu as costas. Pretendo aprofundar esta ideia através da análise de um conceito de Bruno Latour, talvez não muito usado diretamente, mas que descreve bem a postura de esvaziamento das situações políticas históricas singulares e que é muito bem quisto no momento de desprezar as iniciativas “críticas” – entendidas, estas últimas, basicamente como uma vontade de ruptura com o estado de coisas existente. Para complementar meu argumento, darei um exemplo de etnografia recente no qual podemos visualizar com clareza como certos conceitos são esvaziados de sua novidade radical para dar lugar, logo em seguida, à leitura de uma situação específica que descarta em larga medida seus componentes singulares, assim como seu conteúdo histórico e humano, em nome de um esquema formal apresentado em termos de “dinâmica”, “fluxo”, “movimento”, “rizoma”.
Quem não se sentiu incomodado com a definição de “crítica” de Bruno Latour em O que é o iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem?, talvez não entenda muito bem o que direi à continuação. Nesse texto, Latour oferece várias definições do ato crítico que são puramente negativas: o crítico está obcecado com a iconoclastia, crê ingenuamente que os outros crêem – tal como ele pensa que crêem – em seus próprios “ícones”. O compromisso do crítico seria destruir totens, expor ideologias e desenganar os idólatras. O crítico, em uma imagem, é um iconoclasta virtuoso e reconhecido nos círculos intelectuais cujo alvo apaixonado são as “imagens”. Latour subsome todas as expressões críticas (passadas e futuras) a este tipo único, o “iconoclasta”, para contrapor a ele a figura do “iconoclasher”. O iconoclasta, para o autor, nega as imagens em favor de um acesso imediato à realidade, em busca de substituir as imagens existentes por outras mais conformes ao seu gosto e preferência. Já o “iconoclasher”, que Latour apresenta como postura alternativa, quer fazer as imagens proliferarem “em cascata” de modo que referências múltiplas entre miríades de imagens nos permitam compreender ao mesmo tempo sua infinita insuficiência e sua absoluta essencialidade para a composição de um mundo habitado e habitável. Esta última perspectiva é a adotada pelo autor.
A atitude de Latour de esvaziar de conteúdo histórico o ato crítico – estabelecendo uma tipologia dos atos “iconoclastas” – apenas demonstra que tipo de lugar o autor ocupa ou ocupou no momento em que foi “crítico” da ciência. É provável que praticasse aquele velho estilo de sociologia crítica que, lançando mão do privilégio de se auto-desmarcar, orienta-se, fundamentalmente, à desconstrução do enunciado do Outro. Para aqueles aos quais “não se permite não ter um corpo e um ponto de vista finito” (Haraway, 1995), no entanto, o conteúdo histórico pontual, a inspiração concreta e o impulso particular de cada crítica ainda são fundamentais. Latour esvazia completamente este conteúdo histórico e concreto ao diluí-lo em uma única tipologia transhistórica que rotula quaisquer atos críticos como iconoclastias. Não espanta sua atitude. É verdade que em muitos âmbitos disciplinares a crítica adquiriu as características de um jogo meramente retórico e autofágico (talvez aqui se encontrava o próprio Bruno). Mas é verdade, também, que as críticas mais pujantes e significativas vieram de fora dos muros disciplinares. Estas últimas foram e são frequentemente diluídas e/ou domesticadas pelo discurso disciplinar, mas isso não quer dizer que não guardem um quantum de real quando ainda estão indisciplinadas.
Aqui é preciso lembrar que, apesar da vontade de Latour de equiparar os fenômenos do mundo, nem todas as críticas são “retóricas” ou “cínicas” e que, portanto, nem todas expressam a vontade de simplesmente “trocar uma imagem por outra”. Há críticas cujo impulso é sintomático do real e, por isso, estão longe de querer intercambiar representações. São sinais da impossibilidade das representações em voga e da própria inconsistência do mundo. Para elas, não se trata de destruir imagens para conquistar um acesso imediato à realidade: a crítica, nestes casos, é já um aparecer do real, um sintoma, a realidade mesma somada a conceitos em ato, provocando necessariamente rupturas. Devemos lembrar, aliás, que, como havia mencionado, é fundamental nestes momentos a vontade de crer na verdade contida num conceito. O quantum de real e a vontade de crer num conceito é o critério para o verdadeiro ato crítico, cuja existência por si só já torna inconsistente a definição latouriana da crítica enquanto iconoclastia.
