Uma alternativa para escapar desse não-lugar que é “a” Antropologia seria, justamente, instalar-se no horizonte político da dissidência e a partir dali tecer novas alianças e lealdades que reorganizassem nossas coordenadas para a produção de conhecimento. Neste sentido, a dissidência é tudo aquilo que converte a academia no campo [de batalha] que ela nunca deixou realmente de ser.
* * *
Alex Martins Moraes
Provavelmente todo o texto mereça uma introdução. Esta intervenção está em diálogo com o Adieu a la antropología, que Tomás Guzmán publicou no blog do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica faz algumas semanas. Nas palavras finais de sua reflexão, Tomás propôs a reabertura do debate sobre “antropologias dissidentes”. Em 2013 este mesmo debate havia impulsionado as últimas reuniões presenciais GEAC, tanto em Porto Alegre como em Buenos Aires. Para me inserir no movimento de reabertura do debate sugerido pelo Tomás acho necessário, antes de qualquer coisa, introduzir meu ponto de vista a respeito dos problemas levantados por ele em Adieu a la Antropología. Tudo o que direi a partir de agora não é outra coisa senão um esforço co[e]laborativo que deseja reabrir um horizonte marginal de imaginação compartilhada. Trata-se, em síntese, de empreender uma merecida introdução no texto iniciado pelo Tomás.
Onde sobrevive a “cultura”
O conceito de cultura nunca morre. Por mais que o conteúdo potencialmente reacionário desta categoria teórica tenha sido evidenciado até o cansaço nos últimos trinta anos, sempre aparece alguém decidido a salvá-la. Um bom exemplo desse tipo de rompante restaurador pode ser encontrado num texto tardio em que Sahlins nos conta duas ou três coisas que sabe sobre o conceito de cultura. É sempre um pouco deprimente ler o texto de Sahlins porque, no final das contas, depois de demonstrar alguma familiaridade com categorias caras aos enfoques pós-coloniais e pós-modernos dos anos oitenta e noventa – poder, globalização, hibridez, etc. – o autor tenta recuperar sua puída ideia de cultura com tautologias do tipo: “Aún impuestas, las prácticas y relaciones externas son necesariamente traídas a una asociación determinante de valores con categorías nativas”. O pensamento de Sahlins funciona como um processador de dados culturalista que imbeciliza toda a crítica, como se esta não passasse de um conjunto de asserções óbvias incapazes de macular a essência da noção de cultura: “sin un orden cultural – afirma Sahlins categoricamente – no existe ni historia ni acción”.
Não vem ao caso discutir a fiabilidade e a aplicação do culturalismo de Sahlins, até porque isso já foi feito de forma mais ou menos contundente em diferentes ocasiões e a partir de diversos pontos de vista (ver, por exemplo: aqui, aqui, aqui e aqui [a partir da página 233]. Para quem tem acesso aos bancos de texto pagos, sugiro: Marshall Sahlins and the Apotheosis of Culture, artigo de Victor Li). Minha intenção agora é sublinhar o estilo de argumentação utilizado pelo autor. Um estilo baseado na redundância canônica dos próprios referencias teóricos que não dá nunca lugar a uma reflexão cuidadosa sobre os conceitos que pretende refutar. Numa passagem ilustrativa desta tendência, Sahlins chega assimilar a noção foucaultiana de discurso ao determinismo cultural de White, para quem os indivíduos são uma espécie de ferramenta teleguiada por sua própria cultura (sobre a dificuldade de Sahlins em compreender Foucault). Asseverações desta ordem indicam que Sahlins não estava disposto a revisar seriamente as novas categorias de análise que desejava combater. Seu objetivo era manter intacto o púlpito conceitual que lhe permitia professar sua própria legitimidade acadêmica.Hoje em dia, com a relativa pluralização dos paradigmas em voga no sistema-mundo da antropologia, poucos teóricos se arriscariam a vociferar em público com mesmo desleixo e a mesma arrogância que caracterizaram a tardia apologia sahliniana do conceito de cultura. No entanto, se dito conceito foi sendo provincializado por uma antropologia que tende a se afastar progressivamente do paradigma da linguagem, ele ainda ocupa o centro das narrativas institucionais que os praticantes da antropologia disciplinar elaboram a respeito de suas próprias “comunidades acadêmicas”. Em poucas palavras: o senso comum disciplinar ainda imagina “a” Antropologia (no singular e com inicial maiúscula) como uma espécie de cultura. E este mesmo senso comum está disposto, como observou Tomás em seu texto, a punir quaisquer tentativas de experimentar a prática antropológica num registro político-ideológico alternativo.
