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Junho de 2013-PoA. É preciso relembrar para que volte a acontecer.

Por Fiammetta Bonfigli

O ano de 2013 constituiu um momento sem precedentes na história recente do Brasil. Narrá-lo faz parte de uma disputa sobre a redefinição radical do sentido da política e da própria noção de democracia. Em momentos críticos como este período pré-eleitoral, quando as alternativas de transformação social parecem se limitar a horizontes relativamente estreitos (e, em alguns casos, extremamente preocupantes), vale a pena rememorar tudo aquilo que, em 2013, nós sabíamos ser possível.

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Recentemente completaram-se cinco anos desde o ciclo de protestos que foi midiaticamente denominado “Jornadas de Junho”. Meia década depois dos acontecimentos de 2013, continuamos tentando entender o que eles significaram no cenário político brasileiro, quais foram suas causas, o seu impacto, o que aconteceu com esse impulso de rebelião que incendiou as principais cidades do país.

Quando cheguei ao Brasil, no final de 2014, Dilma Rousseff havia começado seu segundo mandato presidencial e as ruas já não estavam em chamas. Vivia-se uma espécie de “ressaca de 2013”. Em Porto Alegre, as pessoas começavam a se perguntar sobre as consequências “daquilo tudo” na redefinição de seu cotidiano, dos seus compromissos coletivos e do próprio cenário político nacional. Estas inquietações me chamavam a atenção porque reverberavam na sensibilidade e nas apostas políticas que eu mesma havia desenvolvido através do engajamento militante com lutas sociais recentes no contexto europeu. De alguma forma, 2013 parecia ser parte da história do meu próprio presente. Mesmo sem tê-lo vivenciado de maneira direta, o presente inaugurado em 2013 parecia se assemelhar com o tempo de transformações aberto em outras partes do mundo e monumentalizado em movimentos como o dos Indignados, na Espanha, o Ocupy Wall Street e os protestos do Gezi Park, ocorridos na Turquia. Recuperar, através da pesquisa social, os relatos de quem integrou os levantamentos populares do mês de Junho significava, para mim, uma oportunidade de complexificar a imagem do meu tempo e, mais do que isso, enriquecer a percepção de seus horizontes emancipatórios.

Perguntas e hipóteses para recordar 2013 juntxs

A pesquisa que desenvolvi por dois anos e que culminou na publicação do livro Jornadas de Junho? Movimentos Sociais e Direito nas ruas de Porto Alegre, escrito em co-autoria com o Prof. Germano Schwartz, foi uma tentativa de entender os protestos de 2013 em Porto Alegre, identificando suas especificidades e características através das vozes de trinta pessoas que participaram das manifestações e que se dispuseram a dialogar comigo. Os diversos itinerários políticos dos meus entrevistados confluíam em pelo menos um ponto em comum: em 2013 todos eles somaram-se ao Bloco de Luta pelo Transporte Público, a agrupação que vinha protagonizando os protestos contra o aumento das passagens de ônibus em Porto Alegre desde o ano anterior.

Tanto o livro como as entrevistas organizaram-se a partir das seguintes indagações: como os entrevistados definiam suas motivações para participar dos protestos? De que maneira as reivindicações relacionadas ao transporte público possibilitaram e dinamizaram o processo de mobilização coletiva? Como os entrevistados enunciavam os sentidos dos protestos de 2013?

A leitura das entrevistas realizadas deu-se à luz de cinco hipóteses principais, que foram sendo tecidas no decorrer do próprio processo de desenvolvimento da pesquisa. Procedo a enumerá-las: 1) os protestos de 2013 estiveram marcados por sua multiplicidade e guardavam relação com a crise da representatividade partidária; 2) a criação e o trabalho do Bloco de Luta pelo Transporte Público seriam peculiaridades de Porto Alegre e configurariam um experimento de horizontalidade e de auto-gestão; 3) As mobilizações de 2013, em Porto Alegre, estariam relacionadas com movimentos e debates anteriores sobre o direito à cidade e sobre a melhoria do transporte público; 4) a ocupação da Câmara de Vereadores foi um momento emblemático e fundamental no contexto dos protestos realizados na cidade de Porto Alegre; 5) A criminalização desta e de outras ações seria um método de reação do sistema social diante das novas características organizativas e operacionais assumidas pelos coletivos de luta política. Nos seguintes tópicos retomarei algumas memórias de Junho em diálogo com o conjunto de hipóteses que acabo de explicitar.