Latour descreveu apenas o jogo irônico da crítica acadêmica, mas esqueceu-se de olhar para sua própria postura ultrairônica de distanciamento “crítico” em relação à crítica. Todo um jogo de espelhos. Resumindo: a ideia de “iconoclasm” e “iconoclash” de Latour é a monumentalização da postura irônica em relação aos conceitos e situações. Se Latour conclui, por conviver com um tipo de crítica desencarnada dos processos reais históricos, que a crítica é pura iconoclastia (destruição niilista de ícones para substituí-los por outros), então sua proposta alternativa é “produzir imagens, intercambiá-las, chocá-las entre si, sobrepô-las”. Tanto suas conclusões como as alternativas delas decorrentes estão equivocadas por conta daquilo que vim dizendo até aqui: os conceitos e, logo, as críticas são atuados, levam atrás de si situações políticas, sintomas reais e vontades de crer autênticas. A postura latouriana do “iconoclasher” propõe que vivamos na fantasmagoria das imagens “como se” acreditássemos nelas, não no quantum de real que há por trás das imagens e conceitos. O “como se” é a chave da postura ideológica: sei que as imagens são inconsistentes, mas atuarei “como se” fossem suficientes e necessárias. É a coroação da postura irônica.
Lendo uma etnografia sobre o PCC…
Há pouco tempo tive a oportunidade de ler a segunda etnografia de Karina Biondi sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC), uma organização brasileira ligada ao tráfico de drogas e cuja presença é sentida principalmente nas vilas, favelas e bairros populares das grandes cidades do país. O título da tese é “Etnografia no movimento: território, hierarquia e lei no PCC”. Crendo piamente na virtude que a etnografia tem para nos colocar frente a frente com processos históricos singulares e carregados de significação para as pessoas envolvidas, li com interesse a obra. Nela, a autora se propõe a desmontar a tese estatal de que o PCC é um movimento permanente nos territórios, organizado com base em hierarquias, com suas respectivas lideranças e subordinados. Talvez eu esperasse encontrar nesta etnografia alguma revelação ou relato potente sobre as vidas afetadas pelo movimento, os sonhos das pessoas que por ele passam, as dificuldades que a presença do tráfico impõe ao dia-a-dia dos territórios nos quais conflui, a imaginação daqueles e daquelas que têm de lidar com o movimento, o que eles e elas pensam sobre o presente, o passado e o futuro. Esperava um lampejo político, ético ou existencial. Confesso que me frustrei bastante ao dar-me conta, já ao final da obra, de que as vidas singulares e o conteúdo histórico da presença do PCC nas ruas de São Paulo estavam diluídos em uma descrição da “forma” em que o movimento se estruturava (ou melhor, não se estruturava, mas “fluía”): fluxos pelo território; rizomático ao invés de hierárquico; imanência do PCC; transcendência de um movimento-imagem, etc. Trata-se daquela forma clássica de projeção antropológica, salvo pela “novidade” dos conceitos deleuzianos: o PCC era mais uma “anarquia ordenada”, como dissera Evans-Pritchard dos Nuer no Sudão, ainda na primeira metade do século XX.
A autora cumpriu seu objetivo: substituiu a imagem estatal de um movimento organizado, permanente num território, hierarquizado (com “cabeças” que podem ser incriminadas) por outra imagem, a de um PCC fluído, rizomático, descentrado, “imanente” aos lugares e pessoas que o vivem. A forma está completamente bem descrita, mas faltaram as pessoas e, principalmente, a singularidade das situações históricas com as quais tenho certeza que a antropóloga deve ter se deparado. Perseguindo a “forma” do PCC, a etnógrafa perdeu claramente o “conteúdo” histórico e humano que lida com essa “forma” no dia-a-dia: a ama, a odeia, a prescinde ou a necessita. Na obra, não é possível depreender nada do que as pessoas de carne e osso querem ou não querem, afinal elas apenas “passam” ou fluem através do rizoma organizativo do movimento. Se a forma como se atualiza o PCC requer que as pessoas simplesmente “passem” por ele, eu entendo. Mas não posso acreditar que isso descreva a materialidade do que ocorre ali, salvo que as pessoas tenham virado fluídos fantasmagóricos. Não estavam em questão as implicações das formas fluídas para as pessoas que, no dia-a-dia, lidam com o PCC. Não estava em questão se a fluidez do PCC é viável do ponto de vista dos que “passam” por ele ou se ela é, no fim das contas, impossível se levarmos em conta quem nela vive.