A mesma “cultura” que no início do século XX contribuiu para evitar uma sistemática problematização do racismo na sociedade estadunidense serve, agora, para bloquear a radicalização do debate sobre poder e dissidência nas academias antropológicas mais conservadoras. Uma arrogância argumentativa a la Sahlins sobrevive intacta nos postos de fronteira que resguardam os territórios institucionais onde a antropologia se reproduz como disciplina acadêmica (como “cultura”). Nas palavras de Tomás, o senso comum das antropologias institucionalizadas tende a apresentá-las como “espécies de tribos nômades” unidas por uma cultura semelhante que garante certo entendimento mútuo. À força de muita repetição e controle, este tipo de narrativa acaba obstruindo outras formas de refletir sobre as condições de funcionamento do establishment antropológico em cada país, região ou universidade. Além disso, a narrativa hegemônica que nos fala de uma comunidade antropológica culturalizada e diferenciada a priori dos outros domínios da vida social referenda a mutilação da experiência de mundo dos próprios antropólogos. Isto porque, ao cruzarem a fronteira disciplinar, espera-se que eles estejam dispostos a viver em harmonia com seus pares e a se distanciarem serenamente das lealdades coletivas e dos conflitos sociais que os mobilizam no “lado de fora” empírico das instituições de ensino e pesquisa. Se o establishment antropológico fosse – como ele gostaria de ser – um lugar delimitado por fronteira claras, provavelmente sua porta de entrada estamparia alguma frase do tipo “entre nós communitas e cultura, lá fora o que vocês bem entenderem”.
“Cuando despertó el dinosaurio todavía estaba allí” – breve parêntese sobre a transgressão
(Certos antropólogos radicais dirão que não se deixam domesticar por essas regras absurdas do establishment antropológico. Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo, está convencido de que contrabandeia para dentro das fronteiras disciplinares os conceitos de uma outra antropologia – a ameríndia – que serviria para contra-analisar a própria antropologia ocidentalizada. Quando viaja a Cambridge, Viveiros de Castro gosta de dizer que “now is the turn of the native”. O problema é que se “agora é a vez do nativo”, isto só ocorre graças ao decreto de um antropólogo. Quem distribui os “turnos” ao seu bel prazer é Viveiros de Castro. Dizer a verdade sobre o outro, como faz a antropologia tradicional, ou recrutar o outro para dizer sua verdade ontológica à Antropologia, como propõe Viveiros, são dois procedimentos que, apesar de serem muito diferentes, desdobram-se no mesmo lado da fronteira disciplinar e não chegam nem perto de subvertê-la. Juliana Mesomo e eu já tecemos aqui alguns comentários a esse respeito. Por ora basta dizer que a transgressão perspectivista não desafia a arrogância de uma disciplina cuja legitimidade política está em grande medida assentada no exercício discursivo de produzir a figura oca e desencarnada chamada “nativo” para logo preenchê-la com algum tipo de representação acadêmica autorizada. Enquanto persistirem essas práticas de enunciação, qualquer subversão epistemológica soará incompleta).
Efeitos de fronteira
Por que a fronteira disciplinar incomoda tanto? Em seu texto, Tomás respondeu claramente a pergunta. O que incomoda é que a fronteira circunscreve uma interioridade desmarcada e pacificada a partir da qual alguns se autorizam a falar legitimamente sobre os “outros” em sua ausência. Se o próprio antropólogo também for um “outro”, sua legitimidade acadêmica estará condicionada a que ele assuma-se abertamente como “nativo” e se esforce por discernir nos enunciados que produz aquilo que corresponde a eventuais desvios ideológicos daquilo que diz respeito à melhor tradição antropológica. Feito este discernimento, o antropólogo nativo deverá então proceder a reorganização da sua perspectiva com base nos critérios de plausibilidade e legibilidade promovidos pela antropologia disciplinar. Grosso modo são estes os imperativos em voga nos corredores da academia. E se é verdade que sempre iremos transgredi-los, também é certo que a polícia fronteiriça zelará pelo seu cumprimento sempre que tiver a oportunidade de fazê-lo.
Vale esclarecer que a função de polícia não se limita aos lugares de mando fixados por cada instituição universitária ou de pesquisa. Professores, diretores, decanos, conselheiros, etc. não são a polícia por excelência. A função de polícia pode ser agenciada por qualquer pessoa ou grupo de acordo com seus interesses particulares no marco de determinados processos políticos. A eficácia dessa função depende do que David Graeber denomina “ideologia da harmonia” – uma espécie de consenso institucional mínimo sobre a existência de interesses e perspectivas compartilhados que uniriam todos os antropólogos apesar de suas eventuais diferenças.
