Por André Gunder Frank.
Tradução: Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC).
A questão é a responsabilidade do antropólogo. Sua responsabilidade é usar a antropologia apenas na medida em que ela seja suficiente para fazer o que for necessário em prol da substituição do sistema mundial capitalista, explorador, racista e alienante que envolve a maioria dos antropólogos e dos povos que eles estudam. Chamados em favor da verdade e de uma abordagem humanista são críticas liberais insuficientes diante da adesão liberal da maioria dos antropólogos e dos benefícios que eles extraem do sistema ao qual servem.
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Apresentação
Alex Martins Moraes
Poucas vezes a antropologia disciplinar estadunidense presenciou um chamado ao engajamento político tão intenso quanto o texto intitulado “Antropologia liberal versus antropologia da libertação”, publicado por André Gunder Frank na Current Anthropology, em 1968. O mais irônico desta situação é que Gunder Frank não era, precisamente, um antropólogo – pelos menos não no sentido estrito do termo. Ele se formou em economia na Universidade de Chicago e, posteriormente, inspirado pelo triunfo da Revolução Cubana, veio a desenvolver uma trajetória intelectual dissidente que o conduziu à formulação de uma das expressões mais radicais da teoria da dependência.
Os trabalhos de André Gunder Frank constituíram um esforço notável no sentido de definir as duradouras consequências estruturais decorrentes da incorporação dos territórios latino-americanos ao mercado mundial capitalista inaugurado com a colonização europeia. Para Gunder Frank, desde a conquista ibérica no século XV a América Latina passou a integrar o pólo dominado do sistema mundial em vias de conformação, estando seu desenvolvimento posterior amplamente determinado por esta condição geopolítica. “A expansão econômica e política da Europa desde o século XV – argumentava Gunder Frank – encerrou os países hoje subdesenvolvidos numa só corrente histórica mundial, o que fez aumentar, simultaneamente, o atual desenvolvimento de alguns países e o subdesenvolvimento de outros” (Gunder Frank, 1971: 38). A definição do sistema internacional – ou sistema mundial – como unidade de análise privilegiada para mapear a gestação e a particular configuração das formações econômicas latino-americanas seria uma das coordenadas fundamentais da chamada teoria marxista da dependência (TMD).
Jaime Osorio (2016) considera que as intuições de André Gunder Frank são o momento de trânsito da dependência[1] em direção ao marxismo; trânsito que será completamente operado por Ruy Mauro Marini em Dialética da dependência. Da mesma forma que Frank, Marini se propôs a mapear a singularidade dos processos econômicos latino-americanos tendo em vista sua inserção no circuito mundial de trocas capitalista. Contudo, a teoria de Marini procurou delimitar a especificidade contemporânea da dependência latino-americana, definindo com maior precisão as modalidades de dominação e exploração que a diferenciavam da época colonial.
Em diálogo com a história e a antropologia – ou melhor, com alguns antropólogos em particular, entre eles Eric Wolf, Margaret Mead e Darcy Ribeiro – Gunder Frank sugeriu que o desenvolvimento econômico do Terceiro Mundo não dependeria do estabelecimento da hegemonia política de uma burguesia urbana modernizadora sobre o meio rural feudal, atado ao clientelismo e a padrões conservadores de acumulação do capital. Neste ponto, ele se afastava do “endogenismo” propagado pela ortodoxia dos partidos comunistas ao longo de boa parte do século XX. Grosso modo, a perspectiva endogenista tendia a analisar as relações de produção vigentes na América Latina sem correlacioná-las com as dinâmicas estruturais inerentes ao mercado mundial capitalista. Estas teses aplicavam ao contexto latino-americano um suposto modelo geral de desenvolvimento das forças produtivas que, baseado numa perspectiva evolucionista, postulava a necessidade de se franquear etapas econômicas pré-determinadas até alcançar as condições de possibilidade para a superação do modo capitalista de produção. A Revolução Cubana, que dera início à construção do socialismo num dos territórios menos industrializados do continente, desafiava na prática os pressupostos endogenistas e convidada a uma reflexão mais acurada sobre a atualização da possibilidade revolucionária no seio do capitalismo latino-americano. Sensível à experiência cubana, Gunder Frank argumentou que as burguesias nacionais eram dependentes das portas para fora e agentes do colonialismo interno das portas para dentro. Por esta razão, um autêntico programa de transformação emancipatória da sociedade deveria deixar de lado as ambições burguesas e responder imediatamente às demandas, aos relatos e aos dramas de quem habitava o lado subalterno das fronteiras coloniais internas. Tendo em vista esta bússola política, uma “antropologia da libertação” poderia começar a dar seus primeiros passos.
