Alguns “antropólogos públicos” se propuseram a “etnografar” os rolezinhos ou mesmo os piquetes da greve dos caminhoneiros. A questão é: esses sujeitos precisam ser descritos em termos antropológicos ou sociológicos? Precisamos saber de que geração eles são, a que setor social pertencem, o que querem consumir, o que pensam, etc., como se o que eles desejam ou pensam já estivesse, de certa forma, pronto ou estabelecido? Talvez eles busquem algo que não está definido ainda, como todos nós.
CLIQUE AQUI para ouvir o programa na íntegra.
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No dia 10 de junho de 2018, dois integrantes do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica participaram do programa História em Pauta, transmitido pela rádio comunitária A Voz do Morro e organizado pelo Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Animados pelas perguntas e provocações do apresentador do programa, o historiador Rafael Freitas, conversamos sobre a trajetória do GEAC, o momento político do país, refletimos sobre o papel da pesquisa na construção de projetos transformadores e avaliamos as diferenças entre as antropologias disciplinares e a antropologia crítica, proposta pelo grupo.
A seguir, transcrevemos alguns trechos da primeira parte do programa, que pode ser ouvido na íntegra AQUI. Na segunda parte (do minuto 40 em diante), oferecemos breves relatos sobre as pesquisas desenvolvidas pelos membros do GEAC. Entre os diversos temas que viemos pensando nos últimos tempos, destacamos os seguintes: desenvolvimento e política no norte do Uruguai, ocupações de terra, reforma agrária popular, movimentos de moradia, processos de desesquerdização e direitização no continente, a dialética entre governos progressistas e movimentos sociais, as mobilizações populares durante a Copa do Mundo de 2014, remoção de populações em Porto Alegre e mulheres trabalhadoras na cidade de Alvorada. Além disso, aprofundamos o debate sobre pesquisa militante, crítica imanente, eleições de 2018 e a ideia de comunismo. Para finalizar, propagandeamos as próximas atividades que o grupo pretende desenvolver entre 2018 e 2019: oficinas de produção textual, grupos de debate, publicações e agitações de todo tipo.
Boa leitura (ou escuta)! Fica o convite para acompanhar o programa História em Pauta e as demais atrações da rádio comunitária A Voz do Morro, que vai ao ar todos os domingos!
Trechos do bate-papo
Os levantes de 2013
“A história do GEAC está muito ligada aos levantes de 2013. De certa maneira, foram aquelas manifestações que começaram a explorar os limites das possibilidades que tinham sido apresentadas pelo projeto político petista. A grande mensagem de 2013 foi a de que o processo político no Brasil precisava de um sujeito ativo e que se autoenunciasse. Isto porque, no marco do projeto petista, as pessoas foram sendo colocadas, ao longo do tempo, no lugar de ‘beneficiárias’, no lugar de sujeitos passivos da política. O ano de 2013 abriu esse novo momento político que nós estamos vivendo agora. Depois de 2013, apareceram inúmeros sujeitos novos, inclusive bastante díspares entre si. Dentre eles, surgiram muitos com os quais nós não concordamos, sujeitos que pedem intervenção militar, por exemplo. Mas, de alguma forma, aparece no horizonte a possibilidade de um sujeito político que se autoenuncia. A grande irritação ou rechaço do petismo em relação a estes movimentos deve-se ao fato de não poder controlá-los. Estes novos sujeitos não estão pedindo que alguém crie uma política pública do qual eles serão beneficiários. Eles querem criar pautas novas para a política. A autonomia descontrolada e meio selvagem desses movimentos incomoda, claramente, o progressismo”.
“2013 foi um momento chave de desestabilização da narrativa hegemônica do Partido dos Trabalhadores. Entre 2013 e 2014 começam a aparecer pautas políticas muito heterogêneas que transcendem a capacidade política do PT e colocam na ordem do dia uma agenda reivindicatória nova. Isto por um lado. Por outro lado, foram propostas novas táticas de intervenção política no espaço público, novas formas de luta que tencionaram os repertórios que até então eram promovidos, por parte do PT e daqueles movimentos sociais que deram seu respaldo ao governo. A ação direta que é inaugurada nas ruas em 2013 – e, em Porto Alegre, em 2012 – confrontou a estética (e a tática) que o PT promovia como legítima para dar a conhecer (ou manifestar) a insatisfação política ou para apresentar pautas transformadoras para o conjunto da sociedade. Naquele momento, o PT começou a entrar em tensão com as expressões de uma nova conflitividade social que levanta plataformas políticas que transcendem seu próprio programa. E a relação do partido com essas novas conflitividades foi e continua sendo pouquíssimo criativa. Justamente porque o petismo toma essas lutas como uma ameaça potencial ao seu projeto de poder e perde a oportunidade de enriquecer o seu próprio projeto através do diálogo com esses novos coletivos. Talvez possamos começar a extrair dessa leitura uma explicação de por que se acentua, de 2013 em diante, o que nós chamamos (no GEAC e em outros espaços de teorização política) de “direitização”. A direitização talvez não seja apenas um sintoma do fortalecimento dos grupos de direita no país. Ela também evidencia a incapacidade de certa esquerda de estabelecer um diálogo criativo com as novas expressões do radicalismo que se tornam públicas de 2013 em diante”.