Re-apresentar as lutas

A primeira hipótese associa a “crise de representatividade” à ausência, no contexto dos protestos realizados em Porto Alegre, de uma sólida estrutura vertical, hierarquizada e organizada pelo mundo dos partidos políticos tradicionais. Neste sentido, a primeira pergunta das entrevistas que realizei procurava evidenciar se os/as interlocutores/as faziam parte, em 2013, de algum partido político ou grupo/coletivo minimamente organizado na cidade de Porto Alegre. O quadro delineado revelou que a participação nos protestos respondia a atividades políticas e/ou sociais anteriores, que não se confundiam com a filiação a partidos políticos. Ao mesmo tempo, cabe salientar que alguns partidos de esquerda, bem como organizações vinculadas ao mundo sindical, estavam presentes na composição dos protestos. As correntes libertárias e anarquistas também confluíram nos acontecimentos de junho de 2013, em parte, organizadas pela Federação Anarquista Gaúcha (FAG) e, em parte, agindo de maneira independente. A ONG Acesso, o GAJUP (Grupo de Assessoria Justiça Popular) e o SAJU (Serviço de Assessoria Jurídica Universitária) acompanharam os protestos e ofereceram apoio jurídico aos manifestantes. Outro ponto de destaque é que algumas pessoas que se autodenominavam “independentes” fizeram parte do grupo chamado Frente Autônoma, cujo propósito era evitar que o Bloco de Luta fosse cooptado por partidos ou movimentos “aparelhados”. Alguns dos integrantes da Frente Autônoma possuíam um histórico de compromisso com a questão do direito à cidade e nutriam um posicionamento crítico a respeito da realização da Copa do Mundo de Futebol, sediada em diversas capitais brasileiras no ano de 2014. A caracterização da conflitividade social vivenciada em Porto Alegre nos períodos pré e pós-junho de 2013 deve incluir, necessariamente, o ativismo em favor do direito à cidade. Este, por sua vez, expressou-se fundamentalmente em lutas contra a privatização dos espaços públicos e as remoções de certas comunidades – como a Vila Dique e a Vila Chocolatão – no contexto das obras da Copa do Mundo.

Extremamente transversais e heterogêneas, as composições políticas originadas no contexto de Junho de 2013 também incluíram a participação de alguns partidos políticos – nomeadamente o PSTU, o PSOL e o PT –, a forte presença do componente libertário e anarquista – na sua forma organizada ou individual – e a atuação do movimento quilombola, de sindicatos, de movimentos estudantis e de movimentos de luta contra as transformações urbanas associadas à Copa do Mundo de Futebol de 2014. É interessante mencionar que nenhuma das categorias de participação elencadas anteriormente revelou-se fechada em si mesma. Muitos dos entrevistados transitavam – e transitam – entre os vários âmbitos em questão e participavam, simultaneamente, de diversas formas de ativismo. Esta heterogeneidade se manifestou, também, na formação do Bloco de Luta pelo Transporte Público.

Lutas em bloco

O Bloco de Luta pelo Transporte Público foi uma frente composta por diversas organizações e indivíduos independentes que pautou, centralizou e organizou a ação coletiva em prol de um transporte público popular e de qualidade em Porto Alegre. O debate sobre o valor das passagens de ônibus vinha se desenvolvendo na cidade desde muito antes de 2013. Contudo, o que começou a mudar entre o final de 2012 e o início de 2013 foi a possibilidade de incluir na luta pelo transporte público um conjunto variado de pensamentos e tradições políticas associados às mais diversas tendências da esquerda porto-alegrense. Nesse aspecto, um evento em particular tomava relevo nas lembranças de muitos dos meus entrevistados. Alguns deles presenciaram os fatos diretamente e outros se informaram a respeito através da internet. Refiro-me ao episódio do “Tatu da Copa”.

Em 4 de outubro de 2012, segundo a versão da imprensa, cerca de cem manifestantes atacaram e esvaziaram o boneco inflável do mascote da Copa do Mundo de Futebol, instalado no centro da cidade. O boneco representava um tatu-bola, mais tarde batizado oficialmente com o nome de Fuleco. Os manifestantes, por sua vez, afirmaram que a polícia teria investido brutalmente contra um protesto a princípio não violento, colocando aos sujeitos mobilizados a necessidade de desenvolverem novas formas de auto-organização e intervenção coletiva. É difícil compreender os acontecimentos de 2013 sem se remeter à derrubada do Tatu da Copa e às conclusões estratégicas decorrentes desse evento.