Até onde sabemos o artigo “Antropologia liberal versus antropologia da libertação” ainda não tinha sido traduzido ao português. Isto talvez se explique por sua relativa “excentricidade”. Ao longo do texto, Gunder Frank aproveita o lugar de enunciação que, em razão de sua notoriedade acadêmica, lhe fora oferecido por Current Anthropology, para promover o discurso de certos antropólogos e intelectuais que, de outra forma, dificilmente teriam tido a oportunidade de interpelar seus colegas através das páginas desta revista. O “desaparecimento” de textos como este da memória disciplinar ajuda a entender por que muitos antropólogos costumam circunscrever o chamado “giro reflexivo” de sua disciplina às polêmicas e propostas teóricas surgidas a partir década de 1980, sob o influxo do seminário de Santa Fé. As reflexões sobre ética profissional, compromisso com os interlocutores e engajamento dos antropólogos desenvolvidas antes da década de oitenta são evocadas apenas en passant nas aulas de antropologia e, algumas vezes, seu conteúdo costuma ser apresentado de forma estereotipada, como mero reflexo da indignação impotente dos intelectuais estadunidenses com a Guerra do Vietnã e do seu entusiasmo ingênuo e distante frente às lutas anti-coloniais nos continentes asiático e africano. O que a memória disciplinar deixa escapar é um dos primeiros movimentos críticos que questiona não apenas os regimes de representação da alteridade que sustentam a autoridade etnográfica, mas também as bases institucionais e os compromissos políticos nos quais estes regimes se amparam.
A decisão do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC) de traduzir “Antropologia liberal versus antropologia da libertação” não é, de forma alguma, “memorialista”. Para nós, as reflexões de Gunder não ecoam de um “passado ideológico” no qual estariam definitivamente enclausuradas. Preferimos tomá-las como estímulo para recomeçar certos debates talvez muito precocemente “superados” por nossos antecessores. Às vezes, o ato de recomeçar pode ser muito mais digno do que a atitude de simplesmente seguir em frente. Por isso, oferecemos às/aos leitores/as uma lista sucinta de observações e provocações que poderiam ser úteis para colocar as preocupações de Gunder em sinergia com nossos atuais dilemas políticos e teóricos:
– Para André Gunder Frank, o sentido de uma pesquisa, a relevância e a natureza do saber antropológico são determinados pelo seu uso em circunstâncias concretas de exclusão e exploração. Nesta perspectiva, a ideia de produzir um conhecimento sem saber ao certo como ele poderia vir a ser usado torna-se altamente questionável do ponto de vista ético – principalmente se nos encontramos inseridos em conjunturas repressivas. Gunder propõe, ao fim e ao cabo, que os cientistas sociais assumam o controle, junto com seus interlocutores, de todo o processo de produção do conhecimento, instalando, assim, uma antropologia da libertação que é, também, uma “antropologia do necessário”.
– Gunder Frank vê com certa ironia o fato de que os cientistas sociais da década de 60 tenham denunciado a contratação de seus colegas pelo Exército dos EUA (Projeto Camelot) ao mesmo tempo em que silenciavam sobre o fato de que suas disciplinas já serviam, há muito tempo, ao imperialismo. Serviam-no na medida em que os resultados de suas pesquisas desengajadas eram facilmente aproveitados pelas agências de defesa, inteligência e repressão. Hoje em dia, situações análogas ocorrem quando o saber científico-social é instrumentalizado pelo poder judiciário, pela polícia ou pelos fabricantes de políticas públicas para respaldar decisões e ações controversas que ferem os interesses coletivos de populações subordinadas. Contra a impotência política e o servilismo compulsório, Gunder Frank convida os antropólogos a mobilizarem ativamente os resultados de sua investigação, assumindo a máxima responsabilidade política possível sobre os enunciados que professam.
