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Mandela e as políticas da representação

Por Michael Neocosmos.

Tradução: Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC). Originalmente publicado no Economic and Political Weekly

De longe, o problema mais profundo é o fetichismo das – e a adesão às – políticas da representação. No marco de tais políticas, certos líderes, especialmente os mais carismáticos, como Mandela, podem não apenas falar pelos subalternos, mas também suprimir sua capacidade de ação. Na prática, as pessoas foram chamadas a “esperar e dar aos seus líderes uma chance de fazer algo”.

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Premesh Lalu está totalmente correto em sublinhar a contribuição de Nelson Mandela à crítica do racismo colonial, do apartheid e, mais amplamente, da noção de tutela colonial. Lalu reivindica estes aspectos do pensamento de Mandela em oposição à evidente monumentalização da sua pessoa no pós-apartheid e sua divinização pela mídia internacional. Contudo, ao mesmo tempo, seu relato me parece unilateral. É unilateral porque o próprio Mandela foi um arquiteto – talvez o principal arquiteto – da sociedade e do Estado sul-africanos pós-apartheid, tanto em seus aspectos subjetivos como objetivos. Lalu parece não querer revelar este fato. A seguinte pergunta deve ser feita em qualquer análise do pós-apartheid: como alguém pode ser um crítico incisivo da tutelagem colonial e, logo em seguida, produzir um estado tutelar pós-colonial mediante o qual os recursos – físicos, sociais e intelectuais – são “entregues” à população como um ato de benevolência estatal, mesmo quando este ato de entrega procure se legitimar através de noções como a de “participação”?

Claro que a transferência da relação de tutelagem do colonialismo para o estado-nação não é uma invenção de Mandela. Trata-se de uma postura típica dos movimentos de libertação nacional, razão pela qual qualquer entendimento do caso sul-africano deve levar em conta esta questão.

O contexto de Mandela

Mandela foi libertado da sua condenação à prisão perpétua em 1990 por um movimento de massa do povo sul-africano. Contudo, em ampla medida, sua libertação da cadeia simbolizou, ao fim e ao cabo, uma mudança subjetiva (que ocorreu alguns anos antes). Passou-se de uma situação em que “o povo atuava na cena da história” (“nós podemos mudar a situação por nós mesmos”) para outra em que seus líderes passariam a estar incumbidos de operar transformações sociais através do acesso ao poder. Esse processo poderia ser resumido, seguindo o trabalho de Alain Badiou (2012), como uma mudança subjetiva que vai das políticas da “apresentação” às políticas de “representação”. Também é digno de nota que a carreira política de Mandela não foi exatamente informada pela política popular. Sua vida política transcorreu fundamentalmente como um quadro clandestino – com todos os atributos elitistas inerentes a tal condição –, organizador de um exército guerrilheiro e preso político afastado da política popular de massas, que se desenvolveu fundamentalmente nos anos 1980. Sua conversão, de líder guerrilheiro a seguidor pacifista de Gandhi e Martin Luther King, ocorreu quando ele estava na prisão e foi amplamente manipulada pela mídia ocidental e por organizações não-governamentais de modo a transformá-lo, por um lado, na encarnação do “prisioneiro de consciência” par excellence e, por outro lado, no símbolo de um povo oprimido clamando por emancipação. Com efeito, o Congresso Nacional Africano no exílio foi, ao longo desse processo, identificando em sua figura uma forma de angariar apoio de doadores estrangeiros que insistiam em fazer apologia da pessoa de Mandela e exigir sua libertação junto com “os outros prisioneiros políticos”. Claro que Mandela rapidamente entendeu seu papel de unificador da nação e adotou para si essa ideia.

Não apenas neoliberalismo

Logo depois da sua libertação, Mandela foi sistematicamente eludindo as tradições políticas populares – construídas com muito esforço ao longo de vários anos de luta – em favor de políticas étnicas na Cidade do Cabo. O protesto popular acabou sendo minado (“não é assim que nós faremos as coisas a partir de agora”) e as lideranças políticas, já desacreditadas, foram inseridas em postos administrativos estatais. Tudo isso foi feito em nome da unidade da nação e do esquecimento do conflito. De fato, como todos sabem, Mandela deu espaço aos brancos e impulsionou um processo de “verdade e reconciliação” ao passo que evitava um conflito maior; entretanto, isso ocorreu à custa do abandono dos ideais populares e através da inclusão do país, em 1996, na “nova ordem mundial” neoliberal e globalizada.

