Por David Graeber
Tradução: Coletivo Máquina Crísica – GEAC
Publicado pela revista Práxis Comunal.
Depois de ser acusado de introduzir teorias marxistas “pelas costas dos nativos”, eu não posso ajudar muito. Sendo assim, só me resta devolver a questão: os proponentes da virada ontológica realmente acham que a maioria das pessoas com as quais os antropólogos trabalham estariam de acordo com a proposição de que elas vivem em “naturezas” e “ontologias” fundamentalmente diferentes das dos outros humanos – ou ainda, que as palavras determinam as coisas?
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Alteridade radical é só outra forma de dizer “realidade”. Resposta de David Graeber a Viveiros de Castro.
Velhos debates antropológicos, como aqueles tornados famosos por Edmund Leach ou David Schneider, foram, alguma vez, um dos sinais mais dramáticos – e cativantes – da vitalidade da disciplina[1]. Eles parecem não ter voltado a acontecer. Talvez esse seja o resultado inevitável da fragmentação: nós já não compartilhamos um substrato comum que nos permita entrar em acordo sobre aquilo que vale a pena ser discutido. Quando os antropólogos se engajam em polêmicas nos dias de hoje, na maioria das vezes eles parecem travar um diálogo de surdos, frequentemente aos gritos.
Neste sentido, devo dizer que Eduardo Viveiros de Castro, em sua recente Conferência Marilyn Strathern, intitulada “Quem tem medo do lobo ontológico”? (2015), está propondo que revivamos uma velha tradição. Ao tomar certos argumentos de um ensaio sobre fetichismo de minha autoria (Graeber, 2005) como exemplos do que ele considera serem “movimentos inadmissíveis” na antropologia, Viveiros de Castro parece estar clamando por algum tipo de resposta. Parece-me que esse tapa de luva cortês, bem humorado e fraternal oferece uma oportunidade para reviver a antiga tradição dos grandes debates num espírito novo e mais generoso. Devo dizer que me sinto lisonjeado pela oportunidade. Sou um profundo admirador do trabalho de Eduardo Viveiros de Castro e vejo nele um companheiro e um aliado político, na medida em que ambos somos ativistas que intuem que a antropologia não só está posicionada para responder questões de importância filosófica universal, mas também possui uma contribuição fundamental para a causa da liberdade humana.
Em outras palavras, nós compartilhamos tantas coisas em comum que a explicitação de nossas diferenças poderia resultar instrutiva.
Finalmente, penso que o ponto imediato de nosso desacordo – ou seja, o que é e o que não é permitido a um antropólogo dizer sobre a magia do granizo malgaxe –, ainda que seja muito específico, pode introduzir questões que a antropologia faria bem em encaminhar; questões que, de fato, têm implicações políticas maiores.
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Primeiramente, quero introduzir a questão de modo sumário. Viveiros de Castro se tornou, ao longo da última década, o referente principal do que veio a ser conhecido, na antropologia, como “virada ontológica” (de agora em diante, VO; ver, entre outros, Candea 2011; Henare, Holbraad e Wastel 2007; Holbraad 2007, 2008, 2009, 2012a, 2012b; Pedersen 2001, 2011, 2012; Viveiros de Castro 2003, 2013, 2015; cf. Heywood 2012; Laidlaw 2012; Salmond 2014). Na sua Conferência Strathern, Viveiros apresentou-me como um exemplo de antropólogo démodé, que ainda apega-se ao velho hábito de desmentir alegremente o que costumava ser chamado de “crenças aparentemente irracionais” – neste caso, a crença de que um feitiço chamado Ravololona poderia impedir que as tempestades de granizo se abatessem sobre os cultivos agrícolas. Neste sentido, eu pertenceria a uma tradição que encara tais crenças como não verdadeiras em sentido literal e que procura explicá-las como projeções de relações sociais de algum tipo. Tal abordagem não teria se desenvolvido em nenhum sentido fundamental desde que Evans-Pritchard (1937) argumentou que as ideias zande sobre bruxaria não podiam ser literalmente verdade e que, em vez de simplesmente compilar relatos aparentemente contraditórios e tentar imaginar o que esse povo deveria pensar de modo que tais posições fossem consistentes, a tarefa real do etnógrafo seria entender como a sociedade é organizada de tal forma que ninguém nunca perceba que certas declarações são contraditórias.
Devo admitir que, da minha parte, não vejo qualquer vexame na afinidade com Evans-Pritchard. Isto porque eu sempre encarei sua exposição da bruxaria zande como uma das mais brilhantes análises da ideologia jamais feitas. O ponto central de Evans-Pritchard era que, quando falavam em abstrato, os azande iriam invariavelmente proferir certas declarações – por exemplo: que as bruxas eram um pequeno coletivo de agentes malévolos e auto-conscientes; que filhos de bruxos também eram bruxos – que, na verdade, contradiziam sua prática cotidiana (até certo ponto, todo mundo admitia a bruxaria inconsciente e ninguém falava de linhagens de bruxos). Por que não deveríamos sinalizar essa contradição? A resposta de Evans-Pritchard era que a sociedade zande estava organizada de tal modo que os dois [tipos de declaração] nunca se justapunham. Os azande não eram sociólogos. Eles não pretendiam encarar posições individuais sobre esta ou aquela pessoa como um ponto de partida significativo para refletir sobre a sociedade como um todo. As coisas são diferentes em nossa própria sociedade, na qual é comum ouvirmos generalizações absurdas do tipo “qualquer um que for suficientemente determinado e acreditar realmente em si mesmo poderá ter sucesso na vida”. Afirmações desta natureza ocorrem a despeito da realidade cotidiana: sabemos que se cada indivíduo acordar pela manhã decidido a se tornar o próximo Sir Richard Branson[2], a sociedade continuará organizada de tal forma que ainda existirão motoristas de ônibus, zeladores, enfermeiros e caixas de supermercado.
Sendo assim, a questão sobre “em que os azande deveriam acreditar para que certas declarações fossem consistentes” é uma pergunta equivocada. Os proponentes da VO estariam de acordo comigo neste ponto, mas por razões opostas às minhas. Eles argumentariam que tal indagação ainda não foi longe o suficiente: a verdadeira questão não deveria ser “o que os azande precisam crer”, mas sim “o que o mundo deveria ser para que suas declarações sejam consistentes?” Seria, então, incumbência do etnógrafo escrever como se esse mundo realmente existisse, pelo menos para os azande. Isto implicaria não só reconhecer sua alteridade radical, mas também aceitar que nós jamais poderemos entendê-la completamente, o que não nos impediria de fazer com que os conceitos subjacentes a essa alteridade “perturbem” nossas próprias crenças teóricas.
Agora, detenhamo-nos na objeção de Viveiros de Castro sobre o feitiço malgaxe do granizo.
Primeiramente, quero reagir às acusações que me foram endereçadas inserindo minhas observações num contexto etnográfico mais integral. Ao fazê-lo, pretendo evidenciar o que está realmente em jogo quando se abre uma fissura entre as abordagens “ontológicas” e aquelas empreendidas por antropólogos como eu. Este ensaio irá explorar alguns textos fundamentais da virada ontológica para argumentar, entre outras coisas, que, a despeito de suas declarações em sentido contrário, tal movimento teórico não abandona a tradicional indagação filosófica em torno de uma ontologia universal. Na verdade, a VO propõe sua própria ontologia universal tácita que consiste, essencialmente, numa forma de idealismo filosófico. Em contraste, eu argumento em favor de uma combinação entre realismo ontológico e relativismo teórico, sugerindo que, longe de tentar impor concepções próprias pelas costas dos meus interlocutores malgaxes, tal abordagem está bem próxima da forma como os próprios malgaxes pretendem pensar sobre essas questões. Tal proximidade proporciona um diálogo significativo sobre um conjunto de questões consideradas pertinentes por meus interlocutores em Madagascar.
O debate
Não é necessário sumarizar meu artigo sobre fetichismo porque Viveiros de Castro evoca apenas uma pequena passagem dele. Basta dizer que se trata, fundamentalmente, de um ensaio sobre o pensamento duplo. A palavra “fetiche” é geralmente invocada quando as pessoas parecem falar de uma maneira e agir de outra. Tomemos o caso dos objetos africanos outrora rotulados como “fetiches” pelos comerciantes europeus e por outros viajantes. Quem empregava ditos objetos insistia em seu caráter divino, ainda quando agisse como se não acreditasse nisso (os deuses em questão podiam ser criados e descartados conforme a necessidade). Diga-se de passagem, no caso do atual fetichismo da mercadoria, ocorre exatamente o oposto: um corretor financeiro vai insistir em que ele não acredita realmente que a carne de porco ou os derivativos securitizados estão fazendo isto ou aquilo – em tese, tratar-se-ia apenas de figuras de linguagem. Sendo assim, o corretor em questão age como se acreditasse que as mercadorias estão fazendo essas coisas. Pois bem, no artigo mencionado por Viveiros de Castro, eu sublinhava que os ody malgaxes – termo geralmente traduzido como “encanto” ou “feitiço” – eram muito similares aos fetiches africanos evocados anteriormente. Além disso, eu sugeria que o duplo pensamento é típico dos momentos de criatividade social. Aqui, uma abordagem marxista clássica, que vê no “fetichismo” apenas uma confusão entre a perspectiva individual e a natureza da totalidade social, não seria pertinente porque a totalidade social relevante ainda carece de existência – de fato, a totalidade está em processo de criação precisamente através desses atos “fetichistas”[3].
Viveiros de Castro passa por cima de todas essas reflexões para enfatizar um único parágrafo, que aparece ao final do ensaio. Ele indica que, comumente, os antropólogos declaram que o entendimento de seus informantes sobre o mundo está errado. Evans-Pritchard teria agido assim quando esclareceu aos seus leitores que “as bruxas, tal e como os azande as concebem, não existem” (Evans-Pritchard, 1937, p. 63). Mas não precisamos retornar até a obra de Evans Pritchard. Hoje em dia, alguns antropólogos ainda falariam como ele. Para ilustrar este ponto, Viveiros de Castro cita a seguinte passagem do meu ensaio:
Claro que estaríamos indo longe demais se afirmássemos que a visão fetichista é simplesmente verdadeira: o Lunkanka não pode realmente dar um nó nos intestinos de alguém; o Ravololona não pode prevenir realmente a queda do granizo sobre as plantações. No final das contas, nós provavelmente estejamos lidando, aqui, com o paradoxo do poder, entendido, este último, como algo que existe apenas se outras pessoas creem que ele existe. Trata-se de um paradoxo que, como já argumentei, também se encontra no núcleo da magia, a qual parece estar envolvida por uma aura de fraude, espetáculo e artimanhas. No entanto, poderíamos sugerir que este não é apenas o paradoxo do poder. É, também, o paradoxo da criatividade (Graeber, 2005, p. 430 apud Viveiros de Castro, 2015, p. 15).