Como a função de polícia é polivalente e pode adquirir uma eficácia inimaginável em momentos de perigo, é compreensível que muitos (ou serão poucos?) não estejam dispostos a questionar seus fundamentos abertamente e o tempo inteiro. E os poucos (ou serão muitos?) que estariam dispostos a fazê-lo permanecem silenciosos porque temem ser convertidos em párias anômalos antes mesmo de conseguirem colher os efeitos irruptivos e transformadores da sua subversão. Ao fim e ao cabo a polícia serve para converter pares em párias. A cultura antropológica não é, portanto, o grau mínimo de consenso que permite às diferentes “tribos de antropólogos” se reconhecerem entre si e manterem diálogos felizes; ela é, basicamente, o consenso fantasmático – ou o termo maior – que a polícia evocará para impor às dissidências reais um consenso concreto: o consenso realmente existente. O consenso do poder.
Cultura na prática
Há pouco tempo uma amiga que estava participando de um importante evento sobre antropologia da ciência compartilhou duas anedotas que dizem muito sobre como funciona a “cultura” na prática. Na conferência de encerramento do evento em questão, depois que os expositores convidados fizeram a apresentação de seus respectivos trabalhos abriu-se, como é de praxe, um espaço para as perguntas do público. Um estudante negro levantou a mão e prontamente recebeu o microfone para que pudesse se manifestar. Dirigindo-se aos três conferencistas presentes, ele quis saber como os estudos da ciência e da tecnologia estavam lidando com a questão racial nas instituições encarregadas de produzir conhecimento técnico-científico. Ao final de sua intervenção o estudante observou que todos os integrantes da mesa de encerramento eram brancos e sugeriu que esse tipo de “fenômeno” também deveria ser levado em consideração no momento de analisarmos como funcionam os espaços autorizados de produção do conhecimento. É quase desnecessário dizer que, entre todas as indagações levantadas pelo público, a única que não recebeu os devidos comentários por parte da mesa foi aquela esboçada pelo estudante negro. Terminada a conferência, o diretor do departamento de antropologia da universidade anfitriã agradeceu a participação de todos os presentes e se regozijou da qualidade dos debates desenvolvidos ao longo da jornada.
A segunda anedota teve lugar depois da conferência de encerramento, quando minha amiga se dirigiu ao pátio da universidade. Lá encontrou um grupo de estudantes africanos conhecidos seus. Após cumprimentá-los, ela perguntou sobre sua experiência na universidade brasileira. A primeira reação que ouviu foi a seguinte: “isto aqui é uma merda, não vejo a hora de terminar meus estudos e ir embora”. Rodeados por professores e colegas brasileiros, os alunos africanos não se sentiram confortáveis para continuar explanando sobre seus infortúnios acadêmicos. Antes de passar para diálogos mais amenos, um deles ainda teve tempo de observar que os conhecimentos e experiências que traziam dos seus países de origem foram totalmente ignorados no ambiente institucional que os recebera no Brasil. O importante aqui – afirmou o rapaz – é ensinar aos outros como funciona a academia brasileira sem levar muito em consideração a diversidade das trajetórias pessoais e profissionais que nela se fazem presentes.
Para que a “cultura” antropológica continue funcionando é necessário fraturar a experiência dos sujeitos, de modo que não tragam suas inquietações políticas reais para o interior do espaço de reprodução institucional da antropologia disciplinar. Sahlins tem razão neste ponto: “sin un orden cultural no existe ni historia ni acción”. A manutenção vigiada de uma ordem cultural informa as políticas de legibilidade vigentes no establishment antropológico. Tudo aquilo que não possa ser lido no registro da ideologia da harmonia será relegado à inexistência política nos domínios da antropologia disciplinar institucionalizada. É só então que a história terá começo. Uma história movida por falsas polêmicas e calcada em falsos consensos.