Democratização do Ensino Superior, greves estudantis e a crítica disciplinar
“Nós costumamos dizer que o GEAC é fruto do processo de democratização da universidade brasileira nos últimos anos. Uma democratização que se expressou em programas de cooperação internacional e no aumento de vagas e de bolsas nas pós-graduações. Essa abertura relativa da universidade abalou a normalidade da instituição. Em 2011, nós formamos o GEAC com a ajuda de muitos estudantes de outros países da América Latina. A intenção era discutir o papel político do antropólogo e ler o marxismo, que no contexto das ciências sociais e, principalmente da antropologia, estava muito descartado e era objeto de uma crítica extremamente rasa. É importante ressaltar que somos um grupo coordenado por estudantes, nunca tivemos nenhum compromisso com a agenda institucional do Programa de Pós-graduação em que estávamos matriculados. Buscávamos contemplar essas inquietudes que a burocracia da universidade não tem como perceber, já que não conta nos seus fóruns com a participação direta dos estudantes. No primeiro ano de existência do GEAC, ocorreu a primeira greve de estudantes de pós-graduação no Brasil. Foi uma semana de paralisação dos estudantes do mestrado em antropologia da UFRGS. Isso aconteceu no contexto pré-2013, mas representava, de alguma forma, a antessala do que viria a acontecer depois. Já estavam ocorrendo o Occupy Wall Street, o 15-M na Espanha, a chamada Primavera Árabe: todos esses eventos aconteceram em 2011. Havia um clima de radicalização da democracia e das pautas políticas que contagiou, certamente, estes estudantes de antropologia em 2011. Foi uma greve bastante radical, houve rupturas importantes entre estudantes e professores. Neste momento, nós do GEAC – e vários dos estudantes envolvidos na greve – apreendemos uma imagem clara da instituição que frequentávamos. No momento que tu te mobilizas e confrontas determinadas hierarquias, tu consegues ter uma ideia diferente sobre o que é a instituição, sobre quais são as necessidades que determinam seu funcionamento. Assim como as sublevações de 2013, essa greve estudantil foi importante para a definição política do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica”.
“Ficou claro, durante a greve, naquele pequeno espaço de ensino muito específico, que os estudantes vinham nutrindo inquietações, perspectivas e uma crítica à instituição universitária que já não era tão facilmente acompanhada pelos docentes. Docentes estes que constituíram suas referências políticas num estreito diálogo com o programa de reforma social que o Partido dos Trabalhadores vinha propondo. Então, nesta greve se percebeu uma espécie de choque geracional, político e subjetivo a respeito das perspectivas que estar na universidade poderia abrir aos diferentes sujeitos que frequentam a instituição. Os estudantes, por exemplo, não estavam satisfeitos apenas com a possibilidade de acessar a universidade. Eles queriam poder decidir sobre as políticas institucionais, queriam incidir na definição dos planos e programas de estudo, queriam ter presença direta nos conselhos que deliberam sobre a política institucional. Essas inquietações não eram facilmente acolhidas pelos professores, ainda que eles se sentissem identificados com a esquerda. Eles se sentiam sujeitos de esquerda. Essa greve, super específica, foi para nós, do GEAC, uma oportunidade de tomar consciência dessas disparidades políticas que já começavam a se apresentar dentro do Ensino Superior. Os estudantes entraram num antagonismo muito forte com os seus próprios professores, os quais, por sua vez, negaram sistematicamente a legitimidade das pautas reivindicativas apresentadas pela greve. Não se furtaram, inclusive, de estabelecer a perseguição política e institucional contra os protagonistas desse movimento grevista. Esta situação gerou rupturas institucionais importantes e o GEAC absorveu essa experiência na forma de uma convicção de que a crítica ou o desenvolvimento de conceitos críticos para pensar a sociedade é indissociável do desenvolvimento, por parte daqueles que pretendem construir a teoria crítica, de uma postura impertinente, de uma postura de tensão e antagonismo dentro dos seus próprios espaços de trabalho e estudo. Não basta radicalizar a crítica teórica se tu não és capaz de radicalizar a práxis política nos teus lugares de vida. Desde então, temos a convicção de que a construção de referentes críticos nas ciências humanas passa pela crítica às instituições concretas onde essas ciências são construídas, professadas, compartilhadas, ensinadas, etc. A ciência social e a teoria social em geral não existem dissociadas do aparelho institucional que proporciona o seu desenvolvimento e o seu ensino. É necessário colocar em questão a hierarquia que atualmente organiza o Ensino e fazer com que essa democratização relativa do acesso à universidade que os governos do PT proporcionaram nos últimos 13/14 anos se expresse também numa democratização das estruturas de tomada de decisão dentro do espaço universitário. Ou seja, é necessária uma democratização real do funcionamento da instituição, não só uma pluralização do acesso. Talvez aí, possamos ler uma das limitações da democratização proposta pelo Partido dos Trabalhadores: ela não necessariamente vem associada ao favorecimento de uma participação política desses novos sujeitos que estão sendo incluídos pelas instituições de ensino superior públicas”.