– O autor esboça uma geopolítica do conhecimento na qual as academias do norte global aparecem como espaços em disputa entre programas de pesquisa solidários à orientação imperialista da macropolítica nacional e perspectivas críticas comprometidas eticamente com a autonomia popular. Neste contexto, Gunder Frank convida os antropólogos metropolitanos a voltarem para casa em busca de alianças estratégicas com os movimentos mais radicais de defesa dos direitos civis em voga naquela época. Seu argumentando é que, ao trabalhar contra o imperialismo interno nos seus países de origem, os antropólogos do norte global poderiam ser, também, de alguma utilidade para a ofensiva anti-imperialista desencadeada no Terceiro Mundo. Não era uma questão de voluntarismo. Pelo contrário, para Gunder Frank boas intenções, vontade de ajudar os outros e ataques retóricos ao imperialismo não bastavam. A atitude crucial era mudar de conduta através de novos compromissos militantes, de modo a tornar-se sujeito da transformação em seu próprio ambiente social.
– Citando Barbara e Alan Haber, o autor se posiciona a favor de uma antropologia que esteja condicionada, no concernente a objetivos e problemas de pesquisa, pela trajetória social e pela experiência política dos seus praticantes. E, na verdade, é justamente isso que ocorre hoje em dia. Mas é a trajetória liberal e a experiência de classe burguesa dos antropólogos estabelecidos que informam a “atmosfera” desmarcada e higienizada em meio a qual transcorre a vida disciplinar. O texto de Gunder Frank advoga pela implosão dessa atmosfera supostamente amena, familista e consensual. Para ele, é fundamental explorar as descontinuidades éticas, estéticas, de classe, etc. que realmente caracterizam cada instituição de ensino e pesquisa, favorecendo, assim, a emergência de novas agendas intelectuais em consonância com os eixos de conflitividade que transversalizam a vida coletiva.
– Gunder Frank formula, ao longo do texto, uma pergunta crucial que permanece à espera de debates mais aprofundados: queremos estudar a transformação “nas” nossas coletividades ou “das” nossas coletividades? Em que medida estamos bem equipados – teórica e metodologicamente – para pensar as condições de possibilidade de uma transformação radical das conjunturas que nos envolvem e constituem? Acreditamos, realmente, nesse tipo de transformação? Como fundamentamos nossa crença? Para Gunder, o ponto de partida do debate deveria ser a análise de “por que a maioria dos [nossos] colegas prefere estudar a mudança em vez de promover mudanças na sua própria sociedade”. E provoca: “isto é falsa consciência, consciência de classe ou o quê?”
– Os antropólogos liberais contemporâneos questionam o tom excessivamente antagonista e “dialético” de Gunder Frank neste e noutros textos. Diante de ponderações dessa natureza, me pergunto sobre o porquê da obstinada inclinação de certos/as praticantes da disciplina em favor de perspectivas conciliatórias – ou, no seu surrado jargão, “perspectivas que deem conta de realidades complexas, múltiplas e heterogêneas”. Hoje em dia, a negação do antagonismo pretende camuflar seu viés docilizante com a retórica da diferença (“abaixo a dialética, viva a diferença…”). O problema é que a diferença, num mundo eivado de desigualdades, é materialmente subordinada pelos mais diversos métodos de espoliação. As pessoas perdem suas casas e seus territórios; perdem sua linhagem em meio ao genocídio racista; perdem sua esperança rebelde em meio ao disciplinamento e a chantagem econômica das instituições do saber legítimo. Por isso, a expressão política da diferença continua sendo o antagonismo. Excluído o antagonismo, a diferença terminaria condenada a negociar sua existência exclusivamente no terreno da conciliação, sem perspectiva alguma de ruptura radical com os sistemas vigentes de posicionamento e alterização. Triste destino… principalmente se for o único disponível.
