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A 44ª edição dos Cadernos IHU publicados pelo Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos traz uma série de intervenções em torno da temática “Pensamento descolonial e práticas acadêmicas dissidentes”, compiladas pelo Grupo de Estudos em Antropologia Crítica. Este é um dos primeiros resultados das “cartografias dissidentes” que o GEAC vem empreendendo desde o início do ano de 2013. Baixar publicação na íntegra em PDF.
Abaixo, seguem o sumário e texto de apresentação desta última edição dos Cadernos.
— Castellano —
La edición nº 44 de los Cuadernos IHU, publicados por el Instituto Humanitas de la Universidad del Valle del Río de los Sinos presenta una breve compilación de intervenciones en torno a la temática “Pensamiento Decolonial y Prácticas Académicas Disidentes”. Este número de los Cuadernos fue organizado por el Grupo de Estudios en Antropología Crítica (GEAC) y consiste en uno de los primeros resultados de las “cartografías de la disidencia académico-epistmémica”, que el GEAC viene emprendiendo desde inicios de 2013. Las cinco intervenciones reunidas en la revista tienen el objetivo de acercar a un público amplio ciertos elementos de la crítica decolonial y visibilizar prácticas intelectuales que se desarrollan más allá de los estándares de la universidad corporativa, proyectándose hacia la práxis humana concreta. Descargar la revista en PDF.
Abajo disponibilizamos el índice y el textos de presentación del nº 44 de los Cuadernos IHU.
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SUMÁRIO
Apresentação
Alex Martins Moraes e Caio Fernando Flores Coelho
Pensamentos críticos desde e para a América Latina
Carolina Castañeda
Do mal-estar acadêmico: uma conversa sobre colonialidade e resistências
Dayana Uchaki de Matos, Juliana Mesomo, Luiza Dias Flores, Rita Becker Lewkowicz
Ciência rebelde e desobediência epistêmica: um breve “encontro” com Orlando Fals Borda
Alex Martins Moraes
Educação, eurocentrismo e contra-epidermalização
Orson Soares, Rodrigo dos Santos Melo, Walter Günther Rodrigues Lippold
APRESENTAÇÃO
Os textos que compõem esta edição dos Cadernos IHU são janelas abertas a uma cartografia da dissidência. Dissidência, aqui, não diz respeito a polarizações absolutas entre “dentro” e “fora”, entre lugares e premissas incomunicáveis. Pelo contrário, com esta noção pretendemos enfatizar os constantes movimentos políticos, teóricos e organizacionais que vão realçando, em cada momento, os contornos e os anteparos que sustentam determinadas ortodoxias, ao passo que conformam, também, heterodoxias e indisciplinas. Falar de dissidências, portando, é conceber as ciências e as disciplinas acadêmicas como composições instáveis, intranscendentes, nunca resguardadas da possibilidade de dissolução ou de redefinição. Práticas intelectuais dissidentes são movimentos políticos e epistemológicos que tencionam os consensos midiatizados por certas estruturas disciplinares, prefigurando a possibilidade (e a necessidade) de redefini-las radicalmente.
Quando, a partir do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC), nos propusemos a compilar textos que nos falassem da perspectiva descolonial e evidenciassem práticas intelectuais dissidentes, pretendíamos estender aos leitores dos Cadernos IHU um convite não apenas para familiarizar-se com categorias emergentes de análise crítica, mas também para tomar contato com ativismos descolonizantes. As intervenções aqui reunidas são a expressão de projetos políticos em rede que englobam o GEAC e outros coletivos e se atualizam permanentemente através de vários espaços sociais, diluindo divisões estéreis como aquela que pretende opor “a academia” e o “mundo real”. A academia não só é constitutiva das nossas realidades políticas como também depende de uma série de dinâmicas sociais tão difundidas quanto questionáveis para existir tal como a conhecemos.
A universidade, com suas estruturas de promoção das práticas cognitivas legítimas, só adquire real potência social quando se encadeia com outros atores da sociedade civil e política, conformando “consórcios” de interesses múltiplos e mutuamente reforçados. Consórcios no marco dos quais se produzem muitos dos “problemas de nosso tempo” – assim como as eventuais soluções para eles. Articulações desta ordem adquirem formas variadas e impulsionam diferentes estratégias de poder, entre as quais poderíamos citar três: 1) as redes desenvolvimentistas, cuja força persuasiva se nutre dos saberes especializados construídos no “meio acadêmico”; 2) as conexões entre laboratórios de universidades públicas e empresas privadas ou órgãos de controle e vigilância do Estado, quase sempre catalisadas pelo discurso mercadológico da “inovação” ou pelos imperativos da “segurança social” ; 3) os projetos de intervenção no ensino superior, frequentemente amparados em saberes socioantropológicos e pedagógicos a respeito de “raça”, “mestiçagem”, “democracia racial”, “direitos sociais”, “estruturas de desigualdade”, índices de rendimento escolar.