O Bloco de Luta parece ter retomado as necessidades organizativas colocadas no final de 2012, priorizando uma potente articulação política baseada na discussão em assembleias, na organização em comissões, na autogestão, na horizontalidade e na democracia direta (esta última pauta foi enfatizada, principalmente, pelos grupos anarquistas e libertários). A peculiaridade do Bloco residia no fato de ser um “coletivo de coletivos”, com uma “premissa de coletividade e de horizontalidade”.  Essa “horizontalidade” era interpretada pelos meus entrevistados como um “exercício de democracia direta”, especialmente porque se ancorava em formas de gestão informadas por assembleias e comportava a criação de diversas comissões temáticas, mesmo que tais mecanismos não tivessem sido “imunes” aos problemas dos movimentos políticos mais convencionais (projeção de lideranças informais não plebiscitadas, jogos persuasivos paralelos às situações de assembleia, personalismos, etc.). Seja como for, esse exercício de “democracia direta” constituiu-se, fundamentalmente, como uma maneira de contemplar as diferentes linhas políticas dentro do Bloco. No entanto, tal experimento democrático foi, de certa forma, tensionado pela presença mais verticalizada dos partidos políticos, especificamente o PT, que nesse momento encabeçava o Governo Federal (Dilma Rousseff) e o Governo Estadual (Tarso Genro).

Como vimos, a reação desproporcional da polícia contra um ato pacifico e festivo (Tatu da Copa) constituiu um momento fundamental do ciclo de mobilizações verificado cinco anos atrás. A derrubada do Tatu gerou um conjunto de necessidades organizativas que seria retomado pelo Bloco de Luta alguns meses mais tarde, em pleno desencadeamento dos protestos de 2013. De fato, esta composição política precisou lidar com a repressão policial e a criminalização em praticamente todas as suas demonstrações públicas de força. Em específico, vários dos entrevistados recordam uma manifestação diante da Prefeitura de Porto Alegre que redundou em intensa reação das forças de segurança e fez aumentar exponencialmente a participação nos atos posteriores. Nessa ocasião, uma menina foi violentamente arrastada pelos agentes da Guarda Municipal para o interior do prédio da Prefeitura em um ato de detenção arbitrária que gerou repúdio generalizado entre os manifestantes. O uso desmedido da força pela polícia e os discursos midiáticos que condenavam visceralmente a mobilização popular foram indicados como variáveis que incidiram decisivamente no crescimento dos protestos de 2013. A forma escandalosamente tendenciosa com que os meios de comunicação hegemônicos descreveram as ações dos manifestantes e endossaram a repressão policial também teria intensificado o sentimento de indignação coletiva. Tanto a criminalização dos protestos, como os discursos virulentos de quem fez apologia da repressão policial nos grandes meios de imprensa foram apontados como fontes de comoção, solidariedade e raiva que favoreceram a massificação das marchas organizadas a partir de abril de 2013

A repressão da polícia contra a derrubada do Tatu Bola, em outubro de 2012, aliada à criação do Bloco de Luta e aos subsequentes protestos diante da Prefeitura de Porto Alegre em março e abril de 2013, constituíram fatores que deram visibilidade e projeção a diferentes demandas, intensificaram a conflitividade social e incrementaram o número de pessoas marchando nas ruas da cidade. Tudo isso, vale lembrar, ocorreu antes de Junho de 2013. Fica claro, portanto, que Porto Alegre foi a cidade brasileira inauguradora, antes de junho, das “Jornadas de Junho”.

Mais além da representação

Há um momento, no contexto dos protestos de 2013, que ressalta a diferença entre Porto Alegre e o restante das mobilizações verificadas em outras cidades brasileiras: a ocupação da Câmara de Vereadores, durante oito dias, em julho de 2013. A ocupação da Câmara foi o ápice da luta iniciada meses antes. Ali, o Bloco de Luta conseguiu consolidar as próprias pautas por meio de dois projetos de lei concernentes ao transporte público. Tais projetos foram elaborados durante a ocupação e protocolados antes da desocupação.

Com a repressão se intensificando progressivamente no mês de junho de 2013, os manifestantes constataram que, por si sós, os protestos de rua não estavam atingindo o objetivo de ampliar e defender suas próprias pautas políticas. Em plena ofensiva das forças de segurança, também vinha se tornando cada vez mais difícil resguardar a integridade física de quem se somava às mobilizações. Sendo assim, as agrupações que integravam o Bloco de Luta tomaram a decisão de ocupar o parlamento municipal no dia 11 de julho, no contexto de uma jornada nacional de protestos. Os ocupantes permaneceram oito dias no prédio da Câmara. Sua intenção era demonstrar a potência da mobilização e reafirmar que a pauta da tarifa do transporte público urbano era um tema a ser discutido, obrigatoriamente, pelos supostos representantes do povo – os vereadores. A ocupação ocorreu em um dia de expediente normal da Câmara e surpreendeu a grande maioria dos parlamentares presentes naquela ocasião.