Cultura e razão dissidente
Existem práticas antropológicas que não reproduzem a fronteira disciplinar ou que são capazes de tensioná-la em alguma medida? Em 2013, movido por esta indagação, o GEAC se propôs a cartografar dinâmicas intelectuais dissidentes que pudessem iluminar “antropologias de outra forma”. Naquela época, elaboramos uma definição ampla de dissidência com a finalidade de sensibilizar nossa atenção cartográfica. Dissidências, para nós, consistiam em resistências ou desobediências mais ou menos pontuais e situadas que fragilizavam, questionavam ou sabotavam pragmaticamente a ortodoxia disciplinar e seus arranjos normativos. Nossa experiência como estudantes de graduação e pós-graduação em antropologia indicava que as dissidências proliferavam o tempo todo com intensidade variável. A questão, portanto, não era criar dissidências, mas sim acompanha-las no seu desenrolar e contribuir estrategicamente para a multiplicação dos seus efeitos irruptivos, democratizantes e pluralizadores.
Na conclusão do seu texto, Tomás sugere que para retomar uma cartografia das dissidências deveríamos estar dispostos a repensar a produtividade da postura cartográfica e a descentrar a palavra “dissidentes”. Esta proposta soa paradoxal, já que coloca em xeque dois termos essenciais – “cartografia” e “dissidência” – que definiam o ativismo do GEAC em favor de “antropologias de outra forma”. Se entendi bem, o incômodo do Tomás com a proposta de “cartografar dissidências” tem a ver com dois pontos nevrálgicos. Em primeiro lugar, ele acredita que a localização, sinalização e exposição das práticas dissidentes poderia favorecer uma topografia do poder destinada a policiar e sustar eventuais irrupções. Em segundo lugar, ele sugere que conceber as dissidências como algo bem definido e suscetível de mapeamento poderia redundar numa espécie de processo de captura sem maior potencial criativo. Como alternativa a essas duas tendências, Tomás propõe que nos concentremos nas “prácticas [que] tensionan, convulsionan, hacen de cierta forma sufrir o provincializan las prácticas académicas que mantienen como su fuente de privilegio una frontera entre el campo y la academia”. Esta sugestão repercute a motivação política do projeto inicial, que identifica nos movimentos de dissolução da fronteira acadêmico-disciplinar um lugar privilegiado para imaginar e praticar outros modos de produção do conhecimento.
Tendo a concordar tanto com as preocupações como com as proposições do Tomás. Se as noções de “cartografia” e “dissidência” são necessariamente objetificantes e contemplativas, então o projeto político do GEAC deveria buscar outros termos nos quais referenciar-se. Nosso objetivo nunca foi tornar a “dissidência” um objeto de pesquisa e descrição densa. Pelo contrário, achávamos que antes de se empreender qualquer pesquisa ou descrição, era necessário construir lugares concretos para o desenvolvimento da atividade intelectual. Entendíamos que “a” Antropologia em abstrato não era um lugar de fala, mas sim um subterfúgio utilizado por quem não pretende esclarecer nem determinar as condicionantes da sua práxis intelectual (ler mais a respeito aqui e aqui). Quando alguém diz: “minha crítica provém da antropologia” ou “a Antropologia tem algo a dizer sobre esta questão”, devemos desconfiar. Como lugar de fala a Antropologia não existe. O que existe são múltiplos estabelecimentos antropológicos hierarquizados entre si e atravessados por constantes disputas internas. Uma alternativa para escapar do não-lugar que é “a” Antropologia seria, justamente, instalar-se no horizonte político da dissidência e tecer a partir dali novas alianças e lealdades que reorganizem nossas coordenadas para a produção de conhecimento. Neste sentido, a dissidência é tudo aquilo que converte a academia no campo [de batalha] que ela nunca deixou realmente de ser.
Ao negar o narcisismo da cultura antropológica e contestar os sistemas de legibilidade por ela informados, a dissidência sai em busca de novos vocabulários políticos que permitam aos sujeitos construírem lugares de enunciação mais amigáveis com sua própria experiência. Em suma – e de forma um pouco rebuscada – poderíamos dizer que a dissidência opera a negação pragmática do poder significante das gramaticalidades dominantes e defronta o sujeito cognoscente com novos universos de referência. Esta dinâmica nem sempre responde a uma “economia racional”, como disse o Tomás. As duas anedotas relatadas no tópico anterior demonstram bem este ponto. O impulso dissidente pode irromper como interpelação pública que satura de tensão a atmosfera higienizada de um evento acadêmico ou, alternativamente, pode subsistir como rumor selvagem que desestabiliza de forma pontual, chocante e efêmera a redundância das narrativas institucionais – “ isto aqui é uma merda”.
E se a cartografia for um diálogo gozoso às margens?