Diante de articulações como as exemplificadas no parágrafo anterior, é importante construir conhecimentos responsáveis, associados a compromissos claros e, por conseguinte, avessos à tendência de “lavar as mãos” no que diz respeito aos usos e consequências dos enunciados que produzimos. A aplicação desses critérios éticos depende da reflexão permanente sobre nossa posicionalidade, ou seja, sobre os lugares que ocupamos num dado lugar e momento e sobre quais lugares não gostaríamos de ocupar. Os efeitos práticos da indagação sobre o “lugar do saber” oferecem outras bases para o desenvolvimento e a enunciação dos resultados das nossas práticas intelectuais e investigativas, sinalizando o advento de uma “ciência sucessora” (Haraway, 1995), ou de uma “ecologia de saberes” (Santos, 2010), ou ainda da “pluriversalidade”, como propõem diversos autores descoloniais (ver, por exemplo, Mignolo, 2010).
As práticas dissidentes e descoloniais que originaram as quatro intervenções aqui reunidas não respondem apenas ao imperativo de falar as coisas de outra forma e com outros interlocutores. Entendemos que o desejo de promover e realizar alternativas políticas e epistêmicas não passará de puro esteticismo caso se furte de mapear atentamente as manifestações contemporâneas e localizadas do saber acadêmico, discernindo por que meios elas conseguem preservar uma suposta exterioridade de perspectiva a partir da qual narrar o mundo, “descrever os fenômenos”, “desvendar os enigmas”. Outros mundos só serão possíveis se conseguirmos criar as condições para sua irrupção em meio a disputas concretas em torno das condições de produção do conhecimento atualmente vigentes.
Os textos publicados nesta 44ª edição dos Cadernos IHU consistem em exercícios de escrita individual e coletiva realizados pelos membros do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (em suas sessões de Porto Alegre e Buenos Aires) e do Coletivo Fanon (organizado há vários anos entre a universidade, os bairros populares e os movimentos negros). Ambos os grupos estão interessados em problematizar as atuais condições de produção do conhecimento, de modo a potencializar vetores de transformação em toda a aparelhagem universitária e, é claro, mais além dela. As condições de produção do conhecimento acadêmico determinam a possibilidade de emergência e transcendência dos trabalhados levados a cabo sob seu espectro. Isto é possível através de tecnologias institucionais destinadas à manutenção de certos regimes de produção que se materializam sob a forma de estruturas de diálogo, hábitos de leitura e sistemas de escrutínio e avaliação dos conhecimentos produzidos. As condições de realização do trabalho intelectual orquestradas por diferentes hegemonias institucionais promovem ativamente determinados tipos de “produtos” e ao passo dificultam a viabilidade – ou diretamente suprimem – outros tipos.
Era Walter Benjamin, em “O autor como produtor” (2006), quem sustentava que o intelectual é um produtor no âmbito de produção cultural em que se desempenha. A produção cultural, enquanto prática de produção material é necessariamente politizante e está dinamizada pela conflitividade, pelas contradições e desigualdades do meio onde emerge. Se a cultura não é algo abstrato, mas sim um arranjo transitório de técnicas, ferramentas e dispositivos orientados à relação hermenêutica entre os sujeitos, então todos os campos da arte e da literatura, assim como as ciências sociais e humanas, também o são. Antropologia, Sociologia, História, Ciência Política, Pedagogia, etc. costumam escrever-se no singular e com inicial maiúscula. No entanto, se levarmos em conta o sugerido até aqui, devemos realizar o exercício de concebê-las no plural e em concreto, como já propuseram Eduardo Restrepo e Arturo Escobar (2004) a propósito da antropologia. No plural porque, independente das hegemonias instauradas em muitas escalas, subsiste uma proliferação de práticas acadêmicas dissimiles e hierarquizadas. Em concreto porque estas práticas desdobram-se na esteira de estruturas institucionais localizadas, na maioria dos casos, estruturas universitárias.
Para constituir-se como sujeito político autorizado, o/a acadêmico/a precisa constituir-se – e é efetivamente constituído – enquanto subjetividade em determinado campo disciplinar. Esta, logicamente, não é sua única forma de subjetivação. Como qualquer ser humano, também o/a acadêmico/a se subjetiva em uma multiplicidade de outros espaços sociais. A ideia aqui, contudo, é focalizar na produção de subjetividades disciplinares – antropólogos/as; historiadores/as; sociólogos/as – nas suas consequências práticas. Ao desenvolver investigações, emitir relatórios, frequentar eventos científicos, escrever artigos, produzir imagens, enunciar discursos políticos numa reunião departamental, no conselho de alunos e professores, etc., os/as acadêmicos/as incorporam e colocam em ato suas disciplinas. Por esta mesma via eles também estão habilitados a colocá-las em xeque, disputando seus efeitos e funções. Os/as acadêmicos/as podem, portanto, atuar no registro da reprodução, abastecendo o aparelho disciplinar herdado, ou podem bloquear a atualização de certas dinâmicas produtivas, exercendo uma reflexão crítica não apenas sobre as matrizes teóricas, formas de escrita e procedimentos de pesquisa em voga, mas também a respeito das ferramentas político-institucionais disponíveis à ação transformadora.
