Por que o status ontológico da exterioridade radical é ainda tão necessário para a política e para as aspirações da antropologia como disciplina? Como esses dois projetos coincidem? Talvez o principal paradoxo da antropologia ontológica seja sua incapacidade de levantar estas questões. Ela não consegue dar conta das reflexões de autores como Walter Benjamin, Nietzsche, Bataille, Fanon, Foucault – e seus muitos interlocutores etnográficos –, que com tanto primor evitaram cair na fácil oposição entre Iluminismo e encantamento (Lucas Bessire e David Bond).
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Traduzir textos, tanto como escrevê-los, é uma maneira de introduzir e fomentar os debates que nos parecem pertinentes. Ontological anthropology and the deferral of critique (A antropologia ontológica e a postergação da crítica), de Lucas Bessire e David Bond, publicado ano passado na American Ethnologist, introduz uma série de preocupações a respeito da “virada ontológica” que dialogam com discussões desenvolvidas em outras oportunidades no blog do GEAC (Viveiros, indisciplina-te!; Afinal, como Viveiros vive a política?; Uma interpelação feminista indígena à “Virada Ontológica”; O discreto charme de Bruno Latour e Quando acordamos…). Compartilhamos a versão original e oferecemos, como “aperitivo”, uma tradução do último tópico e das conclusões do artigo. Para muitos de nós, ler em inglês exige certo esforço adicional que só se justifica quando um texto soa realmente promissor. Esperamos que os trechos traduzidos sejam estímulo suficiente.
A antropologia ontológica e a postergação da crítica
A antropologia contemporânea começou a emergir de uma crise – uma luta de três décadas com a prática representacional – para confrontar outra: a crise da crítica. Condensando as várias preocupações em jogo, poderíamos resumir essa crise como um momento de hesitação produtiva sobre as condições através das quais uma crítica antropológica ética e efetiva da contemporaneidade seria possível (Boltanski and Th´evenot 1999; Das 2007; Fassin 2013; Fischer 2009; Marcus 2010; Marcus and Fischer 1986; Roitman 2013; Scheper-Hughes 1995; Smith 1999). A antropologia ontológica é sedutora, em parte, devido a sua promessa de resolver essa crise.
A solução proposta é maravilhosa em suas propostas e consequências. Se os ontologistas possuem um projeto crítico, este não está dirigido às consequências sociais do conhecimento, mas sim à crítica acadêmica do conhecimento. O raciocínio parece ser o seguinte: qualquer prática crítica que inclua políticas representacionais – que focalize em disjunções entre formas ideais e conteúdos desordenados, falsa consciência, conjunções de saber/poder ou estruturas de sentimento – é fatalmente defeituosa. A crítica epistemológica é suspeita porque o ato de criticar representações presume para si o status privilegiado de representação. Ou seja, colocar atenção na agência histórica do conhecimento automaticamente reduz a viabilidade de agências alternativas no presente. A modernidade, construída sobre este erro, destaca artificialmente as relações dos modos de ser. Esse privilégio significa que todas as críticas da interpretação ou do significado consistem em subordinar a multiplicidade ontológica numa única matriz que dissocia questões epistemológicas de questões ontológicas. Em consequência, mundos autônomos externos aparecem como epifenômenos da modernidade. Tal redução é possível devido ao conceito de cultura e à ficção de uma história humana compartilhada.
O impulso de conceber a agência dos povos indígenas no marco de uma história mundial ou de entender a diferença como algo cultural é uma jogada insidiosa que nega a existência de múltiplos mundos. Tais operações representariam de forma equivocada os conflitos, tornando-os inteligíveis unicamente como debates internos sobre a fiel representação de um real compartilhado. Desta forma, os ontologistas argumentam que a figura da crítica cultural consagrada na antropologia convencional é uma forma perniciosa de onto-práxis moderna (Blaser 2009a; Holbraad 2012). Neste esquema, o real obstáculo para o futuro é a crítica do presente.