Esta é a resposta de Viveiros de Castro:
“Já está decidido desde o início”, como diriam Deleuze e Guattari, que os fetiches só podem servir para representar ilusões necessárias, conjuradas pela vida em sociedade. Márcio Goldman, num artigo do qual eu roubei esta passagem, assim como o espírito geral do comentário, observa que o esforço de Graeber por salvar a noção marxista de “fetichismo” – segundo a qual os fetiches seriam “objetos que parecem investir qualidades humanas que são, no final das contas, derivadas dos próprios atores” – está mal colocado. Graeber procura alguma maneira de reconciliar os merina com Marx, argumentando que os fetiches só se tornam “perigosos” quando “o fetichismo abre caminho para a teologia, isto é, para a segurança absoluta de que os deuses são reais” (reais como as mercadorias, poderíamos dizer). Goldman (2009, p. 114 e ss.) pontua que o problema com esse árduo esforço de salvar os nativos é que ele é empreendido pelas suas costas. Em primeiro lugar, conviria questionar se a conversão do fetichismo em uma “vontade de crer” que estaria na raiz do poder social ou real seria aceita pelos nativos. Em segundo lugar, poderíamos indagar se tal redução – que soa mais como uma tentativa de reconciliar uma ontologia ocidental explícita (a saber, o materialismo dialético) com a ontologia merina implícita – não terminaria sendo o reforço, e não apenas a preservação, de nossa própria estrutura ontológica. Aqui, parece não existir um esforço de problematização das nossas próprias premissas. O poder mágico, tal como os merina o concebem, não existe. (ibid.)
O que dizer sobre esta passagem? Viveiros de Castro, seguindo um ensaio anterior de Marcio Goldman (2009), parece propor os seguintes argumentos:
1) que existe um povo chamado “os merina” ao qual pode ser atribuída certa “ontologia implícita” que inclui determinada concepção de poder mágico;
2) que eu estou negando a legitimidade dessa concepção “merina” quando digo que o Ravololona (feitiço do granizo) não pode “realmente” parar o granizo;
3) que eu estou substituindo a teoria merina explícita por uma teoria diferente, derivada de Marx, para a qual tais ilusões são a projeção de qualidades humanas em objetos materiais;
4) que quando digo que os “nativos” reconhecem tacitamente que isto está acontecendo, eu estou tentando formular meu argumento “pelas suas costas”, por meio de declarações e teorias sobre o poder social com as quais seria improvável que eles concordassem.
5) que, ao fazer isso, eu falho em problematizar minhas próprias premissas teóricas (marxistas) em resposta à ontologia “nativa” tácita sobre o poder mágico.
Começo pelo último argumento (número 5). Seria pouco razoável esperar que o autor tenha feito um estudo detalhado dos meus primeiros escritos etnográficos a respeito da fanafody – ou feitiçaria – malgaxe (cf. Graeber 1996a: 15–19; 1996b [ver, também 2007b: 226–34, 241–43]; 2001: 108–14, 232–45; 2005: 421–26; 2007a: 35–39, 73–86, 139–82, 185–87, 232–36, 242–50, 261–308, 320–23, 338–47; 2007b: 165, 195, 278–79; 2012: 36–39). De qualquer forma, levando em conta que Viveiros de Castro presumivelmente leu o artigo que está criticando, é de se esperar que ele esteja ciente de que se trata de uma tentativa explícita de empregar a etnografia para problematizar as categorias teóricas marxistas. Eu finalizo o ensaio argumentando que os “fetiches” africanos não são, no final das contas, fetiches no sentido marxista. A clássica análise marxista do fetichismo não pode ser aplicada a qualquer contexto que envolva atividade social dramática[4]. Em tais circunstâncias, o que nós chamamos de fetichismo ou magia pode, de certa forma, ser considerado verdadeiro. Em meu ensaio, eu ainda sugeria – na segunda metade do parágrafo que Viveiros de Castro cita em sua palestra – que o que Marx concebe como uma sociedade livre poderia ser, pelo menos em certo sentido, mais fetichista que a nossa própria sociedade!
Sendo assim, presumivelmente a objeção de Viveiros de Castro não seria a de que eu me abstenho de usar o material etnográfico para problematizar minhas próprias premissas teóricas, mas sim a de que eu não faço isso da forma como ele gostaria. O que eu deveria ter feito seria examinar “o poder mágico, tal e como ele é concebido pelos merina” e, em seguida, tratá-lo não como uma teoria ou crença, mas como realidade; uma realidade que “nós ocidentais” jamais seremos capazes de compreender completamente; uma realidade à qual nossas categorias mais familiares, como fetiche, não aplicam-se. Em outras palavras, só há dois caminhos autorizados para “problematizar nossas próprias premissas”: podemos aceitar e tratar de lidar com a alteridade radical dos conceitos “nativos”, considerando as implicações de tomá-los como uma forma de realidade (mas uma realidade que existe apenas para esse grupo particular de “nativos”), ou, alternativamente, podemos aceitar o marco teórico geral proposto pelos protagonistas da “virada ontológica”. Quanto a mim, devo admitir que não estou disposto a seguir nenhuma dessas vias. Em vez disso, concluo que os exemplos do nkisi bakongo e do ody malgaxe podem nos ensinar algo inesperado sobre os seres humanos de qualquer lugar – e não só sobre agricultores e astrólogos malgaxes, “antropólogos ocidentais”, xamãs amazônicos, lojistas egípcios, poetas mexicanos, e revolucionários alemães do século XIX.
Desta forma, poderíamos dizer que Viveiros de Castro não está objetando o fato de eu deixar de problematizar as premissas com as quais estou familiarizado, mas sim minha tendência a problematizá-las em demasia.
Antes de prosseguir, detenhamo-nos mais longamente sobre este ponto. É necessário ponderar o que está em jogo aqui. Parece haver duas concepções muito diferentes sobre o que é a antropologia no fim das contas. Quando, afinal, estamos desestabilizando realmente nossas próprias categorias? Tal desestabilização depende de que entendamos a “alteridade radical” de um grupo específico? Ou, por outro lado, associa-se ao esforço de mostrar que, em certo sentido, a alteridade não é tão radical quanto parece, de modo que podemos usar certos conceitos aparentemente exóticos para reexaminar nossas próprias premissas cotidianas, visualizando, assim, algo novo a respeito dos seres humanos em geral? Obviamente, eu sou um expoente da segunda posição. De fato, parece-me que os grandes logros da antropologia ocorrem, precisamente, quando estamos dispostos a empreender esse segundo movimento, do qual emergem indagações do tipo: “Mas, ao fim e ao cabo, não seríamos todos totemistas em algum sentido?” “Conhecer a lógica do tabu polinésio não nos levaria a ver com outros olhos categorias mais familiares, como a etiqueta ou o sagrado?”
Desejo enfatizar o seguinte: conduzir o tipo de análise pelo qual propendo não é simplesmente uma questão de “ocidentais” explorando a sabedoria “nativa” para entenderem melhor a si mesmos. Com certeza, dado que vivemos num mundo violento e desigual, as estruturas de poder existentes tenderão a produzir esse tipo de situação exploratória. No entanto, isto ocorre com qualquer projeto intelectual desenvolvido no interior de estruturas violentas e desiguais (incluindo os projetos de reconhecimento da alteridade radical, que podem acabar incorrendo em algum tipo de apartheid moral ou político: cf. Leve 2011; Graeber 2007b: 288–90). Tudo pode servir aos propósitos do poder. Para mim, a questão política consiste em nos perguntarmos sobre qual abordagem deveria ser seguida para apoiar aqueles que estão tentando desafiar as estruturas do poder.
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A “teoria etnográfica”, tal e como Giovanni da Col e eu (2011) a denominamos, é uma tentativa de tornar mais explícita essa segunda abordagem que vim reivindicando. Poderíamos dizer que tal abordagem inclui dois passos articulados que se repetem interminavelmente (“recursivamente”, como diriam os OuTros[5]): 1) uma tentativa de tanger a lógica interna de um conceito – ou prática – aparentemente exótico (tendo em mente que os conceitos são sempre a contra-cara de uma forma de prática – i.e., os números não são um a priori, mas um efeito da prática de contar; o tabu é um efeito da prática de interditar [tabooing]); 2) um esforço de reexaminar práticas menos exóticas e aparentemente mais familiares sob a luz dessa análise, de modo a ponderar se as noções do senso comum são, em algum sentido, parciais, inadequadas ou equivocadas. A história do conceito de fetichismo é, na verdade, uma ótima ilustração do que venho dizendo. Como William Pietz (1985, 1987, 1988) argumentou celebremente, os comerciantes europeus que operavam no oeste da África nos séculos XVI e XVII inventaram a palavra “fetiche” porque careciam de uma linguagem através da qual falar sobre a maioria das práticas que eles observavam em sua contra-parte africana. Uma vez que eles efetivaram tal invenção, a noção de fetiche assegurou aos pensadores europeus um tipo de pivô conceitual que lhes permitiu conceber algumas das suas práticas comuns e correntes (comerciais e sexuais) sob uma luz radicalmente nova. As teorias resultantes levaram outras pessoas a retornarem ao material africano para descobrir que a concepção original de “fetichismo” era amplamente inadequada, o que, por sua vez, levou-nos a repensar nossas próprias premissas teóricas sobre o “fetichismo” da mercadoria… e por aí vai. Meu próprio ensaio era só mais um momento desse intercâmbio permanente.
Certos propositores da VO tendem a afirmar explicitamente que uma das maiores vantagens de sua própria abordagem é nos proteger do desconforto de realizar esse segundo movimento. Palavras de Martin Holbraad:
Um corolário [da virada ontológica] sinalizado com menos frequência tem a ver com a forma em que ela na verdade protege ambos os lados envolvidos num suposto desacordo. Os proponentes da virada ontológica enfatizam reiteradas vezes que [seu procedimento] nos salva da arrogância de pensar que as pessoas que nós estudamos são bobas quando elas falam e fazem coisas que, para nós, figuram como irracionais. Mas, da mesma forma, [a virada ontológica] nos previne contra o impulso relativista de dizer que o que nós consideramos racional é algo “situado”, “construído”, etc. Nosso desejo antropológico de dar crédito a quem parece estar dizendo que as pedras são pessoas não encontra sustentação no senso comum compartilhado segundo o qual as pedras não são pessoas: novamente, o que conta como uma pedra é diferente em ambos os casos. A virada ontológica, em outras palavras, protege nossa “ciência” e nosso “senso comum” tanto quando ela protege o “nativo”[6]. (Holbraad apud Alberti, Fowles, Holbraad, Marshall e Witmore 2011, p. 903). Grifos meus.