Durante a ocupação da Câmara, os militantes do Bloco de Luta colocaram em prática boa parte do repertório organizativo desenvolvido por eles até então: criaram-se comissões especiais para administrar os aspectos logísticos da medida de luta (limpeza, alimentação, segurança, etc.) e organizaram-se instâncias abertas de discussão orientadas à análise da conjuntura, à reflexão sobre as etapas vindouras da mobilização coletiva e à elaboração dos novos projetos de lei que se propunham a transformar radicalmente o sistema de transporte coletivo de Porto Alegre[1]. Os manifestantes também incidiram na esfera pública através de imagens provocadoras e irreverentes. Uma delas foi a famosa foto em que alguns ocupantes, com os rostos cobertos, posaram nus na frente de uma pomposa galeria onde eram exibidos os retratos dos vereadores.

Convém entender como os participantes da ocupação avaliam esta experiência política, em especial no tocante à organização das comissões, aos debates realizados e aos resultados atingidos. A maioria dos meus interlocutores associa a ocupação da Câmara a um “exercício de democracia real” no qual teria sido possível “fazer a auto-gestão funcionar na prática”. Nessa linha de raciocínio, o espaço da ocupação revelou potencial agregador e promoveu debates horizontais. Isto teria proporcionado uma sofisticação dos processos de discussão, que se estendiam por várias horas e permitiam um amadurecimento conjunto das posições assumidas por cada participante. Segundo o relato de vários entrevistados, no debate para a elaboração dos dois projetos populares de lei deu-se uma interessante reflexão coletiva sobre o que significaria o próprio conceito de “transporte público”: tratava-se de estatizá-lo ou de colocá-lo sob um sistema de autogestão dos trabalhadores? Também foi abordada a questão da transparência das contas das empresas envolvidas com o transporte de passageiros. Daí se originou o primeiro projeto de lei. O segundo projeto, por sua vez, estabelecia o passe livre no transporte coletivo urbano municipal para alguns segmentos da população: estudantes, quilombolas, indígenas, idosos e desempregados.

Neste contexto, os juristas que acompanharam os protestos, particularmente a ocupação da Câmara de Vereadores, tiveram um papel fundamental: eles ajudaram a proteger a medida de luta por meio do indeferimento da reintegração de posse, respaldando, deste modo, uma “outra forma de fazer política”. Também auxiliaram intensamente no processo de tradução das pautas políticas da ocupação no texto dos dois projetos populares de lei mencionados anteriormente. Ao mesmo tempo, o direito tornou-se ferramenta fundamental para proteger os manifestantes de 2013 contra os abusos e a criminalização que sofreram durante e depois dos meses de protestos. A propósito, alguns fatos mais recentes indicam que a perseguição iniciada cinco anos atrás continua repercutindo na atualidade. Basta mencionar a condenação de 23 manifestantes no Rio de Janeiro à pena de prisão em regime fechado por 5 ou 7 anos em decorrência de supostos crimes de formação de quadrilha, dano qualificado, lesão corporal e corrupção de menores. A esta condenação aberrante, soma-se a prisão de Rafael Braga e o processo movido contra 6 ativistas do Bloco de Luta de Porto Alegre.

Repressão que foi e será

O uso da violência pela polícia não é uma novidade no cenário brasileiro. O fato, contudo, é que a repressão desencadeada contra os protestos de 2013 assumiu características diversas daquelas cotidianamente verificadas no Brasil. Que características seriam estas? Poderíamos elencá-las, resumidamente, da seguinte forma: a) uma atuação policial que é desempenhada rotineiramente contra as populações periféricas passou a ser praticada, naquele momento, contra estudantes, geralmente de classe média, universitários e brancos; b) além do uso da violência física nos protestos, ocorreu uma responsabilização judicial das pessoas que supostamente desenvolviam funções de “liderança”. Foram praticadas invasões de casas particulares e de sedes de organizações políticas, as quais incluíram a apreensão de livros e panfletos. Diante dessa escalada repressiva, o Bloco impulsionou a criação de um “GT Jurídico” para assessorar os manifestantes que fossem eventualmente detidos. Este GT também funcionou como centro de denúncias das violações perpetradas pela polícia contra os direitos fundamentais dos ativistas.