Referências:
MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia. In: MARTINS, Carlos E. (Org.). América Latina, dependencia y globalización. Bogotá: Siglo del Hombre-CLACSO, 2008. p. 107-149.
FRANK, André Gunder. Sociología del desarrollo y subdesarrollo de la sociología. Barcelona: Anagrama, 1971.
OSORIO, Jaime. Teoría marxista de la dependencia. Historia, fundamentos, debates y contribuciones. Buenos Aires: Ediciones UNGS, 2016.
Antropologia liberal versus antropologia da libertação
André Gunder Frank
Quando perguntaram para o Che Guevara o que alguém, como escritor, poderia fazer pela revolução, ele respondeu que, pessoalmente, costumava atuar como médico. A questão não é em que medida a medicina ou a antropologia são mais ou menos úteis ou relevantes que outros campos do esforço humano. A questão é a responsabilidade do antropólogo. Sua responsabilidade é usar a antropologia apenas na medida em que ela seja suficiente para fazer o que for necessário em prol da substituição do sistema mundial capitalista, explorador, racista e alienante que envolve a maioria dos antropólogos e dos povos que eles estudam. Chamados em favor da verdade (Barreman) e de uma abordagem humanista (Gjessing) são críticas liberais insuficientes diante da adesão liberal da maioria dos antropólogos e dos benefícios que eles extraem do sistema ao qual servem. Mais do que ninguém, os antropólogos sabem que os valores, a mitologia, a ciência e outras facetas da cultura estão intimamente relacionadas com a estrutura da sociedade – ainda que muitos antropólogos prefiram observar esses fatos apenas em outros povos e sociedades. Barreman e Gjessing, que consagram a maioria dos seus ensaios à negação da possibilidade de se fazer uma antropologia despida de valores, parecem estar batendo num gato morto antropológico.
Sugerir que os antropólogos abandonem a integridade da sua disciplina (Gjessing) para superar as limitações da especialização e do trabalho de campo individual é necessário, mas não suficiente. Gjessing alerta que os economistas, cientistas políticos e sociólogos substituíram largamente os antropólogos e que a antropologia estadunidense está, agora, muito próxima da realidade de sua contraparte europeia. Contudo, ainda que isso seja verdade, não significa que a proposta de Gjessing de realizar trabalhos interdisciplinares, seguindo os passos de outros campos do conhecimento, seja a solução: para ele, as ciências sociais liberais e suas técnicas servem, agora, apenas a um imperialismo estadunidense melhorado e mais sofisticado (Gough e Gjessing). Com efeito, na sua introdução a Social Science and Research on Latin America, patrocinado pelo Social Science Research Council, o antropólogo Charles Wagley observa que, nos Estados Unidos, nas últimas três décadas:
a América Latina foi negligenciada por nossos acadêmicos que, no final das contas, devem fornecer dados básicos para o consumo público e acadêmico. Da mesma forma que a África, a América Latina é, sob vários aspectos, um “continente negro”. Esta situação agora está mudando. Existe um novo interesse público na América Latina, estimulado pela tomada de consciência de sua importância para os nossos próprios interesses nacionais. O National Defense Education Act estimula o estudo do espanhol e do português, bem como das sociedades latino-americanas. A Aliança para o Progresso (…) expressa com clareza a importância dessa região para nós. Fundações privadas respaldaram pesquisas sobre a América Latina (…)
Algo semelhante pode, sem dúvidas, ser observado no repentino surto de estudos africanos nos Estados Unidos, o qual se relaciona menos com a crescente independência dos país africanos frente à Europa do que com sua crescente dependência dos Estados Unidos. A participação da antropologia, para não falar da antropologia aplicada, nessa transferência do fardo do homem branco para além-mar é evidente e os seus resultados políticos e científicos são previsíveis.