Esta passagem é crucial porque deixa clara a natureza em última instância conservadora do projeto ontológico – pelo menos nesta acepção particular. A ciência ocidental e o senso comum estão “protegidos” de qualquer desafio – o que significa, necessariamente, a proteção daquelas estruturas de autoridade que nos dizem, efetivamente, em que consiste a “ciência ocidental” ou o “senso comum”. Sendo assim, se o teu interlocutor for um budista theravada reformador (cf. Leve, 2011) ou um naxalita revolucionário (cf. Shah, 2013; 2014) que afirma ter uma mensagem para toda a humanidade, a recomendação “ontológica” seria que ele baixasse a bola e falasse por si mesmo. Quaisquer pretensos Zaratrustas devem retornar às suas montanhas. Com efeito, o ontologista declara o seguinte:
Não pretendo desafiar a autoridade de um adivinho cubano que me diz que “pó é poder” no interior daquele espaço que foi atribuído ao adivinho cubano para falar sobre tais assuntos; da mesma forma, esse adivinho cubano não tem por que desafiar um cientista ocidental que está operando dentro do que considero uma esfera de autoridade apropriada para o cientista ocidental. No que diz respeito a essas pessoas que eu defino como “ocidentais”, não questionarei – na esfera definida como “ocidente” – quaisquer suposições comuns sobre a natureza do tempo, dos objetos, das mudanças, dos sujeitos, da consciência, da criatividade ou da ação em referência àquilo que o adivinho cubano tem a dizer.
Em outras palavras, o adivinho não pode nos dizer nada a respeito dos seres humanos em geral, assim como o antropólogo também não pode fazê-lo. Como disse Wittgenstein uma vez, devemos deixar o mundo exatamente como nós o encontramos.
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Retornemos sobre aquela sentença em particular que Viveiros de Castro se propôs a criticar: “o Ravololona não pode prevenir realmente a queda do granizo sobre as plantações”[7].
Cabe explicar que “Ravololona” é o nome de um famoso ody – ou “encanto” – malgaxe. Outrora, um encanto de mesmo nome figurava no panteão oficial do sampy, às vezes chamado de “palladia real” (Berg, 1979), que protegia o reino de Merina no século XIX. Uma manifestação desse encanto se manteve como feitiço do granizo do outro lado das montanhas, em Betafo, a comunidade onde eu realizei meu trabalho de campo do doutorado entre 1989 e 1991[8]. Viveiros de Castro sugere que é difícil de imaginar que “os merina” concordassem com as minhas afirmações. Diante de semelhante assertiva, proponho-me a especificar em que consiste o suposto “movimento ilegal”[9] do qual sou acusado por Viveiros de Castro. Aparentemente, eu estaria apelando a uma forma ocidental de conhecimento da realidade que, enraizada na ciência, pretende fazer afirmações de ordem universal e se considera necessariamente superior ao entendimento – ou às realidades – daqueles que estão sob estudo.
Há, de fato, uma série de problemas neste tipo de crítica. O primeiro deles concerne à real existência de um povo que possa ser referido como “os merina”. No meu trabalho, tomo o cuidado de evitar o uso da palavra “merina” neste sentido[10]. Há uma razão simples para isso. Se bem a palavra “merina” parece ter sido eventualmente utilizada no século XIX e início do XX como um termo genérico para designar os habitantes do norte do planalto central de Madagascar, momento a partir do qual começou a estabelecer-se na literatura antropológica, eu mesmo não encontrei durante meu trabalho de campo nenhuma pessoa que se referisse a si mesma como “merina”. Meus interlocutores recorriam a uma série de outras referências para se auto-denominar: grupo de status (andriana, hova ou mainty), lugar de residência (“as pessoas do centro do país…”) e assim sucessivamente. Se eles estavam dialogando sobre temas como o fanafody ou a magia, referiam-se a si mesmos simplesmente como “malgaxe”, de maneira que neste contexto as diferenças sociais e geográficas eram basicamente irrelevantes.
Era compreensível que eles assim o fizessem, já que as ideias e práticas relacionadas ao fanafody eram, de fato, uniformes em toda a ilha. Mas isso levanta algumas questões espinhosas para os ontologistas. A magia e as práticas a ela associadas são geralmente tratadas como um fenômeno pan-malgaxe; se existe uma ontologia tácita que as anima, ela deveria abarcar toda a ilha. Por outro lado, as ideias sobre os ancestrais, por exemplo, variam consideravelmente de acordo com a região de Madagascar. Isto significaria, por acaso, que a realidade é estratificada? E se alguém que vive em Betafo estiver numa realidade diferente de alguém que mora em Tulear quando o assunto são os ancestrais, mas se encontrar na mesma realidade quando se refere ao fanafody? Se isso for correto, eu poderia presumir que, no concernente a uma terceira questão – a epidemiologia, por exemplo –, estes sujeitos estão na mesma realidade que os nova-iorquinos ou os londrinos?
Não se trata apenas de reflexões soltas. Estas questões são diretamente relevantes para pensar o conceito de fanafody, que também era utilizado para indicar o tipo de medicamento que poderia ser receitado numa clínica ou numa farmácia. É bastante comum justapor uma coisa considerada “malgaxe” com algo considerado “vazaha”, por exemplo – termo que podemos traduzir como “francês”, “com pinta de europeu” ou simplesmente “estrangeiro”. Existem maneiras malgaxe e vazaha para fazer qualquer tipo de atividade, desde tomar o café da manhã até engajar-se no debate político. Isto também é verdade para as práticas terapêuticas e de cura mágica. Mas devemos ressaltar que este hábito de misturar referências não é apenas produto do colonialismo. Madagascar foi, desde a sua fundação, um centro de comércio e migração. Portanto, há razões para crer que o hábito de sobrepor maneiras “malgaxe” e estrangeiras remete a épocas anteriores ao período colonial, chegando, talvez, até os primeiros tempos de ocupação humana (Graeber, 2013a) – ainda que, no passado, presumivelmente os estrangeiros típicos não eram vazaha, mas silamo (“muçulmanos”).
O que eu gostaria de sublinhar aqui é a completa impossibilidade de pensar o “poder mágico tal como os merina o concebem” – ou até mesmo como os malgaxe poderiam concebê-lo – se, para isso, imaginamos um tipo de bolha conceitual, no interior da qual tais ideias definiriam sua própria realidade. Fanafody sempre foi uma forma de engajamento com um mundo mais amplo. Isto ocorre, em parte, porque ele sempre foi encarado como algo malgaxe por excelência, definido em contraposição ao mundo exterior; mas também porque, apesar disso, incorporou continuamente técnicas, objetos e ideias estrangeiras. No século XVII, o fanafody parece ter assimilado, por exemplo, fragmentos da escrita árabe. Nos séculos XVIII e XIX, no auge do tráfico de escravos, os amuletos utilizados para proteção eram tipicamente compostos por dois elementos: madeiras raras e contas utilizadas no comércio ou, então, ornamentos de prata (estes últimos feitos da prata derretida do Táler de Maria Teresa ou de moedas similares a essa). Tanto as contas quanto a prata chegaram originalmente a Madagascar como dinheiro estrangeiro (Edmunds 1896; Bernard Thierry 1946; Bloch 1990; Graeber 1996: 141.).
Tal senso de confrontação dialógica, inerente à real constituição do fanafody, encontra-se igualmente refletido na maneira como as pessoas se referem aos temas que lhe concernem. As formas de se referir à magia – e, de acordo com vários relatos, isto sempre aconteceu[11] – estão marcadas por uma diversidade infinita de perspectivas frequentemente contraditórias, incluindo expressões dramáticas de ceticismo em relação à sua eficácia. Tais contradições não são incidentais. Pelo contrário, são constitutivas da natureza do próprio fanafody.
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Tal questão, por sua vez, leva ao ponto mais importante deste ensaio. Algum malgaxe realmente se oporia à afirmação de que o “Ravololona não pode evitar, de fato, que o granizo caia na plantação de alguém”? Tendo morado durante um ano numa comunidade que era protegida por um feitiço chamado Ravololona, na companhia de vizinhos que ainda hoje são protegidos por ele, eu posso assegurar ao leitor que as pessoas dizem coisas deste tipo o tempo todo. Claro que dependia de para quem tu dirigisses a pergunta. Vários habitantes de Betafo insistiam que o Ravololona não poderia evitar o granizo em nenhum tipo de circunstância. Tratar-se-ia simplesmente de uma fraude – portanto, para tratar de evitar o granizo, eles tinham seu próprio feitiço local, que pertencera a um astrólogo antigo e venerável, embora controverso, de nome Ratsizafy. Muitos deles tinham o cuidado de observar que havia outros feitiços capazes de impedir a queda do granizo. No entanto, várias pessoas também negavam a eficácia de quaisquer encantamentos. Ponderações sobre a potencial eficácia de um ou outro tipo de fanafody, ou mesmo quanto ao fanafody em geral, eram, de fato, tão comuns que eu poderia chamá-los de um modo popular de entretenimento – não tão popular, talvez, quanto os debates sobre dinheiro ou sobre os complexos relacionamentos poliamorosos, mas popular afinal. Em outras palavras, minha declaração não foi algum tipo de rejeição desmedida às concepções sustentadas uniformemente por um povo chamado “merina”. Ela foi, isto sim, uma intervenção numa conversa malgaxe em pleno desenvolvimento. Talvez minhas palavras tenham soado um pouco arrogantes porque eu me identifiquei tão intensamente com meus informantes que senti que poderia expressar-me da mesma maneira que qualquer um deles fazia.
Além do mais, a existência de tais ponderações sobre a eficácia do fanafody foi o ponto de partida para minha análise. Elas constituíam uma das coisas que mais me surpreenderam quando comecei o trabalho de campo; tratava-se de algo imprevisto que, de fato, abalou as suposições com as quais eu dera início à pesquisa. Fui à Madagascar esperando encontrar algo muito próximo a uma ontologia diferente, isto é, um conjunto de ideias fundamentalmente distintas sobre como o mundo funciona. O que eu encontrei, em vez disso, foram pessoas que admitiam não entenderem realmente o que ocorria em relação ao fanafody e que tinham, no que diz respeito a ele, posições amplamente diferentes e frequentemente contraditórias, apesar de todos concordarem que a maioria dos praticantes eram mentirosos, trapaceiros ou fraudulentos. Quando retornei do trabalho de campo, consultei colegas que passaram por situações semelhantes (nos Andes, nas Ilhas Andaman, em Papua Nova Guiné…) e descobri que tais sentimentos são, na verdade, bastante comuns. Meus colegas também confessaram que nunca souberam bem o que fazer com essas impressões. De fato, este é precisamente o aspecto das práticas mágicas que termina sendo descartado na maioria das vezes, como se carecesse de importância.
Quanto a mim, decidi levar a sério meus informantes e, fazendo isso, fui conduzido a repensar meus próprios pressupostos teóricos.