Que alternativa propõem os ontologistas? Nada menos que policiar a Grande Divisão entre moderno e não-moderno assumindo de antemão que “a virada ontológica… é um fim político no seu próprio direito” (Viveiros de Castro et al. 2014). Sendo assim, Ghassan Hage pode argumentar que a antropologia deve retornar ao “ethos da antropologia primitivista, se é que isto é permanecer crítico” (2012:303; ver também Hage 2014). Inspirado pela “exemplar abordagem” de Viveiros de Castro, Hage argumenta que a contribuição da antropologia para o pensamento crítico foi sempre confrontá-lo com pessoas que vivem“fora da modernidade”. Ao encarar uma alteridade antes inimaginável, a antropologia pode provar que “nós podemos ser radicalmente diferentes do que nós somos” e, assim, gerar um “novo imaginário radical que vem de fora do espaço existente das possibilidades políticas convencionais” (Hage 2012:289). Hardt e Negri elaboram um argumento similar. Eles também postulam que o perspectivismo ameríndio é uma forma de criticar a epistemologia moderna e empurrá-la em direção a uma racionalidade alter-moderna. Contra a iminente homogeneidade da modernidade, tais argumentos sugerem que o valor da alteridade ameríndia reside no fato de que oferece um “novo Novo Mundo” lá fora pronto para ser tomado em mãos.
Estes imaginários redefinem a crítica ao deslocá-la no tempo e no espaço. Logicamente, a teoria crítica esteve durante muito tempo ocupada em expandir suas coordenadas, de modo que elas contemplassem não só os grupos subalternos, mas também as pessoas de um modo mais geral: suas formas inesperadas de conhecimentos e seus modos desregrados de ser. A antropologia ontológica rejeita esta operação. Em vez disso, ela imagina a resistência como um fait accompli futuro, que esquiva a espada da dominação presente. Neste modelo, a critica não está colocada na posição de sujeito historicamente específica do indígena, mas na iminente utilidade da sua cosmologia atemporal. É importante notar que essa cosmologia está preventivamente restrita a “composição ontológica peculiar do mundo mítico” (Viveiros de Castro 2010:40).
Nesta postura verificamos uma sutil reconfiguração da prática antropológica, que se desloca da etnografia-orientada-por-um-problema em direção ao que Matei Candea celebra como o “campo limitado ao local” da ontologia. Desta forma, a solução ontológica para a crise da crítica é esquecê-la por completo. Este movimento é crucial para purificar a doutrina ontográfica. A antropologia ontológica tenta reorientar o espaço e o tempo da análise para os termos da sua visão utópica. Como observa Michael Scott, o “não dualismo magicamente induzido da antropologia ontológica é esteticamente persuasivo, mas potencialmente escatológico (…) ele abole a história, transpondo toda a ontologia vivida em conformidade com os termos do seu próprio eterno retorno” (2013b:304).
Este tom decididamente escatológico invoca uma mensagem de redenção messiânica, justificada pela figura de uma catástrofe iminente. Esta perspectiva pressupõe um cosmos povoado de fronteiras que apenas as autoridades sacramentadas podem cruzar magicamente. Baseada numa série de paradoxos constitutivos, o poder desta visão antimoderna depende da apropriação de alguns aspectos chave do programa político da modernidade. Longe de desanimar o projeto ontológico, tais contradições forçam os ontologistas a se submergiram ainda mais em sua doutrina totalizante: devemos aceitar todos os seus termos ou rechaça-los integralmente.
Nas suas próprias coordenadas ontológicas, esta manifestação da antropologia possui tons profundamente religiosos, operando como uma espécie de estudo religioso da religião. Se for assim, este é um movimento religioso que parece estranhamente familiar. A antropologia ontológica possui uma misteriosa semelhança com aquele outro problemático movimento paradoxalmente interno e externo à modernidade: o fundamentalismo religioso.
Conclusão
Tomadas em conjunto, essas observações nos conduzem a formular as três teses que apresentamos na continuação:
Primeiro, a virada ontológica substitui uma etnografia do atual por uma sociologia do possível através da composição e imposição de tipologias ideais. Isto desvia a atenção das políticas da natureza atualmente existentes, tornando impossível o transcendente trabalho de hibridizar conhecimentos e colocá-los a serviço dos bens comuns.