Antropologia crítica x antropologia disciplinar
“A antropologia crítica significa para nós, por um lado, o compromisso do antropólogo com aqueles coletivos e indivíduos aos quais ele se alia durante a pesquisa. Em poucas palavras, trata-se do acompanhamento de uma política que pode já estar consolidada ou ser emergente. Por outro lado, significa a crítica da antropologia, posto que disciplinas como a sociologia, a ciência política, a história e a antropologia não existem em abstrato. Elas são mantidas, desenvolvidas e atualizadas por — e em — instituições concretas, que têm suas hierarquias, suas estruturações. A situação dos professores nas universidades, onde as disciplinas se reproduzem largamente, é muito significativa: eles organizam a transmissão do saber disciplinar (o que será ensinado e de que forma) e, além disso, detêm o poder de decisão dentro da universidade. Eles são quem, basicamente, controla a burocracia universitária, controlam a tomada de decisões nos conselhos, etc. Nessa hierarquia, os estudantes são sujeitos subalternos, eles têm pouquíssimo poder de incidência na política institucional. Salvo exceções, uma situação parecida ocorre nas escolas. Quando acontecem as ocupações das escolas e das universidades, certas hierarquias são atacadas e o sujeito subalterno, numericamente majoritário, se torna protagonista da organização dos tempos e espaços, ele toma decisões, constrói uma organização nova para o ensino-aprendizagem e a pesquisa”.
“É muito comum, na antropologia, que certos pesquisadores, quando se propõem a opinar sobre algum acontecimento, digam “agora vou oferecer o ponto de vista antropológico” sobre o evento x ou y. Imagino que os sociólogos, por exemplo, também digam algo semelhante. No GEAC nós desenvolvemos alguns conceitos para colocar em questão essa pretensão. Nossa pergunta é: quais são as condições de possibilidade desse ponto de vista? Existe tal ponto de vista em abstrato ou a antropologia, assim como a sociologia ou a história, é, sobretudo, uma disciplina que responde a um processo específico de institucionalização? Quando dizemos “processo de institucionalização”, nos referimos a certas práticas de transmissão do conhecimento, certas dinâmicas de debate, modas intelectuais, inclinações políticas e éticas mais ou menos disseminadas. Todas essas condições incidem no “ponto de vista” disciplinar, seja antropológico ou sociológico. Por que alguém pode se sentir em condições de, em exterioridade a um compromisso político específico, apresentar um ponto de vista sobre ele? Que ponto de vista abstrato é esse? A ideia é sempre tentar “des-abstrair” esses pontos de vista e ver onde eles estão ancorados. Jamais pensar as disciplinas – e as ciências sociais – em abstrato, como uma espécie de consenso que algumas vozes autorizadas irão representar. As disciplinas estão sempre em tensão, em antagonismo. Os pontos de vista não são homogêneos dentro das disciplinas”.