A antropóloga tampouco precisava replicar a ideologia dos integrantes do movimento na sua intervenção textual, pois, arriscaria dizer, eles próprios sabem que o real não segue o script ideológico. Entendo que o cuidado possa ter sido em função de não se expor a si mesma nem as identidades de seus interlocutores, dado o claro risco de vida envolvido nas atividades que estavam sendo pesquisadas. No entanto, creio que há algo mais: a produção antropológica tem usado conceitos e formas descritivas para anular a singularidade das situações em que se vê envolvida (assim como a crítica imanente presente nelas). O esvaziamento político dos conceitos de fluxo, rizoma, etc., elaborados para descrever e combater situações nas quais a reprodução do capital se articula com instituições estatais e regimes vários de poder, também pode ser testemunhado neste caso. Vazios, os conceitos de rizoma, fluxo, etc., são projetados no real e nos devolvem uma imagem formal do PCC, tão formal quanto aquela que o pinta como um comando hierarquizado. O que se faz com uma imagem “rizomática” do PCC, esvaziada de toda localização, de toda singularidade que possa ter em cada território específico onde ele “passa” ou para cada pessoa específica que “passa” por ele? Nada, para nós que não somos o Estado.
E esta é a crítica mais grave que se pode fazer a este tipo de trabalho, apesar de ser uma boa etnografia para os padrões universitários atuais: de que serve criar uma imagem do movimento contraposta a do Estado, quando o demandante desta “imagem” formal é o próprio Estado? Talvez essa antropologia seja um espelhamento da entidade estatal: não há lideranças, há “anarquia ordenada” em tudo o que vemos. Aliás, não é de hoje que as instituições estatais precisam lidar com movimentos de diversos tipos (guerrilhas, tráfico, sublevações populares, coletivos humanos) que se organizam de maneira que não haja lideranças e hierarquias, já que a forma “acéfala” de organização é uma questão tanto de estratégia quanto de princípio político. De que serve devolver essa imagem ao Estado, se ele mesmo já sabe disso? Este, ainda por cima, é capaz de organizar a repressão a um movimento descentrado, como vimos nas sublevações de 2013, com diferentes e novas táticas repressivas. Além disso, “anarquia ordenada” e a responsabilização de lideranças podem ser perfeitamente combinadas nas técnicas repressivas estatais. O mapeamento “rizomático” (oxímoro real), no fim das contas, é só mais um plano de descrição estratégica nas mãos de quem visa conhecer, controlar e disciplinar momentos insurrecionais.
Atuar uma singularidade: Lênin etnógrafo
A possibilidade de emergência do sujeito histórico é obstruída em muitas das expressões atuais da antropologia disciplinar, em nome de descrições formais que diluem situações singulares (e potencialmente disruptivas) em esquemas gerais e praticamente vazios (“a crítica é iconoclastia”, “o PCC é um fluxo”, etc). Falta-nos indagar que relação há entre esse formalismo e uma epistemologia estatal. Mas, enquanto isso, podemos nos perguntar: o que fazer para escapar da inglória tarefa de passar a vida abastecendo os bancos de dados estatais, reportando de forma débil as situações nas quais nos vemos envolvidos, escrevendo relatórios ou criando imagens chocantes porque simplesmente invertidas? Ora, é possível traçar um paralelo entre atuar um conceito e atuar uma situação singular, ou reatuá-la em outros espaços e conjunturas. O contrário também é possível: podemos (e, de fato, é o que fazemos normalmente) tomar os conceitos como meros objetos (lembremos da infame expressão “ferramentas ou instrumentos de análise”) para manipular e instrumentalizar as situações “etnográficas” em nossas pesquisas e monografias. Isto ocorre quando encaramos os conceitos, por um lado, e as situações, por outro, de forma irônica e distante (“eu sei bem, mas tanto faz”).