Segundo, a virada ontológica reifica os retalhos de várias histórias como se fossem formas do presente filosófico. Em outras palavras, imagina os legados coloniais e etnológicos como a aldeia perfeita para uma filosofia progressista. Suas tipologias ideais reproduzem os binarismos colonizantes do estruturalismo – amplamente criticados pelos teóricos marxistas, pós-coloniais, feministas e queer – em nome de resistir ou destruir os efeitos hegemônicos de tal conhecimento (Davis 1981; Mbembe 2001; Said 1979; Spivak 1999). A consequência disto é que a virada ontológica estandardiza a multiplicidade e fetichiza a alteridade através dos mesmos termos pelos quais se pretendia negar as políticas da representação.
Finalmente, a virada ontológica formata o mundo para novos tipos de dominação baseados numa preocupação excepcional e num desrespeito aceitável, na medida em que os mundos alter-modernos descobertos por acadêmicos de elite oferecem um refúgio redentor para os poucos privilegiados enquanto as massas globais confrontam processos cada vez mais duros de desigualdade e marginalização. Sublinhamos que a figura salvacionista da alteridade ontológica é uma meta-narrativa crucial do liberalismo tardio imbuída, ela também, do seu próprio status ontológico privilegiado.
Para concluir, nós não compartilhamos essa fixação no moderno nem estamos convencidos de que a capacidade revisionista se restrinja ao seu oposto. Nós rejeitamos o deslocamento centrífugo das capacidades críticas e criativas em direção àqueles conteúdos sagrados que persistem ostensivamente ao longo da modernidade. Nós insistimos num mundo compartilhado de problemas assimetricamente distribuídos. Este é um mundo de temporalidades instáveis e rotacionais, de rupturas materiais e epistêmicas, de coisas que são desagregadas e rearranjadas. Trata-se de um mundo composto de potencialidades, mas também de contingências; de devir, mas também de violência. Neste mundo, a imanência não é nunca inocente em si mesma. Gostaríamos que os méritos da antropologia ontológica fossem avaliados nesse domínio das colisões e contradições do mundo real.
Nós acreditamos que é equivocado sugerir que a antropologia deve escolher entre a monotonia opressiva de uma modernidade monolítica e as fantásticas elisões da civilização por vir. Ambas opções nos deixam mal instrumentados para narrar as condições da atualidade em nosso conturbado presente. Como afirma Fischer, precisamos de uma “nova política humanista, aberta também para o pós-humano com seus componentes humanos. Uma política que nos permita sobreviver e viver depois das catástrofes que nos esperam. Uma política que enfrente as crescentes desigualdades e devastações de nossas atuais economias canibais, consumidoras da vida de muitos em favor do luxo de poucos”.
O futurismo especulativo da antropologia ontológica, tal como se pratica hoje, bloqueia essas metas. Para busca-las concretamente, devemos começar por reconhecer que nossos futuros são contingentes porque nosso presente também o é. Se a antropologia ontológica falha em enunciar essas contingências, então ela assume a forma de um mito moderno e a única imagem que é capaz de refletir é a sua própria.
Muito interessante a discussão, mas ela fica meio hermética na medida em que tem todos os tiques do academicismo sem cumprir todo o rito – cadê a bibliografia com os autores e obras citados ao longo de todo o texto?
Caro Tomás, esta é uma tradução do último tópico e da introdução do artigo intitulado “Ontological anthropology and the deferral of critique”. Tu podes consultar toda a bibliografia citada neste link, que dá acesso à versão original do texto: https://antropologiacritica.files.wordpress.com/2015/09/ontological-anthropoly-and-the-deferral-of-the-critique.pdf
Interessante o texto, mas eu não consigo encontrar em Fischer um caminho analítico consistente sobre qual se possa amparar uma análise crítica do aqui e agora. Talvez seja falha minha.
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