“Em relação à antropologia, quando nos perguntamos sobre as condições de possibilidade da enunciação do conhecimento antropológico, se observarmos a história da disciplina, chama a atenção, muito fortemente, a questão do compromisso com o Estado. Desde as investidas coloniais, a antropologia assumiu a tarefa de mediar o encontro com as populações nativas. Existe na antropologia essa tensão entre o ataque ao Estado ou o compromisso com o Estado. É um eixo que estrutura os debates – contra ou a favor da colaboração com o Estado – e é uma questão não resolvida na disciplina. É um horizonte não superado. O que nós tentamos pensar é como superar esse horizonte. Que tipo de pesquisa pode ser feita pensando a política fora do horizonte (imaginativo e político) do Estado? Por outro lado, outra condição importante é o que o antropólogo haitiano Michel Trouillot chama de o compromisso da antropologia com o “nicho discursivo do selvagem”. O ocidente vai pensar o lugar do Outro “selvagem” como uma espécie de fonte política alternativa (e inesgotável) que vai nos salvar da modernidade ocidental. A antropologia depende dessa crença de que ali, nessas populações não-ocidentais, nós poderemos encontrar uma resposta política para os nossos problemas. Trouillot vai mostrar que essa alteridade radical é uma construção discursiva do Ocidente, da qual a antropologia ainda depende para se legitimar como discurso especializado”.
“Atualmente, quando os antropólogos pretendem colocar à prova sua função pública, eles se apresentam como mediadores entre uma espécie de “sujeito popular” – por exemplo, sujeitos que organizam uma ocupação, pessoas que lutam pela igualdade de gênero, etc. – e o Estado. Então, tudo se passa como se fosse essencial a figura de um intérprete sensível e autorizado da “alteridade”. Esse intérprete da alteridade que é o antropólogo vai fazer uma leitura minuciosa das demandas e dos modos de vida em questão e, a seguir, vai re-apresentá-las aos formuladores de políticas públicas para que eles possam desenvolver suas tarefas com informações mais matizadas, sensíveis e consistentes. Muitos antropólogos tentam justificar a “utilidade social” ou a relevância política da sua disciplina dessa maneira. Essa é uma possibilidade de intervir nos debates públicos, mas nós nos perguntamos se não haveria outra forma de construir relações de pesquisa que não passem necessariamente por produzir um conhecimento que depois “viria eventualmente” a ser útil para que um partido ou um gestor público formule alternativas cabíveis para toda a população. Dito de outra maneira, será que o Estado ou os partidos políticos são o único espaço de síntese daquelas possibilidades que vão valer para todos? Será que para construir um lineamento de transformação da vida coletiva eu preciso passar por todo esse caminho de mediação que culmina no escritório de um gestor público? Não haveria outras formas de disseminar pautas transformadoras, que não passassem por esse compromisso tão pouco questionado com o Estado e com as formas que o Estado nos oferece de construção de pautas para a reorganização da vida social? É uma pergunta que nós nos fazemos: como transformar a pesquisa menos numa atividade de conhecimento do outro e mais num exercício de pensamento compartilhado através do qual as pessoas vão tomando consciência de certas possibilidades e vão estabelecendo seus critérios de reflexão? Ou seja, a pesquisa aparece, para nós, como fabulação, como reflexão coletiva. E não como prática de conhecimento ou como um instrumento que te permite “revelar algo que está encoberto”, como se esse “algo” existisse. A pesquisa é um espaço de pensamento compartilhado onde as pessoas desenvolvem conceitos e categorias para ponderar, num sentido transformador, sobre a sua realidade e, assim, evidenciar potenciais que sequer existiam antes da prática da pesquisa. É interessante encarar a pesquisa como um dispositivo transformador que te permite repensar o teu mundo e as possibilidades de futuro que se colocam para ti e para os teus contemporâneos”.
“Por exemplo, alguns “antropólogos públicos” se propuseram a “etnografar” os rolezinhos ou mesmo os piquetes da greve dos caminhoneiros. A questão é: esses sujeitos precisam ser descritos em termos antropológicos ou sociológicos? Precisamos saber de que geração eles são, a que setor social pertencem, o que querem consumir, o que pensam, etc. como se o que eles desejam ou pensam já estivesse, de certa forma, pronto ou estabelecido? Talvez eles busquem algo que não está definido ainda, como todos nós. Não precisamos, nem devemos, “revelar” seu modo de vida ou “o que são” esses sujeitos. O que nós propomos é entrar numa relação de pensamento com eles: pensar juntos, debater, criar categorias compartilhadas para abordar a realidade e, inclusive, explorar os dilemas do que eles estão propondo politicamente. Mas a intenção é fazer tudo isso através de um engajamento concreto e permanente com as pessoas. Nada de “etnografia a jato”. Isso não faz nenhum sentido, não produz sentidos novos para o mundo, só leva à construção de imagens pobres sobre o que as pessoas supostamente são”.
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