A dissidência não se presta à descrição, mas sim à experimentação. Ela é o lugar propício à construção de enunciações outras. Em espanhol poderíamos elaborar uma fórmula ainda mais clara e contundente: la disidencia no se la describe, se la vive. Acompanhar a dissidência é, portanto, abdicar da pretensão de fazer mapas estáticos. Mas isto invalida qualquer projeto cartográfico?
Penso que noção de “cartografia das dissidências” pode preservar algum vigor político se estivermos dispostos a ampliar seu universo semântico. E se concebêssemos a atividade cartográfica não tanto como método, mas sim como postura ética, num sentido mais próximo ao proposto por Suely Rolnik? Para ela, “a cartografia, diferente do mapa – que é a representação de um todo estático – consiste num desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem: (…) sendo a tarefa do cartógrafo dar voz aos afetos que pedem passagem, espera-se dele basicamente que esteja envolvido nas intensidades do seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore aqueles elementos que lhe pareçam possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias” (ver o texto completo aqui).
E se a cartografia da dissidência fosse uma espécie de exercício gozoso de escrita e leitura do real? Roland Barthes propunha uma diferenciação entre textos de prazer e textos de gozo. Os textos de prazer são absolutamente legíveis, não acarretam maiores problemas aos leitores e se desenvolvem de acordo com uma linearidade mais ou menos previsível que nos autoriza, inclusive, a saltar páginas e passagens sem perder o sentido geral do que é comunicado. Os textos de gozo, por outro lado, exigem uma leitura minuciosa, atenta aos detalhes; eles impõem uma espécie de paralisia reflexiva sem a qual seria impossível compreendê-los. Textos de prazer e textos de gozo possuem temporalidades que lhes são características. Os primeiros, também chamados de clássicos, convidam a uma leitura fluida e se tornam tediosos para um leitor aplicado. Os segundos punem com o tédio quem não estiver disposto a pagar o preço da atenção.
Poderíamos dizer que a ideologia da harmonia vigente nos estabelecimentos antropológicos mais conservadores é um forte estímulo a escrita clássica e a leitura rápida. Não estou me referindo à elaboração dos textos acadêmicos – ainda que a analogia proposta seja também aplicável à essa esfera –, mas sim à construção de narrativas e análises institucionais. Quanto mais canônicos formos na descrição das instituições que nos disciplinam e quanto menos minúcia investirmos em sua “leitura”, mais prazer teremos em viver nossas vidas acadêmicas. A curto prazo a leitura e a escrita prazerosas redundarão na felicidade de sermos compreendidos por um público amplo e dócil.
A cartografia da dissidência, por sua vez, seria a postura ética que nos impele a exercer leituras e descrições gozosas das nossas respectivas conjunturas institucionais mediante o esforço de enunciar politicamente aquilo que não possui sentido para os regimes de legibilidade atualmente consolidados. Empreender este tipo de cartografia é colocar a prova nossa própria capacidade de operar a atribuição de sentido independentemente das práticas de leitura e escrita apregoadas pela institucionalidade vigente. A cartografia, como expressão articulada da leitura e da escrita gozosas, possui sua própria temporalidade. Ela não ocorre apressadamente. O tempo da cartografia é o de quem decide “parar para pensar” – como rezava o lema da greve dos estudantes de mestrado em antropologia social da UFRGS em 2011; é o tempo “improdutivo” que damos a nós mesmos sem nos preocuparmos com os imperativos de reprodução da aparelhagem disciplinar herdada.
Sem “parar para pensar” podem até haver dissidências – sempre há –, mas não haverá possibilidade de uma cartografia, ou seja, de uma comunicação/comunização do ponto de vista epistemológico proporcionado pela experiência da dissidência. Concebo a cartografia das dissidências como uma espécie de diálogo gozoso às margens. Mas como tornar produtivo (em termos de poder) esse diálogo sem ser imediatamente transformado em pária anômalo pela polícia disciplinar e sem cair numa reivindicação esteticista da marginalidade? Alguns poderiam dizer que tal pergunta não passa de uma preocupação covarde. Eu mesmo tenderia a pensar assim até pouco tempo atrás. Hoje, estou convencido de que não vale a pena dar à polícia a chance de converter alguém em pária. Isso seria jogar o jogo da disciplina, que só consegue definir-se como tal em contraposição à uma exterioridade contingente que deve ser marcada como anômala ou desviante. Gostaria de saber como o Tomás – e quem mais quiser “parar para pensar” – reage à essa pergunta que me soa tão urgente agora que demos adieu à Antropologia.
Pingback: SOBRE RAZOABILIDADE | investigações indigenas