O Projeto Camelot não foi um evento isolado e a choradeira contra o emprego direto, por parte do Departamento de Defesa, de cientistas sociais ignora que virtualmente boa parte da ciência social do “mundo livre” é, de fato, um enorme Projeto Camelot imperialista. Politicamente ingênuos, embora não tão inocentes, os cientistas sociais liberais não conseguem tomar consciência das razões pelas quais sua pesquisa é financiada e do uso dos seus resultados. Entretanto, como William Domhoff demonstra em Who Rules America?, os usos e abusos da ciência e dos cientistas sociais são bem conhecidos para os trustes da alta burguesia, precisamente as fundações Carnegie, Rockefeller, Ford, et al., e para as talvez menos sugestivas principais universidades norte-americanas (que liberalmente intercambiam seus presidentes, decanos e finanças entre si e também com o Departamento de Estado dos EUA). O Painel da Junta de Defesa Científica – Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos também parece interessada num Projeto Camelot “livre” a nível mundial. Neste sentido, referida instituição argumenta o seguinte:
Em anos recentes o Departamento de Defesa se confrontou com muitos problemas que requerem a ajuda de cientistas sociais e comportamentais (…) As Forças Armadas não se dedicam exclusivamente à guerra. Suas missões agora incluem pacificação, assistência, “batalha de ideias”, etc. Todas essas missões requerem um entendimento das populações rurais e urbanas com as quais nosso pessoal militar toma contato — nas novas atividades pacíficas ou no combate. Para muitos países ao redor do mundo nós ainda precisamos de mais informações sobre suas crenças, valores e motivações; sua política, religião e organização econômica; sobre o impacto de várias mudanças ou inovações sobre seus padrões sócio-culturais (…) As inovações na metodologia convencional da ciência social (…) são um dos casos exitosos nos quais existe uma substancial sobreposição tanto no que diz respeito aos interesses do Departamento de Estado, como no que se refere aos interesses da comunidade acadêmica produtora das pesquisas (…) Nós acreditamos que o Departamento de Defesa foi exitoso ao levar em conta os interesses e os serviços de um grupo de eminentes cientistas comportamentais na maioria das áreas consideradas relevantes (…) Por outro lado, o Departamento de Defesa pode aperfeiçoar sua ação ao assumir maiores responsabilidade, apresentando suas necessidades em termos que façam sentido para o pesquisador, mais do que para o militar. Chamar as pessoas para fazer pesquisa em “contra-insurgência”, “guerra de guerrilhas”, etc., não apenas produz reações pouco entusiastas, mas também deixa de oferecer bases para que as pessoas façam pesquisa do modo como julgam mais apropriado (…) A comunidade de cientistas do comportamento deve aceitar a responsabilidade para o recrutamento de gestores de pesquisa do Departamento de Defesa (…) Os seguintes pontos são elementos que merecem ser levados em consideração enquanto fatores da estratégia de pesquisa para agências militares. Agendas de pesquisa ordenadas por prioridade: 1 (…) métodos, teorias e treinamento em ciências sociais e comportamentais em países estrangeiros (…) 2. (…) programas que atraiam cientistas sociais estrangeiros (…) 3. (…) pesquisa social conduzida por cientistas nativos independentes (…) 4. (…) atividades de ciências sociais a serem realizadas pelos principais centros de estudos de pós-graduação dos EUA em áreas estrangeiras (…) 7. (…) estudos localizados nos Estados Unidos que explorem os dados coletados por investigadores fora de fronteiras financiados por agências não relacionadas com as tarefas de defesa. O desenvolvimento de dados, recursos e métodos analíticos deve ser estimulado e os dados coletados para propostas especiais podem ser utilizados para várias propostas adicionais (…) 8. (…) Colaborar com outros programas nos Estados Unidos e em outros lugares que possam oferecer ao pessoal do Departamento de Defesa acesso contínuo aos recursos acadêmicos e intelectuais do mundo livre (…)
Igualmente conscientes, mas posicionados em outra perspectiva, aproximadamente 500 intelectuais de setenta países proclamaram, de forma unânime no Congresso Cultural de Janeiro de 1968 uma “Declaração de Havana” para todos os intelectuais do mundo:
Nós reconhecemos que esse empreendimento de dominação assume as formas mais diversas – das mais brutais às mais insidiosas – e que ele opera em todos os níveis: político, militar, econômico, racial, ideológico e cultural; nós também reconhecemos que tal empreendimento é impulsionado mediante enormes recursos financeiros e com ajuda das agências de propaganda disfarçadas de instituições culturais.