Se o desafio é atuar conceitos – e não apenas utilizá-los –, então podemos aproveitar que neste ano muitxs celebram o centenário do acontecimento de Outubro de 1917 para relembrar os esforços de um sujeito que se tornou emblema dessa atitude. Nas longas vésperas da revolução de 1917, quando V. I. Lênin estava na clandestinidade, andava por aí convivendo com os proletários nos bairros de Petrogrado, sendo recebido pelas pessoas nas suas casas, trocando ideias até altas horas da noite. Qual a diferença disso para o trabalho de um etnógrafo? Bom, Lênin era um revolucionário, bolchevique, radical, etc., e há muitas controvérsias em torno das iniciativas revolucionárias assumidas em 1917 e principalmente no período posterior de consolidação do Estado soviético. Seja como for, somos obrigados a lidar com a constatação de que Lênin conhecia muito bem seu tempo, os sonhos e ódios de seus contemporâneos. Talvez tanto quanto qualquer etnógrafo. A revolução de 1917 é um desses momentos históricos em que certos grupos humanos são capazes de atuar a novidade radical do seu tempo, ou seja, atuar a singularidade de uma situação que não se repetirá jamais. Ao tomar seu tempo nas próprias mãos e nomear as possibilidades nele existentes através dos conceitos então disponíveis – soviete, partido, proletariado, revolução – os revolucionários de outubro se atreveram a viver seus próprios conceitos, radicalizando-os e distorcendo-os inevitavelmente: as palavras e as coisas nunca mais seriam como antes. E a pergunta que resta é: será que Lênin foi fiel – no sentido que Žižek imprime à fidelidade quando analisa os seguidores de Kant – ao espírito da situação de Outubro, traindo sua literalidade, seus detalhes, suas tradicionalidades? Ou, ao contrário, foi fiel ao modo de vida do camponês e do proletário explorado da Rússia, fiel a cada reentrância do seu imaginário “cultural”, tomando notas das suas formas organizativas nos sovietes e registrando seus pontos de vista em esquemas paralizantes? Lênin se dispôs a atuar os conceitos que proliferavam em determinado momento histórico ou, em vez disso, utilizou-os como recurso para exaurir a própria realidade em representações de como as coisas realmente são? Lênin viu nas palavras utilizadas por seus contemporâneos – fossem eles proletários, camponeses ou teóricos da social-democracia russa e europeia – o índice de uma vontade de lançar-se ao encontro do real incerto e inóspito ou, no sentido oposto, limitou-se a descrever um mundo dado, um mundo eternamente avesso aos rompantes atrevidos e criadores da consciência humana que o atravessa e reconfigura? Eu diria que o líder do partido bolchevique propôs, no marco de grandes agenciamentos coletivos, um verdadeiro experimento com a “revolução”; um experimento que, ao seu modo (e com graves erros), foi capaz de atuar positivamente aquela singularidade contextual que nunca mais se repetiria. Guardadas as proporções e a natureza de cada momento, é esse o desafio que nos espera: ser fiel à novidade radical das situações singulares do nosso tempo, ao espírito das críticas, prefigurações e sonhos mais febris que as pessoas são capazes de nos transmitir (e os que nós mesmos somos capazes de elaborar). Claro que isto está longe de qualquer objetivo demasiadamente pragmático ou de qualquer postura irônica frente ao mundo, às situações e aos conceitos: outra forma de se relacionar com a pesquisa, e até mesmo outra linguagem, estão em jogo.
Bibliografia
HARAWAY, Donna. Saberes localizados. In: Cadernos Pagu. (5) 1995: pp. 07-41.
ZIZEK, Slavoj. Deleuze. In: GIORGI, G.; RODRÍGUEZ, F. (comps.) Ensayos sobre biopolítica: excesos de vida. Paidós: Buenos Aires, 2007.
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