A criminalização dos protestos de 2013 desenvolveu-se de várias formas: houve repressão policial durante os atos; multiplicaram-se detenções e imputações arbitrárias; proliferaram discursos midiáticos tendentes a demonizar a participação nas marchas; domicílios e sedes de organizações políticas foram invadidos pela polícia. Se bem a grande maioria dos meus entrevistados mostrou-se assombrada com a intensidade da repressão policial e judiciária, alguns deles também procuraram destacar a ausência de uma “cultura de segurança” no interior dos movimentos. Esta situação teria implicado uma excessiva visibilidade de certos militantes, facilitando a ativação de estratégias criminalizadoras por parte das forças repressivas. Por último, cabe destacar que os protestos de 2013 também demonstraram que a criminalização dos movimentos sociais se dá por meio de ferramentas legislativas e tecnológicas cada vez mais eficientes. É possível que esta tendência se acentue no futuro.

Prolongamentos de Junho

A ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre pode ser considerada um dos marcos dos protestos daquele ano na cidade. A afirmação da democracia direta e da capacidade deliberativa e auto-gestionária de sujeitos políticos extra-partidários em um espaço tradicionalmente associado às práticas mais convencionais da democracia representativa confere à Porto Alegre de 2013 características parecidas com as das grandes ocupações dos espaços públicos na Espanha (2011), na Turquia (2013) e nos EUA (2013).

É importante reiterar, no entanto, que os movimentos presentes nas ruas brasileiras em 2013 podem – e devem – ser lidos também a partir de uma perspectiva latino-americana. Nesse sentido, os protestos de 2001 e 2002 na Argentina, o movimento estudantil do Chile e a complexa crise do modelo progressista e (neo)desenvolvimentista dos governos Lula e Dilma no Brasil podem constituir chaves de leitura pertinentes para compreendermos as condições de possibilidade dos levantamentos populares de 2013. Os protestos daquele ano não necessariamente se enquadraram em pautas identitárias (estudantil, trabalhista, indígena, feminista, etc.) e foram comparáveis a outros ciclos de luta observados na região latino-americana na medida em que ostentaram uma notável transversalidade, articulando num espaço político compartilhado reivindicações sociais históricas e sentimentos mais recentes de indignação que pulsavam em diversos âmbitos da sociedade brasileira.

Antes de concluir cada uma das entrevistas realizadas durante a pesquisa, eu costumava pedir aos interlocutores que esquematizassem os aspectos positivos e negativos identificados por eles no ciclo de protestos ocorrido em 2013. Desta forma, eu pretendia obter elementos que permitissem tanto a construção de uma avaliação crítica dos protestos como a formulação de um relato coletivo potencialmente útil para compreendermos os cenários que foram se delineando nos anos posteriores a 2013. De acordo com meus interlocutores, um dos aspectos mais valiosos dos protestos de 2013 reside na possibilidade de que as novas gerações também tomem para si o propósito de “fazer política nas ruas”. A ênfase na autogestão, no assembleísmo e no apartidarismo foi apontada como uma herança que, mais tarde, veio a ser atualizada nas ocupações das escolas públicas da cidade de Porto Alegre. De outro lado, quando se mencionavam os aspectos negativos dos protestos de 2013, é interessante notar como essa mesma desconstrução das vias institucionais e dos canais tradicionais de participação política, aliada à negação das ideologias partidárias, era vista por alguns entrevistados como um dos elementos utilizados “pela direita” para introduzir nos protestos certas pautas – como o combate à corrupção – que, mais tarde, justificariam uma ampla mobilização social de perfil conservador que contribuiu para a consumação do impeachment de Dilma Rousseff.

Seja como for, mesmo depois das mudanças vertiginosas que o cenário político brasileiro atravessou nos últimos anos, os protestos de 2013 tendem a ser interpretados por seus protagonistas de maneira basicamente positiva, como um momento de aprendizagem coletiva no qual os canais da representatividade política tradicional foram questionados em meio à prática da autogestão, da autonomia, da horizontalidade e da auto-defesa.