Não se trata exatamente do problema da transição à dominação neoliberal – como a esquerda no país procura afirmar –, mas sim das formas em que esta transição ocorreu. Este processo assentou-se completamente na autoridade pessoal de Mandela, a tal ponto que até seus camaradas mais próximos foram pegos de surpresa. Logicamente, teria sido possível colocar essa decisão em debate a nível nacional, garantindo, assim, a participação popular. No entanto, isso não foi considerado, presumivelmente para não encorajar novos conflitos. Depois de conversar com seus amigos do Vietnã e com outros ex-revolucionários, Mandela decidiu, unilateralmente, que o povo sul africano seria impedido de tomar decisões sobre seu próprio futuro. Desde então, o país vem padecendo os efeitos dessa decisão e os vários protestos que aconteceram a nível nacional podem ser diretamente associados a esse estatismo. O neoliberalismo não constitui, por si só, o problema fundamental, como sugere Lalo. No fim das contas, a “crise de governabilidade” (a rebelião de baixa intensidade, contínua e constante, que a África do Sul vivencia atualmente) não teria sido diferente sob condições sociais mais democráticas? Parcialmente sim, mas não em seus aspectos fundamentais.

Políticas da representação

De longe, o problema mais profundo é o fetichismo das – e a adesão às – políticas da representação. No marco de tais políticas, certos líderes, especialmente os mais carismáticos, como Mandela, podem não apenas falar pelos subalternos, mas também suprimir sua capacidade de ação. Na prática, as pessoas foram chamadas a “esperar e dar aos seus líderes uma chance de fazer algo”.  Podemos retirar pelo menos duas conclusões do que vem sendo dito até aqui.

A primeira delas aplica-se a todas às políticas de libertação nacional enraizadas em movimentos de massa. Ela diz respeito a uma mudança na subjetividade política, que transita de uma situação em que a nação é identificada com o povo – de fato, o povo constitui a si mesmo como nação, nas palavras de Fanon (1990: 125) – a outra situação na qual a nação é identificada com o Estado – “na aurora da independência”. Como esta mudança subjetiva acontece? Quais são as suas condições de possibilidade? A ideia de representação parece central neste contexto. É claro que no cerne das políticas de libertação nacional durante o século XX encontrava-se a ideia de que a emancipação aconteceria por intermédio do Estado. No entanto, em certo momento ficou evidente que o Estado não poderia emancipar ninguém. E as credenciais outrora esgrimidas para a condução de um projeto de desenvolvimento nacional estão, hoje em dia, completamente diluídas (ver de Alwis et al. 2009). É importante observar que as lutas contra o estado colonial adquiriram, frequentemente, aspectos de anti-estatismo (e não simplesmente anti-colonialismo/anti-apartheid). Na África do Sul, estas tendências eram visíveis quando as pessoas organizavam por si mesmas os chamados “comitês de rua” nas favelas. Os assentamentos populares se tornaram “ingovernáveis” na medida em que as próprias pessoas tomaram para si a tarefa de resolver suas preocupações no tocante à moradia, ao transporte e à educação.

A questão aqui não é idealizar tais experimentos, mas apenas sugerir que todas as lutas de massa pela liberação contêm em si elementos de políticas anti-estatais, precisamente porque elas estão engajadas com a política emancipatória ao mesmo tempo em que clamam por um novo estado. Certamente vale a pena discutir esta questão no momento de pensar o “pós-apartheid”.

A segunda conclusão que gostaria de pontuar a respeito das “políticas da representação” é a seguinte: a autoridade de alguém como Mandela estava indiscutivelmente assentada no seu indubitável carisma; um carisma fortalecido por sua política tenaz nacionalista. Contudo, tal carisma não apenas tornou impossível contradizê-lo, mas também levou ao fracasso definitivo da tentativa de produzir a reconciliação e de construir a nação. Por quê? Sem dúvidas porque sua decisão de minimizar o papel do estado e enveredar pelo caminho neoliberal significou a impossibilidade de unificar a nação em torno do desenvolvimento enquanto um projeto estatal. A ausência de um projeto de construção de nação conduzido pelo Estado representou não apenas a falha da reconciliação entre a classe média branca e a nova pequena burguesia negra, mas também – e fundamentalmente – a exclusão da vasta maioria da população pobre (metade do país, segundo todas as estatísticas) do acesso a empregos e recursos como a moradia. Contudo, este fracasso radica diretamente nas políticas da representação, simplificadas pelo fato de que Mandela não apenas representava a nação, mas na verdade a incorporava. Diferentemente de alguns de seus sucessores, que construíram bunkers sob suas residências, não é possível dizer que Mandela “temia as massas” (elas o adoravam e ainda adoram absolutamente). No entanto, as políticas da representação infundiram este medo nos atuais governantes. Isto ficou particularmente claro na repressão brutal de quase todos os protestos populares verificados nos últimos tempos (o mais recente deles ocorreu em Marikana, em agosto de 2012).

Em síntese, uma avaliação crítica do legado de Mandela exige mais do que uma referência à sua luta, ainda no período pré-libertação, contra a tutela liberal. É necessário fazer uma reavaliação crítica detalhada da natureza das políticas da representação e de sua relação com a apresentação popular num contexto pós-colonial.

Referências

Badiou, A (2012): The Rebirth of History: Times of Riots and Uprisings (London: Verso).

de Alwis, M et al (2009): “The Postnational Condition”, Economic & Political Weekly, 44(10).

Fanon, F (1990): The Wretched of the Earth (London:Penguin Books).

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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