O imperialismo procura, através das mais variadas técnicas de doutrinamento, assegurar a conformidade social e a passividade política. Ao mesmo tempo, um esforço análogo é realizado para colocar técnicos, homens de ciência e intelectuais de maneira geral a serviço de interesses e propostas capitalistas e neocoloniais. Assim, talentos e habilidades que poderiam ou deveriam contribuir à tarefa do progresso e da libertação tornam-se, em vez disso, instrumento de comercialização de valores, degradação da cultura e manutenção da ordem sócio-econômica capitalista.
O interesse fundamental e o dever imperativo dos intelectuais é resistir a essa agressão e assumir, sem demora, o desafio que isso representa para eles. O que se pede aos intelectuais é seu apoio para as lutas pela libertação nacional, pela emancipação social e pela descolonização cultural de todos os povos da Ásia, da África e da América Latina, assim como para as lutas contra o imperialismo, confrontado em seu próprio centro por um número cada vez maior de cidadãos negros dos Estados Unidos. É necessário, também, ingressar na luta política contra as forças conservadoras e retrógradas, contra as forças racistas, desmistificando suas ideologias e atacando a estrutura sobre a qual elas repousam conjuntamente com os interesses aos quais servem (…)
Este compromisso pode começar com uma rejeição da política de sujeição cultural dos Estados Unidos; isto implica a recusa a todos os convites, bolsas, empregos e participação em programas de trabalho e pesquisa cultural quando tal aceitação possa acarretar colaboração com referida política.
Há duas razões para os antropólogos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos responderem à responsabilidade de trabalhar em suas próprias sociedades. A primeira razão pode ser expressa da seguinte forma: se bem seu trabalho em outros lugares do mundo serve aos interesses do imperialismo, não é possível dizer o mesmo a respeito dos interesses dos povos colonizados. De acordo com Gjessing (citando Mydral), são as mudanças políticas, e não a reorientação autônoma, que podem redirecionar o trabalho científico. Contudo, as mudanças políticas contemporâneas podem direcionar os antropólogos e outros cientistas sociais metropolitanos a atuar no interesse dos povos colonizados na medida em que elas tragam esses cientistas para trabalhar em favor da destruição do imperialismo na metrópole e, portanto, em favor da libertação dos povos em outros lugares. Uma segunda razão para trabalhar em casa é que a metrópole imperialista está experimentando poderosas mudanças políticas que podem orientar alguns antropólogos para o trabalho responsável em casa — como participantes do movimento de libertação ali desencadeado.
Para os antropólogos dos Estados Unidos e de outros países que irão assumir essa responsabilidade seriamente, Barbara e Alan Haber sumarizaram algumas implicações:
(1) no que diz respeito ao movimento, devemos pensar em termos de utilidade — isso nos ajuda a definir o que faremos e a saber até onde nosso trabalho tem relevância (…) Se nossas aspirações pessoais ou trabalho profissional nos impedem de fazer coisas respeitáveis, então estamos brincando com nós mesmos e com a nossa política. (2) Status elevado, respeito e recompensas no estabelecimento profissional estão encerrados. Nós devemos esperar instabilidade laboral, a probabilidade de sermos demitidos periodicamente, o perigo de encontrar dificuldades crescentes na busca de emprego. (3) Um radical não vê sua lealdade como algo a ser devotado a uma profissão ou à instituição na qual trabalha. Nossa lealdade é para com nossos camaradas políticos, para com os objetivos políticos em favor dos quais estamos nos organizando (…) Obviamente isso representa uma dificuldade moral, porque outros assumirão que nós possuímos lealdades tradicionais (…) Nós não somos intelectuais acima de tudo, que dizem a verdade para todo mundo que quiser ouvir: nós somos “partisans” (…) (4) Os radicais não podem aceitar sem reserva o código de ética e responsabilidade das suas profissões. Ética não é o mesmo que ideais abstratos. Ética é a santificação de certos tipos de relações sociais, proposta e lealdades [o que não é novidade para os antropólogos, mas só na medida em que a referência são os outros povos e não o seu]. A ética convencional nos aprisiona numa postura de referendar coisas que não podem ser politicamente apoiadas; ela nos convoca a estabelecer lealdades que entram em conflito com nossos próprios valores e políticas (…).