Como apontei na passagem citada por Viveiros de Castro, meu ensaio sobre o fetichismo é a extensão de um argumento anterior, desenvolvido no último capítulo do livro Toward an anthropological theory of value (2001)[12]. Certamente, é um pouco estranho citar a si mesmo, mas neste caso sinto que será necessário. Este é o início da cadeia de argumentos que levou às conclusões originalmente citadas por Viveiros de Castro:
Os antropólogos geralmente reconheceram a existência desse tipo de ceticismo – a aura de potencial desconfiança que sempre parece cercar aqueles fenômenos que ficaram conhecidos como “magia” –, mas apenas para imediatamente desconsiderá-lo como algo sem importância. Evans-Pritchard, por exemplo, notou que boa parte dos azande insistia que a maioria dos feiticeiros eram fraudulentos e que havia somente um punhado de “profissionais confiáveis”. “Assim, no caso de qualquer feiticeiro em particular, as pessoas nunca estão completamente seguras sobre sua fiabilidade” (1937: 276). Coisas similares foram relatadas sobre feiticeiros em praticamente todos os lugares. Mas a conclusão é sempre a mesma: desde que todos, ou quase todos, concordem que existam alguns praticantes legítimos, o ceticismo não é importante. A conclusão era a mesma em relação aos truques, ilusões e prestidigitações usados por performers mágicos como os xamãs ou os médiuns (que fingem sugar objetos do corpo das pessoas, forjam vozes, comem vidro…). Neste quesito, o texto clássico é “O feiticeiro e sua magia”, de Lévi-Strauss (1958). A análise do antropólogo francês destaca um jovem Kwakiutl que aprendeu técnicas xamânicas para poder denunciar a fraude dos seus praticantes, mas acabou se tornando um curandeiro muito famoso. A conclusão é sempre a mesma: se bem é verdade que os curandeiros dificilmente podem ajudar a curar alguém – e, mais do que isso, estão cientes do caráter ilusório de suas intervenções –, eles também creem que há uma ponta de verdade naquilo que fazem, pois, vez que outra, as curas de fato acontecem. Os truques, em si, não são o elemento significativo do ponto de vista da análise. Existem boas razões históricas para explicar por que os antropólogos tenderam a deixá-los num segundo plano – a existência dos missionários é apenas a mais óbvia delas. Mas, se pudéssemos mudar de perspectiva e considerar que o ceticismo é interessante em si mesmo? Isto é, e se pudéssemos tomar alguma atitude em relação aos feitiçeiros? Evans-Pritchard comenta que nas sessões de magia zande ninguém da audiência estava completamente seguro sobre se o curandeiro era ou não um charlatão. A mesma observação se aplica para o caso de Madagascar. As pessoas tendem a mudar de ideia o tempo todo sobre a confiabilidade de feiticeiros específicos. Consideremos o que isso significa. Curandeiros, genuínos ou não, são claramente pessoas poderosas e influentes. Sendo assim, qualquer um que assistir a uma performance estará ciente de que a pessoa à sua frente poderia ser alguém cujo poder baseia-se apenas na habilidade de convencer os demais do caráter extraordinário de seu próprio talento. E isso possivelmente abre caminho para alguns insights profundos sobre a natureza do poder social. (Graeber, 2001, p. 243-244)
Em outras palavras, longe de descartar de maneira arrogante o que meus informantes me comunicaram, estou tentando levar a sério o que eles disseram, mesmo quando suas afirmações geralmente não sejam consideradas importantes por outros etnógrafos.
Devo esclarecer que a afirmação de que a magia funciona apenas porque é capaz de convencer os demais sobre sua eficácia não foi algo que simplesmente extrapolei de dúvidas pontuais sobre feitiçeiros específicos.
A maioria das pessoas que conheci em Madagascar consideravam isso uma questão de senso comum: se uma pessoa realmente não acredita em magia, então não funciona com ela. Logo depois de minha chegada, ouvi uma história sobre um padre italiano que havia sido enviado à ilha para assumir uma paróquia. No seu primeiro dia no país, ele foi convidado para jantar na casa de uma abastada família malgaxe. No meio da refeição, todos desmaiaram repentinamente. Alguns minutos depois, dois ladrões entraram pela porta da frente, mas, percebendo que alguém ainda estava acordado, saíram correndo. Acontece que eles tinham colocado um ody na casa para que todos adormecessem às seis da tarde. No entanto, como o padre era um estrangeiro que não acreditava nesse tipo de bobagem, o feitiço não teve efeito sobre ele. Isso era de conhecimento comum. Muitas pessoas iam mais longe e afirmavam que, se alguém estivesse fazendo uma magia para te atacar e tu não soubesses disso, tal magia não funcionaria.
Na primeira vez que escutei esse tipo de afirmação, meus interlocutores eram pessoas relativamente bem educadas. Isto me levou a suspeitar de que elas estivessem apenas dizendo o que, supostamente, eu gostaria de ouvir. No fim das contas, elas descreviam exatamente a postura da maioria das pessoas nos Estados Unidos em relação à feitiçaria: se a magia funciona, deve-se puramente ao poder de sugestão que ela é capaz de sustentar. No entanto, com o passar do tempo, encontrei vários astrólogos e curandeiros que me disseram a mesma coisa; pessoas que não tiveram nenhuma escolarização formal e claramente não tinham nenhuma ideia do que os estadunidenses supostamente pensavam (na verdade, um deles estava convencido de que eu era africano). Dei-me conta de que praticamente qualquer pessoa concordaria com essa tese se ela fosse formulada de um modo abstrato. No geral, ao dialogar sobre poderes mágicos, meus interlocutores ofereciam todo o tipo de ressalvas – “sim, [a magia] era real, salvo, é claro, que tenha sido fruto de algo colocado na tua comida”. Ou salvo que fosse um daqueles feitiços de amor realmente poderosos. Ou salvo que…
O bizarro é que, na prática, o princípio de que a magia só funciona pelo seu poder de persuasão era contradito completamente. Todo mundo concordava com o princípio em questão, mas ninguém agia como se ele fosse verdade. No geral, a atitude esperada dos curandeiros era a seguinte: em primeiro lugar, eles deveriam dizer que a doença de seu paciente era fruto da magia utilizada por alguém em particular; em segundo lugar, o nome e os métodos do perpetrador da magia deveriam ser revelados. Obviamente, se a eficácia do feitiço estivesse condicionada à consciência da vítima, então o procedimento do curandeiro – tal como acabei descrevê-lo – não faria nenhum sentido (já que, uma vez percebido como real, o feitiço tornar-se-ia eficaz e potencialmente prejudicial). De fato, a teoria contradizia a prática em quase todos os níveis. Mas se ninguém agia como se a teoria fosse verdade, então por que ela ainda existia? (Graeber 2001: 244–45)
Como já mencionei, as pessoas discutiam e argumentavam sobre estes assuntos o tempo todo – não apenas no tocante ao fanafody, mas também no concernente a qualquer tema relacionado com espíritos, com ancestrais ou com a categoria geral das coisas que operam através de meios imperceptíveis (zavatra manan-kasina). Foi precisamente este tipo de conversas que me levou a desenvolver a noção do paradoxo da criatividade e, em consequência, da política[13].
Tais conversas supunham infinitas sutilezas. Seja como for, falando mais amplamente, elas tendiam a tomar uma entre duas direções possíveis. Ou o sujeito iniciava o diálogo assegurando que os poderes mágicos de fato existiam, para logo em seguida ponderar que a maioria dos exemplos concretos que ele conhecia eram, na verdade, simples imposturas. Ou, ao contrário, o sujeito começava assegurando que o poder mágico tinha uma natureza puramente social e, em seguida, ponderava que existiam certos tipos de fanafody que realmente pareciam funcionar independentemente das crenças individuais e que, inclusive, em alguns casos, eles foram usados para punir horrivelmente os céticos que duvidaram do seu poder. Para ambos os casos, eu conclui que “existe uma mesma relação incômoda entre duas premissas que são claramente contraditórias, mesmo que na prática elas pareçam depender uma da outra” (2001, p. 245). Por exemplo, a premissa de que a magia negativa só afeta quem nela acredita pode apenas ser verdade se a maioria das pessoas pensarem que os feitiços não funcionam – dado que obviamente ninguém deseja ser prejudicado por um feitiço malévolo. Da mesma forma, a premissa oposta, de que os espíritos punirão aqueles que zombam deles, obviamente depende da existência dos céticos.
A maioria das pessoas conhecia bem esses paradoxos e brincava com eles o tempo todo. Dois irmãos adolescentes, Nivo e Narcisse, cujos pais haviam se mudado da cidade para o interior, me explicaram uma vez que, assim que chegaram à aldeia, seus vizinhos começaram a usar feitiços nocivos para tentar fazer com que eles adoecessem, pois só assim eles seriam forçados a se submeter aos curandeiros locais que também eram figuras de autoridade política. “Claro que não funcionou comigo”, assegurou-me Narcisse, “eu não acredito nesse tipo de bobagem”.
Sua irmã Nivo parecia ligeiramente aborrecida. “Bom, eu também pensei que não acreditava nisso”, ela disse, “mas acho que agora devo acreditar, porque desde que cheguei, eu fico doente o tempo todo”.
A maioria dos etnógrafos simplesmente ignorou tais enigmas. Na melhor das hipóteses, o discurso cético foi tratado como algo estranho, estrangeiro, produto da educação “ocidental” ou, ainda, como algum resquício inútil e superficial que recobria as crenças reais (isto é, tudo aquilo que parecia afrontar o “senso comum ocidental”). Porém, neste caso, a tensão entre duas perspectivas contraditórias é precisamente algo que constitui o universo fanafody e tudo que está associado a ele. Além disso – e este é um argumento importante que infelizmente não poderei desenvolver aqui –, o poder político foi abordado nos rituais merina dos séculos XVIII e XIX exatamente da mesma maneira. O poderoso ody que protegia o reino era igualmente paradoxal: tratava-se de feitiços criados em rituais que postulavam, ao mesmo tempo, sua condição de produtos de um acordo coletivo e seu estatuto de poderes autônomos por direito próprio[14]. Os reis e seu domínio também eram explicados da mesma forma. A monarquia merina foi tratada efetivamente como um tipo de ody. Como tal, ela era um poder criado (e continuamente recriado) pelo povo através de atos conscientes de acordo[15] e, simultaneamente, algo anterior à própria existência do povo: um poder estranho e incompreensível.
Este tipo de poder acarretou intermináveis argumentos sem solução: por exemplo, mitos que afirmavam que a dinastia governante descendia do céu eram sempre equilibrados por provérbios como o seguinte: “os reis não desceram realmente do céu” (Graeber 2001: 237–38). E aqui, novamente, os paradoxos não são incidentais, mas sim constitutivos do objeto; mesmo os mitos malgaxes sobre as origens da vida e da morte, os quais com certeza são encarados como portadores de verdades importantes sobre a condição humana, tendem a finalizar com o bordão “não sou eu quem mente; essas mentiras vêm dos tempos antigos”.