Quais seriam os critérios orientadores dessa transformação? Em primeiro lugar, poderíamos dizer, novamente com Benjamin, que a possibilidade de disjunção das cadeias de reprodução da maquinaria disciplinar tem mais a ver com uma forma de agir do que com um conteúdo ou uma tendência determinada de antemão. Para ser mais específico, não bastam cartas de intenção política ou categorias refinadas de análise crítica se, nos atos, permanecemos contemplativos. Reconhecer-se como produtor num contexto institucionalizado, hierárquico e elitizado, assumir os antagonismos abrangentes que entranham qualquer instituição, duvidar dos consensos, perguntar-se pelo que está suprimido em cada ato performativo da disciplina (desde o programa de uma cadeira na universidade até a erimônia de abertura de um congresso), abandonar a “ideologia da harmonia” – assim a chama o antropólogo anarquista estadunidense David Graeber – e adotar o ponto de vista da contradição e/ou da diferença parecem ser algumas das vias para a crítica radical. Mas por que levar a cabo essa crítica? Se não estamos satisfeitos com o academicismo e a universidade corporativa, não bastaria procurar outros lugares de ação mais “realizadores”? No final das contas, vale a pena disputar as disciplinas e seus espaços institucionais de atualização?
Certamente vale a pena. Certas matrizes disciplinares hegemônicas tendem a suprimir ativamente, como já foi dito, outras práticas de produção intelectual; elas impõem seu universalismo abstrato ao pluralismo real dos discursos e das práxis intelectuais vigentes em lugares e tempos determinados. Não raro, certos cientistas sociais se veem no direito de falar sobre o “outro” em detrimento da sua capacidade de enunciar-se a si mesmo. E o pior de tudo: são ouvidos/as como voz prioritária em instâncias intervencionistas do Estado e mesmo do setor privado. Além disso, as instituições encarregadas de produzir ciências humanas e sociais manejam orçamentos que, sem serem os mais robustos do sistema universitário brasileiro, não podem, ainda assim, considerar-se insignificantes. Trata-se de orçamentos constituídos com dinheiro público extraído, diga-se de passagem, mediante a cobrança de impostos majoritariamente regressivos a populações empobrecidas. Estes recursos têm sido aplicados, requentemente, no estímulo de um produtivismo acadêmico cujo efeito mais aterrador é o progressivo afastamento de estudantes e professores da problematização dos dilemas reais suscitados pela vida democrática em nosso país. Os problemas de investigação acabam sendo inventados nos corredores da academia – ou importados dos debates prestigiosos e “de ponta” no norte global – para serem “resolvidos” no “lado de fora empírico” e logo convertidos em digressões que atendem apenas à agenda editorial vigente no mercado das publicações acadêmicas. Os textos das páginas subsequentes percorrem cenários, fontes e ferramentas de uma crítica possível e vigente a esses processos; uma crítica que está sendo levada a cabo a partir de diferentes articulações coletivas que, confluem, aqui, num diálogo em comum.
Em “Pensamentos críticos desde e para a América Latina”, Carolina Casteñeda (Grupo de Estudos em Antropologia Crítica – GEAC) oferece um amplo panorama do programa modernidade-colonialidade, ao mesmo tempo em que procura responder à pergunta sobre a possibilidade de um ensamento latino-americano. A partir do texto coletivo “Do mal-estar acadêmico: uma conversa sobre colonialidade e resistências” Dayana Uchaki, Juliana Mesomo, Luiza Florez e Rita Lewkowicz (todas integrantes do GEAC Porto Alegre) refletem sobre certos mecanismos de reprodução da colonialidade na universidade pública atentando para as dinâmicas que questionam a exclusão e reorganizam a própria ideia de universidade. Em “Ciência rebelde e desobediência epistêmica: um breve encontro com Orlando Fals Borda”, Alex Moraes (GEAC) parte de alguns elementos críticos formulados pelo debate descolonial para interpelar as propostas político-teóricas daquele que foi o idealizador da Pesquisa Ação Participativa. Na segunda parte de sua intervenção, o autor compartilha com o leitor brasileiro uma tradução inédita do texto “Romper o monopólio do conhecimento”, escrito por Fals Borda e Mohammed Anisur Rahman no final dos anos 80. Por fim, Walter Günther Rodrigues Lippold, Orson Soares e Rodrigo dos Santos Melo repassam a trajetória do Coletivo Fanon para, a partir de suas experiências de debate, pesquisa e intervenção, discorrerem a respeito das inter-relações entre sistema educativo e eurocentrismo no Brasil.
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