Os antropólogos europeus e norte-americanos que reconhecem estes fatos sobre sua sociedade e que estão preparados para aceitar a responsabilidade deles decorrente, podem e devem mobilizar suas habilidades especiais para servir ao movimento de três formas. Ao analisar as limitações da roupagem científico-social do imperador, esses antropólogos devem, como faz Gough, exibir o imperialismo na sua nudez ideológica e denunciar aqueles, entre os seus colegas, que continuam desfrutando do conforto físico que sua roupa de gala pseudo-científica lhes proporciona. Entre outras coisas, isso supõe mostrar, diferentemente do que faz Gjessing, que as limitações teóricas e políticas de Firth e seus seguidores não se reduzem ao fato de que sua teoria da organização social concebe apenas mudanças geradas no interior da estrutura social. Em primeiro lugar, trata-se, como faz Gough, de mostrar a limitação real da teoria e dos teóricos antro(a)pológicos filiados ao imperialismo, que definem arbitrariamente as aldeias ou tribos como sistemas sociais e inventam categorias teóricas como “folk” para esconder a nua verdade da exploração econômica e da alienação cultural dos “seus” nativos por parte do sistema social realmente determinante, a saber: o imperialismo. A segunda limitação é que essa teoria está, de forma ingênua ou intencional, restrita à análise da mudança social “no”, mas não “do” sistema imperialista e capitalista. Se, como alguns antropólogos sustentariam, a estrutura social — incluídos seus aspectos econômicos e políticos — realmente determina a cultura e a ideologia, então o antropólogo socialmente responsável pode analisar por que a maioria dos seus colegas prefere estudar a mudança em vez de promover mudanças na sua própria sociedade; isto é falsa consciência, consciência de classe ou o quê?
Uma tarefa complementar do antropólogo metropolitano responsável é ajudar o movimento, dando preferência a pesquisas e teorias do desenvolvimento requeridas ou requisitadas pelo movimento político em sua própria casa. Se as técnicas de trabalho de campo do antropólogo metropolitano responsável têm alguma relevância, então que ele as use em estudos de comunidade para analisar a estrutura social da sua própria sociedade em favor de um movimento político que promova as mudanças sociais necessárias. Esta tarefa oferece um conjunto de temas de pesquisa não apenas na “outra América”, mas também na América e na Europa dos próprios antropólogos burgueses. Em terceiro lugar, os antropólogos politicamente ativos e comprometidos, como o médico guerrilheiro que cuida dos camaradas feridos, podem se nutrir da sua expertise para ajudar o movimento de libertação em casa, prestando serviços específicos de pesquisa social para seus camaradas e se desviando um pouco do imperativo de publicar trabalhos. Finalmente, o antropólogo pode se tornar um verdadeiro “partisan” — um revolucionário intelectual mais do que um intelectual revolucionário. Muitos antropólogos metropolitanos, ignorando as poderosas mudanças políticas em curso, não irão, é claro, redirecionar seu trabalho. Eles irão continuar com sua pesquisa de campo longe de casa. Esses antropólogos poderiam fazer como [Alexis de] Tocqueville que, cento e trinta anos atrás, observou que a verdadeira natureza da metrópole é mais bem vista a partir da perspectiva das suas colônias.