Nesta altura, é claro, os ouTrOs ainda poderiam objetar que minhas afirmações são verdadeiras apenas em certo nível da prática. Posso imaginá-los levantando a seguinte observação: “tudo isso que tu dizes não supõe, nunca, a possível existência de certas formas de poder fundamentalmente diferentes daquelas autorizadas pelo senso comum do próprio etnógrafo e, neste sentido, imanentes a uma ontologia tácita irredutível à nossa”.
Por outro lado, eu retrucaria que minhas reflexões giram em torno do real significado da noção de “ontologia”, que, a propósito, não é auto-evidente. Muitos antropólogos passaram a usá-la de forma vaga, como se não passasse de um sinônimo para “cultura” ou “cosmologia”. Mas os OuTros têm algo mais específico em mente. Antes de responder às hipotéticas objeções de minha contra-parte “ontológica”, será necessário investigar mais profundamente o que a própria palavra “ontologia” realmente quer dizer.
Ontologia, epistemologia e outros termos em debate
Uma coisa está bastante clara: quando os proponentes da VO em antropologia usam a palavra “ontologia”, eles se referem a algo muito diferente daquilo que os filósofos tradicionalmente denominam com esse termo. “Ontologia”, assim como “epistemologia” ou “semiologia”, são palavras de cunhagem[16] relativamente recente, mesmo que as divisões conceituais que elas representam remontem às origens da filosofia grega. Recorrendo a uma prática mnemônica útil, eu poderia recuperar três premissas levantadas pelo sofista Gorgias de Leontini, um contemporâneo de Sócrates. Tais premissas compreendem o conjunto de sua filosofia:
- Nada existe
- Se existe, não pode ser conhecido
- Se pode ser conhecido, não pode ser comunicado[17].
À primeira vista, estas três premissas parecem negar a própria existência de (1) ontologia; (2) epistemologia; (3) semiologia – ou, como a maioria prefere dizer: semiótica. Contudo, este não é o caso. Isto porque “ontologia” não é uma palavra que se refere a “ser”, “forma de ser” ou “modo de existência”. Ela se refere ao discurso (logos) sobre a natureza do ser (ou, alternativamente, sobre sua essência ou sobre o ser como tal ou em si mesmo ou sobre a matéria prima fundante da realidade… a única palavra realmente importante neste primeiro momento é “sobre”). Portanto, “nada existe” é um postulado ontológico. De forma similar, “se existe, não pode ser conhecido” é um postulado epistemológico – um postulado minimal, é verdade: a epistemologia não é conhecimento do mundo, mas sim um discurso concernente à natureza e a possibilidade do conhecimento sobre o mundo. (Notemos, também, que tal conhecimento pressupõe – e Gorgias era consciente disso – a existência de um mundo sobre o qual o conhecimento pode se dar. Não se pode ter conhecimento sobre algo que não está ali, salvo o conhecimento de que esse algo não é. Gorgias apenas acrescenta que tampouco podemos ter conhecimento de algo que está ali – o que não quer dizer que ali não exista nada.) Finalmente, semiótica não é comunicação, mas sim o estudo da comunicação ou, mais amplamente, um discurso sobre a natureza e a possibilidade da comunicação[18]; discurso que presume, portanto, que há alguma coisa para ser comunicada.
Em contraste, quando os OuTros empregam essas palavras, eles parecem fazer referência a algo muito diferente. Como aproximação inicial, poderíamos dizer que, para eles, ontologia corresponde a “forma de ser” ou a “modo de ser”. Epistemologia se refere a “forma ou modo de conhecer” e semiótica – se é que o termo ainda é usado – alude a “forma ou modo de comunicar”.
Ora, não há nada de errado com usar palavras de um jeito novo, mas se fazemos isso e não tornamos claro como o novo uso que propomos difere dos usos mais tradicionais, podemos causar confusão.
Muitos dos que são agora considerados os textos fundadores da VO parecem fazer o melhor possível para evitar tal confusão. “Dado que esses termos – “epistemologia” e “ontologia” – são usados e abusados no discurso atual”, observam Henare, Holbraad e Wastel naquele que é geralmente considerado o texto fundador mais importante de todos, a introdução de Thinking through things (2006: 8), “é importante ser bastante explícito sobre o tipo de sentido que queremos atribuir-lhes em nosso argumento”. Contudo, não fica claro se eles tiveram sucesso em sua tarefa. Seria de grande ajuda, penso eu, tomar esse ensaio em particular para evidenciar o tipo de deslizamentos aos quais referidos termos são submetidos.
O argumento central dos autores é que as décadas precedentes presenciaram uma ampla – e até agora não reconhecida – mudança (ou virada) na teoria antropológica “de questões de conhecimento e epistemologia para questões de ontologia” (2006: 8)[19]. A antropologia de antes, dizem os autores, assim como boa parte das ciências sociais, viu a si mesma como uma forma de conhecimento e, consequentemente, concebeu sua missão como uma questão de entendimento e relato das formas de conhecimento das pessoas estudadas (suas culturas, sistemas simbólicos ou visões de mundo). Na prática, isto tendia a significar a imposição de algum modelo teórico (estruturalismo, hermenêutica, materialismo dialético…) como marco de análise para o entendimento do que Malinowski originalmente chamou de “ponto de vista dos nativos”. Contudo, tornou-se cada vez mais claro que isso era uma armadilha. Apenas se sairmos da “orientação epistemológica” em direção a uma “orientação ontológica” nós conseguiremos permitir que nossos informantes coloquem os termos do debate, ainda que isso signifique “perturbar” nossas próprias premissas teóricas a respeito do que é possível dizer a respeito deles.
Este é um objetivo admirável e certamente a ideia de que uma abordagem ontológica poderia significar levar nossos informantes mais a sério enquanto interlocutores constitui o núcleo deste apelo. Por enquanto, contudo, quero destinar uma atenção prioritária ao que está acontecendo com os termos filosóficos. Os autores em questão citam, como inspiração, uma série de conferências (hoje famosas) pronunciadas uma década atrás, em Cambridge, por Viveiros de Castro:
A antropologia parece crer que sua tarefa principal é explicar como ela chega a conhecer (a representar) seu objeto – um objeto também definido como conhecimento (ou representação). É possível conhecê-lo? É decente conhecê-lo? Podemos realmente conhecê-lo ou não podemos fazer mais do que olhar para nós mesmos num espelho? (Viveiros de Castro, 1998, p. 92)
Esta questão tão familiar – “como posso conhecer o Outro?” – é absolutamente epistemológica no sentido filosófico do termo. Nossos autores citam a conclusão de Viveiros de Castro, que evoca uma armadilha criada pelo pensamento modernista:
A ruptura cartesiana com a escolástica medieval produziu uma simplificação radical da nossa ontologia ao postular apenas dois princípios ou substâncias: pensamento limitado e matéria extensa. Tais simplificações estão ainda entre nós. A modernidade começou com a conversão massiva de questões ontológicas em questões epistemológicas – ou seja, questões de representação. Uma conversão provocada pelo fato de que todos os modos de ser não assimiláveis à obstinada “matéria” foram engolidos pelo “pensamento”. Em consequência, a simplificação da ontologia conduziu a uma enorme complicação da epistemologia. Depois que os objetos ou coisas foram pacificados, relegados a uma “Natureza” exterior, silenciosa e uniforme, os sujeitos começaram a proliferar e a falar infinitamente: Egos transcendentais, entendimentos legislativos, filosofias da linguagem, teorias da mente, representações sociais, lógica do significante, teias de significação, práticas discursivas, políticas do conhecimento – chame como quiser. (ibid.)
Parece-me que as avaliações de Viveiros de Castro são substancialmente corretas. Claro que a divisão alma/corpo, mente/matéria dificilmente foi criação de Descartes. Ela remonta pelo menos a Pitágoras. No entanto, Descartes introduziu uma versão muito mais radical da dicotomia, em boa medida graças à eliminação da velha categoria estóica-neoplatônica de imaginação que, por sua vez, serviu aos escolásticos como um intermediário quase-material entre os pólos dicotômicos[20]. Como resultado, a filosofia se afastou de questões sobre a natureza do mundo, que foram sendo progressivamente deixadas à ciência, para se ocupar de questões sobre a possibilidade do conhecimento. O ceticismo humeano e a resposta apriorística de Kant foram, obviamente, pontos de inflexão fundamentais a esse respeito.
Viveiros de Castro argumenta que, como resultado, as ciências sociais tenderam a focalizar em questões da mente em detrimento do corpo; do intelecto em detrimento da realidade vivida. Este é um argumento difícil de sustentar (existe uma quantidade enorme de ciência social resolutamente materialista), mas certamente há correntes fortes que apontam em tal direção. No entanto, o que eu gostaria de enfatizar aqui é o seguinte: na medida em que Viveiros de Castro desenvolve seu argumento, podemos observar claramente que o termo “epistemologia” perde seu clássico sentido filosófico (“questões sobre a natureza ou possibilidade do conhecimento”) e passa a denotar simplesmente “conhecimento”. O próprio estruturalismo, para tomar um exemplo arbitrário, dificilmente poderia ser encarado como uma forma de “epistemologia”. Ele poderia ter implicado uma epistemologia, uma teoria sobre a natureza do conhecimento, mas quando Claude Lévi-Strauss (1958) propôs uma análise estrutural do mito de Édipo como uma história sobre pés e olhos, ele não estava, em nenhum sentido, elaborando uma tal teoria. Estava apenas aplicando-a e, desta forma, lançando mão daquele tipo de ciência social que costumamos exercer quando assumimos que a teoria é verdadeira de antemão[21].
Henare, Holbraad e Wastel (2006, p. 9) irão argumentar que:
sempre se assumiu que a antropologia era uma episteme – de fato, a episteme das outras epistemes, que nós chamamos de culturas (cf. Wagner 1981; Strathern 1990). O caráter inveterado desse pressuposto deve-se ao fato de que ele é o corolário direto de “nossa” ontologia – isto é, a ontologia dos euro-americanos modernos.
E o problema com tudo isso é que, na medida em que a ontologia euro-americana assume que existe um mundo real, uma natureza – aquela revelada pela ciência ocidental –, ela também assume que a diferença pode ser apenas matéria de perspectivas diferentes ou diferentes formas de perceber, conhecer ou representar uma realidade única. Isto leva à bifurcação das ciências. A ciência “Natural” está dedicada a revelar as leis uniformes que governam uma realidade indiferenciada; a ciência “social” é o estudo das distintas formas em que pessoas diferentes representam a realidade.