As ocupações das escolas e das universidades exemplificariam a influência duradoura das ideias e das práticas cultivadas nos protestos de 2013. Ideias e práticas que transcenderam a questão do transporte urbano. Por outro lado, a falta de uma organização mais tradicional, a pulverização das pautas, a repressão policial e a criminalização sofrida pelos integrantes dos movimentos sociais teriam se tornado elementos determinantes para o enfraquecimento da “esquerda”. A debilitação da esquerda nas ruas permitiu que grupos de interesse conservadores também se apropriassem do relato de 2013 e o utilizassem, mais tarde, para questionar a legitimidade do governo de Dilma Rousseff. Alguns dos setores mais conservadores da sociedade brasileira se propuseram a evocar 2013 como uma espécie de precedente para os atos “anti-corrupção” do ano de 2016, que foram amplamente instrumentalizados para legitimar o impedimento da presidenta da República.

Poderíamos dizer, então, citando um texto de Alexandre Mendes, publicado na página UniNômade Brasil, que 2013 é hoje a “insistência de uma percepção”:

Bastou que os levantes se renovassem a partir de condições reais da própria existência – a emergência da luta dos caminhoneiros por todo o Brasil – para mostrar, mais uma vez, como os modos de governar a nossa vida se tornaram obsoletos e incompatíveis com o espaço-tempo já aberto desde Junho de 2013 (e não só a relação com o sistema político, mas também com a cidade, o transporte, o ar que respiramos, a nossa alimentação etc.). Na dinâmica viva do acontecimento, também os novos dualismos que tentaram reorganizar o pós-Junho passaram a soar já antigos e até irrelevantes (a retroalimentação cultural dos grupos de direita e de esquerda, o falso jogo entre oposição e situação no sistema político, a divisão entre golpistas e golpeados – todos incapazes de fazer frente à fratura provocada pelos novos levantes). É, portanto, o esforço em afirmar uma nova percepção já conquistada (aquilo que já vimos e não queremos deixar de ver) que marca a insistência do agenciamento político instável, flutuante e sem coordenadas prévias que emergiu em Junho de 2013.

Infelizmente, nestes últimos anos, o debate e o conflito voltaram a ser apropriados pela direita e pela esquerda institucionais. No entanto, e apesar de tudo, fica claro que o ano de 2013 constituiu um momento sem precedentes na história brasileira e que a construção de narrativas a respeito faz parte de uma disputa na qual parece estar em jogo a redefinição radical do sentido da política e da própria noção de democracia. Em momentos críticos como este período pré-eleitoral, quando as alternativas de transformação social parecem se limitar a horizontes relativamente estreitos (e, em alguns casos, extremamente preocupantes), vale a pena rememorar tudo aquilo que foi apresentado como possível em 2013. As formas de luta e as táticas organizativas utilizadas pelos movimentos sociais de Porto Alegre meia década atrás merecem ser estudadas com atenção por quem deseja participar de maneira afirmativa na construção de agenciamentos coletivos potentes, capazes de atualizar com eficácia uma lógica da emancipação renovada e amplamente significativa.

Nota

[1] Os textos dos projetos populares de lei podem ser lidos ao final de artigo de Alex Moraes sobre a ocupação da Câmara de Vereadores.

Bibliografia que inspira, de algum modo, as reflexões tecidas nesta postagem:

BONFIGLI, Fiammetta; SCHWARTZ, Germano. Jornadas de Junho? Movimentos Sociais e Direito nas Ruas de Porto Alegre. Canoas: Editora Unilasalle, 2017.

FACHIN, Patricia; MACHADO, Ricardo. O levante de Junho 2013 atacou o “hard-power” brasileiro. Entrevista Especial com Giuseppe Cocco. Revista IHU Online, 2017.

KJAER, Poul F.; TEUBNER, Gunther; FEBBRAJO, Alberto (Ed.). The financial crisis in constitutional perspective: The dark side of functional differentiation. Hart: Oxford, 2008.

KNEBEL, Norberto Milton Paiva; COSTA, Renata Almeida da. Gentrificação e Criminalidade Urbana: Uma abordagem a partir da sociologia urbana e da crimonologia crítica. Em: URIARTE, Carlos; FARIA, Josiane Petry. XXV Congresso do CONPEDI: Crimonologias e Política Criminal I. Florianópolis: Conpedi, 2016.

MENDES, Alexandre F. Junho 2013: a insistência de uma percepção. Uninômade Brasil. 2018.

SCHWARTZ, Germano; COSTA, Renata Almeida da; FLECK, Alexandre Soares Brandão. ow does Football Influence the Political System and Juridify Social Movements? Brazil, June 2013. Oñati Socio-Legal Series, v. 6n.3, p.857-876, 2014.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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