Os antropólogos dos países colonizados economicamente, politicamente e culturalmente podem, também, trabalhar em casa pelas mesmas razões. Estes não precisam ter dúvidas de que enquanto o imperialismo subsistir, a ciência social metropolitana, incluindo a antropologia, não irá nunca analisar por eles as suas sociedades ou o sistema imperialista. E muito menos desenvolver uma antropologia orientada aos problemas dos países subdesenvolvidos, como Gjessing preconiza. Se a visão de mundo é, no fim das contas, resultante da estrutura social, então apenas os povos que foram ou seguem colonizados no mundo subdesenvolvido e os afro-americanos internamente colonizados estão em condições de encontrar a perspectiva necessária. Para aqueles que desejam realmente essa perspectiva, a caminho já foi apontado pelo apóstolo e praticante da antropologia dos condenados da terra, Frantz Fanon:
Agora, precisamente, podemos ver que a vocação histórica de uma autêntica classe média nacional [tradução equivocada do termo “burguesia” que aparece na versão original em francês] num país subdesenvolvido é repudiar sua própria natureza na medida em que ela seja burguesa, ou seja, na medida em que ela seja ferramenta do capitalismo, e se tornar escrava voluntária desse capital revolucionário que é o povo.
Num país subdesenvolvido, a autêntica classe média nacional [burguesia] deve considerar como sua tarefa sagrada trair o chamado fatídico endereçado a ela se lançar numa aprendizagem junto com o povo: em outras palavras, colocar à disposição do povo o capital intelectual e técnico que foi arrancado à universidade colonial. Mas, infelizmente, nós podemos ver que frequentemente a classe média nacional (burguesia) não segue esse caminho heroico, positivo, frutífero e justo. Em vez disso, ela desaparece, protege sua alma, evita formas chocantes — chocantes porque anti-coloniais — e se mantém alinhada com a burguesia tradicional; burguesia que é estúpida e cinicamente burguesa.
Na Ásia, na África e na América Latina os antropólogos responsáveis devem ser movidos pelas poderosas mudanças políticas vividas nesses continentes; eles devem se tornar conscientes da responsabilidade do intelectual, tal como definida na “Declaração de Havana”; devem se fortalecer a si mesmos através do compromisso moral demandado por Haber e Fanon. Mais do que os antropólogos metropolitanos – não importa o quão responsáveis ou comprometidos eles possam ser – são os antropólogos dos países subdesenvolvidos que estarão mais perto de construir o marco teórico no qual mudança e estabilidade sejam fatores complementares. Entre outros problemas de pesquisa, isto implica analisar como a estrutura de classe e também a cultura e a personalidade na Ásia, na África, na América Latina e na América do Norte são formadas e deformadas pela estrutura mundial capitalista colonial e neocolonial. Os antropólogos do mundo subdesenvolvido — mais do que os do mundo desenvolvido — podem também se tornar “partisans” e ativistas dos movimentos de libertação dos seus próprios países e começar a trabalhar nas muitas facetas de um “projeto de pesquisa devotado ao problema de como guerrilhas pobremente armadas podem resistir a uma tecnologia militar brutal e devastadora” (tema mencionado por Berreman, citando Chomsky). Isto implica, entre outras coisas, estudar como a estrutura colonial e de classes e sua transformação contemporânea geram não apenas contra-insurgência, mas também insurgência, devido a que as queixas da população podem, em momentos específicos, serem mobilizadas militar e politicamente numa longa guerra para destruir o sistema capitalista violento, explorador, racista e alienante, construindo nas áreas liberadas uma sociedade humana verdadeiramente livre.
A tarefa requer mais que o simples estudo da “medicina antropológica”. Ela exige a prática dessa medicina no Vietnã e em outros lugares, seguindo o exemplo de Che Guevara e de milhares como ele. Então, a fórmula da contra insurgência que sugere dez antropólogos para cada guerrilha (citado por Berreman) irá certamente se transmutar numa fórmula da insurgência popular vitoriosa de dez mil guerrilhas respaldadas por todos e cada um dos antropólogos dignos desse nome.
[1] A noção de “dependência” foi adquirindo notável polifonia desde sua instalação na teoria social latino-americana através de alguns trabalhos chave, elaborados por cientistas sociais que orbitavam a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), sediada em Santiago do Chile a partir de 1948. Neste contexto, habitado inicialmente por economistas como Celso Furtado e Juan Noyola e, mais tarde, por sociólogos como Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, foram se desenvolvendo contribuições originais para uma teoria do subdesenvolvimento da América Latina.
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