Essas formulações envolvem um curioso apagamento do domínio da ação. Certamente as ciências sociais não estudam apenas como as pessoas conhecem, percebem ou representam o mundo; elas também estudam como as pessoas interagem com ele, modelam-no e são remodeladas por ele – isto para não mencionar como elas atuam umas sobre as outras. Mas apresentar as coisas desse modo poderia tornar muito mais difícil a manutenção da clareza conceitual do argumento[22]. Em vez disso, os autores concluem que não se trata de examinar como os projetos humanos de ação problematizam essas divisões (corpo/mente, natureza/cultura, material/ideal, etc.), mas sim de repensar a própria ideia de que se possa falar de um mundo natural único e indiferenciado. Nossa insistência na unidade da natureza (e, por conseguinte, como corolário, nossa premissa de que toda a diferença pode apenas ser cultural) é, dizem os autores, produto de nossa própria ontologia ocidental dualista. Nós não deveríamos impô-la aos outros. Em presença da alteridade genuína nós devemos falar não de pessoas que têm crenças radicalmente diferentes sobre – ou percepções de – um mundo único compartilhado, mas sim de pessoas que literalmente habitam mundos diferentes. Em suma, devemos aceitar a existência de “múltiplas ontologias”.
Notemos que no transcorrer desse argumento o significado de “ontologia” sofreu mudanças profundas. No final das contas, se “ontologia” significa simplesmente um discurso sobre “a natureza do ser em si mesmo”, nós dificilmente poderíamos afirmar que a filosofia ocidental é particularmente monolítica: a maioria dos filósofos considerados “grandes” o são porque eles apresentaram uma ontologia diferente. Mesmo os OuTros obtêm grande parte de sua concepção sobre o que poderia ser uma ontologia não dualista dos trabalhos de Gilles Deleuze que, a propósito, nunca disse estar fazendo outra coisa mais além de escrever sua própria síntese criativa de ideias derivadas de filósofos pós-cartesianos como Leibniz, Spinoza, Nietzsche, Bergson e Whitehead. Então, “ontologia” deixa de ser uma forma explícita de discurso filosófico para passar a se referir a um conjunto amplamente tácito de premissas subjacentes à prática das ciências naturais e sociais (as quais tendem a permanecer insistentemente fixas, o que quer que os filósofos digam a seu respeito), tornando-se, assim, pressupostos tácitos subjacentes a qualquer conjunto de práticas ou modos de ser de qualquer tipo.
O que acontece, então, com as velhas concepções filosóficas – vamos chamá-las de Ontologia 1, Epistemologia 1 e Semiótica 1 para diferenciá-las dos novos usos preconizados pela virada ontológica, aos quais nos referiremos como Ontologia 2 e Epistemologia 2 – sob esta nova abordagem? Bem, se Epistemologia 2 se refere apenas, como Henare, Holbraad e Wastel (2006, p. 9) propõem, a “formulações sistemáticas do conhecimento”, disso depreende-se que todos os ramos da filosofia, incluindo Ontologia 1, Epistemologia 1 e Semiótica 1, são simplesmente expressões da Epistemologia 2 – e, portanto, consistem, precisamente, naquilo que os pensadores da virada ontológica nos convidam a deixar para trás. Neste caso, a Ontologia 2 não deveria se referir (por processo de eliminação) às premissas tácitas sobre a natureza do ser “em si mesmo” e às formas de ação e modos de experiência que elas tornam possíveis (ou, possivelmente, às teorias explícitas dos antropólogos sobre tais premissas tácitas)?
Este parece ser o caso. Mas eis que surge outro problema: sendo assim, o que “em si mesmo” poderia significar? Consideremos, aqui, a seguinte definição que, devo enfatizar, vem de alguém que eu considero ser um pensador invulgarmente sutil e filosoficamente sofisticado da virada ontológica: “Ontologia – a investigação e teorização das diversas experiências e entendimentos da natureza do ser em si mesmo” (Scott 2013: 859). Destrinchemos esta definição. Pois bem: ontologia[23] começa como um modo de produção teórica acadêmica, uma forma de discurso, mas seu objeto não é o discurso (dado que isso seria, presumivelmente, Epistemologia 2), mas “experiências e entendimentos da natureza do ser em si mesmo”. “Entendimento” soa um tanto como conhecimento, mas vamos dizer, por uma questão de argumento, que estamos falando dos entendimentos tácitos subjacentes a certas formas de “experiência”. Sem dúvidas isso escapa da acusação de Epistemologia 2. Mas então aparece outra questão: como exatamente nós poderíamos ter uma experiência da “natureza do ser em si mesmo”? Podemos ter certamente a experiência de manifestações específicas do ser (palitos de dente, oceanos, música ruim vindo de uma festa no andar de cima…). Contudo, normalmente nós chamamos isso de “experiência”. Talvez uma experiência mística, como a que poderia ter tido Jalal al-Din al-Rumi ou Meister Eckhart, pudesse ser qualificada como uma experiência da “natureza do próprio ser”. Contudo, presumivelmente, este não é o tipo de coisa sobre o qual os autores estão falando. Neste caso, seu argumento só faz sentido se “o ser em si mesmo” for simplesmente qualquer “entendimento” que as pessoas possam dizer que têm dele. Sendo assim, a expressão “em si mesmo” parece sinalizar, precisamente, um objeto antropológico muito familiar, a saber: as suposições tácitas sobre a natureza do tempo, do espaço, da ação, da personalidade e por aí vai. Suposições estas que fundamentam o que costumava ser chamado de um universo cultural particular – só que agora construído como um “como se”, ou seja, o tipo de Ontologia 1 que nós imaginamos que as pessoas estudadas construiriam se elas fossem aquela espécie de sujeito que investe seu tempo em filosofia especulativa.
Sendo assim, o significado de “ontologia” pouco mudou desde que Irving Hallowell introduziu pela primeira vez a palavra em seu ensaio “Objiway ontology, behavior, and world-view”, em 1960[24]. O que mudou não foi a busca por suposições subjacentes, mas sim o significado mais amplo que lhes é atribuído. Os OuTros estão argumentando que – a menos que eu os esteja entendendo muito mal –, em presença de tais suposições ou, como eles dizem, “concepções” que são suficientemente estranhas às do próprio etnógrafo (por exemplo, que as pedras são pessoas ou que pó é poder), o etnógrafo deve agir como se essas concepções fossem – para os interlocutores e para qualquer pessoa que supostamente compartilha sua Ontologia 2 – constitutivas da realidade e, portanto, da natureza em si mesma.
Esse “como se” é crucial. Dizer que existem “muitas naturezas” pode parecer uma reivindicação bastante radical. Mas ninguém está na verdade sugerindo que existem lugares do mundo onde a água corre para cima, onde existem macacos voadores de três cabeças ou onde o número Pi é calculado a 3,15. Eles não estão realmente sugerindo que há lugares nos quais as antas moram em aldeias – ou seja, eles não estão dizendo que faria sentido afirmar que as antas moram em aldeias mesmo num mundo onde não houvesse ameríndios que dissessem isso. Cada natureza diferente pode apenas existir em relação a um grupo específico de seres humanos que compartilha a mesma Ontologia 2. Pelo menos isso evita que a formulação soe flagrantemente absurda. Mas mesmo assim, a linguagem parece ir e vir entre o subjuntivo “como se” e a simples afirmação. Eis que encontramos Henare, Holbraad e Wastel (2006, p. 14, em itálico no original) defendendo seu argumento de que, digamos, os adivinhos Ifá cubanos existem num “mundo” diferente contra uma objeção que seria óbvia:
Se as coisas realmente são diferentes como nós sugerimos, então por que elas parecem as mesmas? Se “mundos diferentes” residem em coisas, então como poderíamos tê-los perdido por tanto tempo? Por que, quando nós olhamos os pós dos adivinhos cubanos, vemos apenas pó? … [Porque] a própria noção de percepção simplesmente reitera aquela distinção na qual os “mundos diferentes” colapsam. A questão, em se tratando de mundos diferentes, é que eles não têm como serem “vistos” num sentido visualista. Eles são, por assim dizer, a-visíveis. Em outras palavras, colapsar a distinção entre conceitos e coisas (aparência e realidade) nos obriga a conceber um modo completamente diferente de revelação.
À primeira vista isto parece não fazer sentido algum. Se dissolvermos a distinção entre aparência e realidade como se fosse um falso dualismo cartesiano, isso não equivaleria a dizer que as coisas são o que parecem ser e, portanto, que as coisas que possuem a mesma aparência são iguais? Mas o que os autores estão dizendo é, na verdade, muito diferente: para eles nós não deveríamos prestar muita atenção no que as coisas parecem ser, mas, em vez disso, deveríamos ouvir o que as pessoas dizem. Mais do que isso, declarações [autoritativas] devem ser tratadas como janelas para os “conceitos” e os conceitos, por sua vez, devem ser tratados – mediante uma espécie de “construtivismo radical” – como se fossem, eles próprios, realidades com o mesmo estatuto ontológico das “coisas” ou, de fato, como constitutivos do próprio mundo[25].
A “virada ontológica” envolve não apenas o abandono do projeto da Ontologia 1, mas também a adoção de uma ontologia tácita que parece indistinguível do idealismo filosófico clássico[26]. Ideias geram realidades. Podemos ir ainda mais longe. O que eles parecem propor é o abandono de todo o projeto da filosofia (ou, pelo menos, da filosofia tal como ela foi encarada historicamente na Europa, na Índia ou no Mundo Islâmico). A ciência, por outro lado, seria preservada, mas como uma propriedade especial dos “ocidentais” ou “euro-americanos”[27] – o que, se fôssemos levar a sério, equivaleria a um dos maiores atos de roubo intelectual da história humana, já que, no final das contas, muito do que hoje subjaz àquilo que chamamos de “ciência ocidental” foi realmente desenvolvido em lugares como Pérsia, Bengala, China e no – ouso dizer? – mundo real. Ao fim e ao cabo, a maioria das pesquisas científicas não está sendo desenvolvida por euro-americanos.
* * *
Sei que estou sendo um pouco injusto. As propostas que venho discutindo não são feitas para serem realmente encaradas de um modo programático. Mais do que qualquer coisa, a virada ontológica é um marco teórico elaborado para abrir espaço a uma forma muito particular de prática etnográfica. E esta forma de prática não deixa de ter seus méritos. Tendo falado muito sobre seus problemas críticos, deixem-me terminar, então, com uma observação positiva. Penso que a força real da virada ontológica reside no fato de que ela encoraja o que poderia ser chamado de uma postura de respeito criativo com relação ao objeto da pesquisa etnográfica. Com isso eu quero dizer, em primeiro lugar, que a virada ontológica parte do pressuposto de que, dado que os mundos que estudamos não podem ser inteiramente conhecidos, nós estamos, na verdade, em presença da – como coloca Viveiros de Castro (2015, p.13), tomando emprestada a linguagem de Deleuze – “possibilidade, da ameaça ou promessa de outro mundo contido na ‘face/olhar do outro’”, uma possibilidade que pode apenas ser realizada através do etnógrafo, mesmo que este, ao tentar descrever – e não explicar – esse outro mundo, inevitavelmente traia a promessa ou, nas palavras de Viveiros de Castro, “dissipe sua estrutura” pelo menos em alguma medida. Contudo, a despeito da inevitabilidade da traição, a tarefa do etnógrafo é manter viva essa possibilidade. A alteridade radical não pode nunca ser contida por nossas descrições, o argumento avança e nós não podemos compreendê-lo através do raciocínio dedutivo; em vez disso, a tarefa do etnógrafo é um projeto criativo, experimental e inclusive poético – uma tentativa de dar vida a uma realidade estranha que perturba nossos pressupostos básicos sobre o que poderia existir. Se nós estamos diante de uma guerra, trata-se de uma guerra que o etnógrafo nunca deve vencer.
E se o mundo existir, mas nós simplesmente não pudermos provar?
Se o ponto forte da virada ontológica é sua disposição de abraçar os limites do conhecimento humano (como uma forma de Epistemologia 1), sua grande fraqueza, pelo menos a meu ver, é que ela não leva este princípio longe o suficiente. A alteridade radical se aplica apenas às relações entre mundos culturais. Não há nenhum reconhecimento de que as pessoas que existem dentro de outras Ontologias 2 tenham qualquer problema para entender umas às outras e muito menos o mundo ao seu redor. Em vez disso, por respeito a sua alteridade, estamos obrigados a agir como se o seu comando sobre o ambiente fosse tão absoluto a ponto de não haver diferença entre suas ideias sobre, digamos, as árvores, e as árvores em si mesmas.
Parece-me que ao fazê-lo, principalmente quando tal atitude se torna um imperativo ético, a virada ontológica nos impossibilita de conhecer uma das coisas mais importantes que os seres humanos realmente têm em comum: o fato de que todos nós temos que enfrentar, de uma forma ou de outra, aquilo que não podemos conhecer.
Em termos filosóficos, o que a virada ontológica propõe é simplesmente uma variação antropológica do método transcendental, um exercício que se estabelece para deduzir as “condições de possibilidade” da experiência humana: essencialmente, trata-se de perguntar sobre o que deveria ser verdade para que a experiência seja possível[28]. Immanuel Kant usou o método transcendental para produzir sua lista de categorias conceituais apriorísticas do pensamento (a oposição entre unidade e pluralidade; a noção de causa e efeito, etc.) conjuntamente com alguns enquadramentos básicos como a noção de tempo enquanto relação entre passado, presente e futuro[29]. Kant argumentou que nada disso poderia ser derivado da experiência, uma vez que já deveria estar na mente para que pudéssemos experienciar qualquer coisa da forma como experienciamos. Para Kant não se tratava, então, de categorias ontológicas. Ele rejeitou a própria possibilidade da Ontologia 1, pois não acreditava que pudéssemos falar algo sobre a natureza das coisas em si mesmas.
Sempre houve uma tensão no tipo de antropologia que tentou aplicar uma análise similar para formas particulares da experiência social ou cultural. Um tipo de antropologia que procurou encontrar categorias culturais utilizando a mesma abordagem usada por Kant para as categorias conceituais. No final das contas, o procedimento kantiano está muito próximo daquilo que os etnógrafos invariavelmente fazem – ou seja, perguntar sobre “o que as pessoas devem pensar de forma que todas as suas declarações sejam verdade”. Isto leva os antropólogos a confundirem frequentemente elementos diferentes, porque categorias kantianas e categorias culturais não são, de forma alguma, a mesma coisa ou o mesmo tipo de coisa. Um típico exemplo é o ensaio de Mauss e Durkheim intitulado Primitive classification ([1903] 1963; cf. Schmaus, 2004), no qual se argumenta que as categorias kantianas seriam melhor interpretadas não como anteriores a experiência, mas como produtos da organização social e, portanto, variáveis em diferentes sociedades organizadas – misturando, neste caso, o arranjo do tempo numa sequência particular (por exemplo, verão, outono, inverno) com a própria noção de que deve ser possível atribuir a qualquer coisa uma sequência linear de certo tipo[30]. Este é, obviamente, um erro básico de categoria, como têm apontado gerações de estudantes do primeiro ano da graduação forçados a ler referido texto. No entanto, a tentação de formular argumentos similares nunca parece se dissipar totalmente. A virada ontológica, nesta perspectiva, pode ser considerada uma radicalização extrema de tal abordagem: uma radicalização que sugere que a realidade é cognoscível dado que os conceitos são realidade. Feita esta afirmação, a Virada Ontológica desdobra um modo mais elaborado de argumentação transcendental: em vez de proceder diretamente da experiência em direção ao conceito, ela toma certos tipos de afirmações verbais (“pó é poder”) e propõe que empreguemos o método transcendental para derivar conceitos dessas afirmações (certo tipo de tempo, certo modo de causalidade); conceitos que devem ser tratados como se fossem constitutivos não apenas da experiência, mas também da realidade em si mesma[31].
Em outras palavras, não se trata apenas de idealismo – trata-se da forma mais extrema de idealismo que poderia existir.
* * *
É possível, contudo, aplicar a mesma forma de método transcendental na direção oposta. Aplicá-la aos problemas de Ontologia 1, ou seja, às questões concernentes à natureza da realidade em si mesma. Esta é a abordagem adotada por Roy Bhaskar e outros vinculados à tradição do Realismo Crítico (Cf.: Bhaskar 1975, 1979, 1986, 1989, 1994; Archer, Bhaskar, Collier, Lawson e Norrie 1998; Hartwig 2007; Sayer 2011)[32]. A posição filosófica de Bhaskar é demasiado complexa para ser resumida com algum detalhamento, mas ela se estabelece a partir da mesma observação de Viveiros de Castro: desde Descartes, a filosofia ocidental deslocou-se das questões de ontologia em direção às questões de epistemologia. Mas os caminhos se bifurcam quando Bhaskar acrescenta o seguinte: esse deslocamento tendeu a confundir as duas coisas. O resultado é o que ele chama de “a falácia epistêmica”: a questão “o mundo existe?” veio a ser tratada como indistinguível da pergunta sobre “como eu posso provar que o mundo existe”, ou ainda, “me é possível ter um conhecimento definitivo desse mundo?”. Isto implica uma premissa falsa que poderíamos sintetizar assim: se o mundo existe, então deveria ser possível ter dele um conhecimento absoluto e compreensivo. Não existe razão para assumir essa premissa. Não há razão intrínseca para pensar que não poderia haver um mundo configurado de tal forma que os filósofos que nele vivem não pudessem oferecer a prova absoluta de sua existência; e quando se trata de conhecimento absoluto e abrangente, a premissa parece não apenas estar errada, mas também atrasada. Faz muito mais sentido definir a “realidade” como precisamente aquilo que nós nunca conheceremos completamente; aquilo que nunca será inteiramente englobado em nossas descrições teóricas. As únicas coisas sobre as quais podemos ter conhecimento absoluto e abrangente são as coisas que nós fazemos.
Bhaskar aplica o método transcendental para indagar não apenas sobre as condições de possibilidade da ação e da experiência cotidiana, mas, acima de tudo, para indagar sobre as condições de possibilidade da ciência contemporânea. Aqui, ele enfoca a prática, perguntando não apenas por que os experimentos científicos são possíveis (por que é possível gerar situações com resultados regularmente previsíveis?), mas também por que eles são necessários (por que não é possível ter conhecimento preditivo dos eventos a menos que tenhamos devotado um enorme trabalho em criar essas situações controladas?). Para responder estas perguntas, ele propõe uma “ontologia profunda” que identifica a realidade última como “mecanismos” e “tendências” que operam em séries de níveis emergentes de complexidade. Como esses mecanismos irão interagir, fora do contexto dos experimentos científicos, é algo inerentemente imprevisível. Isto é verdade, segundo o Realismo Crítico, por duas razões: em parte, porque é impossível saber como as tendências (“leis”) operantes em diferentes níveis emergentes de realidade irão afetar umas as outras em situações de sistema aberto (“mundo real”); em parte, também, porque em cada um desses níveis emergentes, começando pelo nível subatômico, a liberdade é inerente à natureza do universo em si mesmo.
Os realistas críticos argumentam – de forma convincente, a meu ver – que a maioria das posições filosóficas contemporâneas são simples variações da falácia epistêmica. Para tomar um exemplo particularmente notável: tanto os positivistas como os pós-estruturalistas tendem a estar de acordo em que, se houvesse um mundo real independente do sujeito, seria possível (pelo menos em princípio) que o sujeito tivesse dele um conhecimento absoluto e abrangente. Os positivistas dizem que tal conhecimento é possível; os pós-estruturalistas, pelo menos na maioria dos casos, dizem que sendo tal conhecimento impossível, devemos concluir que não há nenhuma realidade independente.
Aqui eu retorno sobre o elemento final da crítica desenvolvida por Viveiros de Castro. Para ele haveria uma contradição entre minha orientação política e meu marco teórico:
como podemos ver, nem todos os anarquistas políticos aceitam a anarquia ontológica, i.e. a ideia de que o único significado político viável para ontologia em nosso tempo depende de aceitar a alteridade e o equívoco como “insubsumíveis” a qualquer ponto de vista transcendente (a própria ideia de um ponto de vista transcendente é um oxímoro, o que não impediu que ele fosse postulado por algumas ontologias). (Viveiros de Castro 2015: 10; grifado no original)
A primeira referência se dirige claramente a mim, dado que, como Viveiros de Castro sugere em seguida, eu estou seduzido pelo “ponto de vista transcendental” quando escrevo que o feitiço Ravololona não pode realmente deter a chuva de granizo. Seria muito melhor adotar – observa ele – o que o ensaísta anarquista Peter Lamborn Wilson chamou de “anarquia ontológica” e reconhecer que qualquer conhecimento privilegiado e, portanto, perspectiva moral, é impossível. Neste contexto, é interessante observar que a “anarquia ontológica” é uma posição que, até onde eu sei, Wilson não desenvolve nos trabalhos que ele publica com nome próprio, mas unicamente naqueles escritos sob o pseudônimo de um poeta louco chamado Hakim Bey (1985, 1994). Eis a descrição oferecida por Bey da “anarquia ontológica numa casca de noz”:
Dado que absolutamente nada pode ser predicado com alguma certeza real como sendo a “verdadeira natureza das coisas”, todos os projetos (como diz Nietzsche) podem apenas ser “fundados em nada”. E, no entanto, deve haver um projeto – nem que seja apenas porque nós mesmos resistimos a ser categorizados como “nada”. Partindo do nada, nós faremos alguma coisa: a Sublevação, a revolta contra tudo que proclama: “A Natureza das Coisas é isso ou aquilo”. Nós não estamos de acordo, nós somos não-naturais, nós somos menos que nada aos olhos da Lei – Lei Divina, Lei Natural ou Lei Social – faça sua escolha. Partindo do nada, nós iremos imaginar nossos valores e através desse ato de invenção nós viveremos. (Bey, 1994, p. 1)
Os valores, então, não estão baseados em outra coisa além de sua própria afirmação. Os perigos morais óbvios dessa posição podem ser estimados pelo fato de, nos círculos anarquistas, Wilson ser alvo de controvérsias devido a acusações de ter inventado esse argumento para justificar a pedofilia[33].
Então: “anarquia ontológica” significa que qualquer um pode fazer a si mesmo, sejam quais forem seus valores? (Ou significa que apenas certas pessoas podem fazer isso?)[34]
Foi exatamente este tipo de questão que motivou Roy Bhaskar – ele mesmo um ativista político – a se voltar para a filosofia da ciência em primeiro lugar. Um dos seus primeiros interlocutores foi Paul Feyerabend, um filósofo anarquista da ciência (cf. Feyerabend, 1975). Feyerabend assumiu a posição que Viveiros de Castro endossa, embora – dado que estava usando a linguagem filosófica tradicional – ele tenha concluído que a Ontologia 1 era desnecessária e que qualquer teoria científica contemporânea consistia apenas em uma entre várias perspectivas incomensuráveis[35], todas elas capazes de construir seus objetos ostensivos e nenhuma delas possuidora de qualquer privilégio de verdade. Ele se referia a essa posição como “Anarquia Epistemológica”[36].
A intervenção de Feyerabend foi crucial e a noção de perspectivas incomensuráveis tornou-se muito influente na teoria social. E na política também. Os movimentos sociais mais radicais dos dias de hoje tiveram que aceitar que democracia significa acomodar uma diversidade incomensurável de perspectivas. Eu mesmo tentei incorporar esse espírito no meu trabalho, antes de me tornar consciente de sua história[37]. Mas a resposta de Bhaskar a Feyerabend também me soou convincente[38]. Em vez de rejeitar a noção de que diferentes teorias ou perspectivas constroem seus objetos e são, sob vários aspectos, incomensuráveis, Bhaskar argumentou que isso era verdade – o que não significa que precisamos rejeitar a Ontologia 1.
De acordo com Bhaskar, o erro reside precisamente na suposição de que uma única realidade necessariamente significa a aceitação de um “ponto de vista transcendental” único. Este, observa Bhaskar, é o exemplo perfeito da falácia epistêmica. O fato de que o objeto da ciência é, em alguma medida, constituído pela teoria e pela prática da ciência em si mesma não significa que a realidade é inteiramente constituída dessa maneira; pelo contrário, argumenta ele, é impossível dar conta dos muitos aspectos da prática científica (experimentos) sem apelar ao que ele chamou de uma “dimensão intransitiva” da realidade – i.e., aspectos do mundo que permanecerão os mesmos ainda que a ciência, os cientistas ou, para o caso que nos ocupa, os seres humanos de qualquer tipo, desapareçam completamente[39]. Portanto, não é a perspectiva que é transcendental (o que seria, de fato, uma contradição em termos), mas sim os aspectos mais fundamentais da realidade – no sentido clássico de transcendental como alguma coisa que pode nos afetar, mas que não pode ser afetada por nós. No entanto, uma vez mais, uma das qualidades definidoras da realidade é que ela não pode ser completamente conhecida, muito menos englobada dentro de uma perspectiva particular.
Ao aceitar isso, é lícito dizer que os cientistas podem falar coisas que são verdade e, pela mesma razão, eles podem dizer coisas que são falsas. (É bem possível – de fato, eu diria que é provável – que boa parte daquilo que atualmente passa por conhecimento científico é incorreto.) Isto também torna possível dizer que outras perspectivas incomensuráveis sobre a realidade, como o senso comum, a expertise técnica, o mito cosmogônico maori, Vedanta ou as comédias stand-up são capazes de dizer outras coisas que são igualmente verdade e que a ciência não pode dizer – ou nem mesmo pensou a respeito. Todas essas perspectivas são, até certo grau, incomensuráveis. Contudo, sem uma Ontologia 1 realista e sem alguma forma de ancorar nela certos valores, nós não teremos base sólida sobre a qual argumentar que todos os pontos de vista contêm verdade ou, ainda, que uma diversidade incomensurável de perspectivas é, de qualquer forma, desejável.
Afinal, a simples afirmação de um valor não significa nada em si mesma, a menos que, como alguns dos meus amigos malgaxes se apressariam em observar, tu consigas convencer os outros de que o valor está baseado em alguma coisa além da mera afirmação.
Parece-me que levar a sério os interlocutores significa não apenas estar de acordo com tudo o que eles dizem (ou ainda, tomar suas afirmações aparentemente mais estranhas e contraditórias e tentar imaginar um mundo no qual elas possam ser literalmente verdade), mas começar reconhecendo que nenhuma das partes envolvidas na conversa irá entender a outra completamente e tampouco o mundo em torno dela. Isto é simplesmente parte do que significa ser humano. Boa parte do que nos une, óbvia e imediatamente, para além das fronteiras de qualquer espécie – incluídas as fronteiras conceituais – é o reconhecimento de nossas limitações comuns: nem que seja o fato de que todos nós somos mortais ou que nenhum de nós nunca poderá saber com certeza como nossos projetos irão funcionar.
Se formos um pouco mais longe e argumentarmos não apenas que a realidade não pode ser englobada em nossos construtos imaginativos, mas também que a realidade é aquilo que nunca pode ser totalmente englobado nos nossos construtos imaginativos, então, seguramente, “alteridade radical” seria apenas outra forma de dizer “realidade”. Mas “real” não é um sinônimo de “natureza”. Nós nunca poderemos compreender completamente a diferença cultural porque a diferença cultural é real. Mas, pela mesma razão, nenhum iatmul, nambiquara ou irlandês-americano será jamais capaz de compreender totalmente qualquer outro porque a diferença individual é, também, real. A realidade de outra pessoa é a medida de que tu nunca poderás ter certeza do que ela irá fazer[40]. No entanto, para terminar, todos nós estamos, de fato, confrontados com a realidade teimosa – ou seja, imediatamente imprevisível, incognoscível – do ambiente físico que nos rodeia.
Epistemologia malgaxe ou figuras graciosas desenhadas num abismo
Com a palavra, Germain, o irmão mais novo de meu amigo Armand, de Betafo. Acompanhemos suas reflexões sobre os espíritos vazimba:
Vazimba é um tipo de coisa que não pode ser vista. Eles não mostram seus corpos como qualquer um de nós ou como os espíritos divinos que possuem os médiuns e curam as pessoas. Se tu levas carne de porco até o lugar onde se encontra um desses espíritos, então, pela noite, logo depois de apagares a luz, verás mãos que se movem na tua direção. Quando acenderes o lampião novamente, as mãos já não estarão ali. Digamos que tu estás lavando o rosto e a tua cara começa a inchar, a ficar gigante. O problema só vai passar quando tu queimares incenso. Tu também precisas procurar alguém que de tê hasina. Assim estarás curado. Mas, no final das contas, não temos nenhuma ideia sobre o que havia realmente na água com a qual tu lavaste o rosto (apud Graeber, 2007a, p. 221).
A única expressão que eu ouvi na maioria das vezes em que as pessoas falavam de espíritos era, simplesmente, “não sei”. A incognoscibilidade era um atributo inerente aos espíritos. (Os espíritos que possuíam os médiuns também eram incognoscíveis no final das contas). Em tais circunstâncias, acabei por concluir que esta falta de conhecimento não era acidental, mas sim fundacional. Falando sem rodeios, enquanto a VO me exortaria a privilegiar o fato de que eu nunca irei entender completamente as concepções malgaxes, de modo que a alternativa seria agir como se essas concepções simplesmente fossem determinantes da realidade, eu, por outro lado, decidi privilegiar o fato de que meus interlocutores malgaxes insistiam que, também para eles, a realidade não era completamente compreensível. Neste sentido, ninguém estaria em condições de entender integralmente o mundo e tal situação proporcionaria, em si mesma, um bom tema de conversa. Além disso, a impossibilidade de alcançarmos uma compreensão completa da realidade nos permite desestabilizar mutuamente nossas respectivas ideias, dando margem a uma prática dialógica genuína.
Em minhas reflexões etnográficas sobre o fanafody, eu argumento que, de fato, não é possível compreender as ideias malgaxes sobre o sujeito sem entender sua epistemologia 1. Isto porque, em grande medida, as ideias sobre espíritos eram, elas mesmas, uma forma de epistemologia – isto é, tratava-se de reflexões a respeito da possibilidade do conhecimento. Se, por um lado, conhecimento é poder, então, por outro lado, o poder é algo que não conseguimos entender. Quase nunca as pessoas me diziam que tal ou qual indivíduo “possuía” um ody. Em vez disso, elas afirmavam que esse indivíduo “conhecia” (mahay), “sabia usar” (mahay mampiasa) ou “sabia como construir” (mahay manamboatra) um ody[41]. O poder estava mais além de todo o saber, ao passo que também implicava o conhecimento de como manipular forças que eram, em si mesmas, inerentemente incompreensíveis (tsy hita, tsy azo, tsisy dikany).
A palavra para conhecimento em geral (fahalalana) era raramente usada. Normalmente as pessoas falavam de fahatsiarovana (memória, conhecimento do passado) ou fahaizana (saber-como, conhecimento prático, orientado ao futuro). A palavra fahatsiarovana aparecia em contextos nos quais se mencionava algum tipo de autoridade ancestral. Em outros casos, este vocábulo estava ausente. A maioria dos conhecimentos eram fahaizana, que estava invariavelmente ligado a algum tipo de prática. Tudo o que se relacionava com a feitiçaria ou o curandeirismo, isto é, com o fanafody – palavra cujo campo semântico abrange desde misturas herbáceas para a cura da dor de garganta até os encantamentos utilizados para deixar nossos oponentes com a língua presa nas contendas judiciais –, era uma forma de fahaizana. A mesma palavra também aludia ao conhecimento acadêmico, que envolve pesquisas, experimentos e a escrita de artigos. Fahaizana não era sinônimo de autoridade, mas sim de poder puro, cujo resultado podia considerar-se moralmente ambíguo em várias situações.
Os ody – ou encantamentos, feitiços – não eram, contudo, uma simples extensão do conhecimento humano. Eles eram assegurados pelos espíritos (lolo, zavatra, fanahy)[42], os quais – pelo menos no caso dos ody mais poderosos – eram tratados como se tivessem agência autônoma, humores, caprichos e até personalidades. Entretanto, no concernente a esses espíritos “em si mesmos”, nenhum conhecimento era possível. Até mesmo os astrólogos e curandeiros mais respeitados afirmariam que é impossível dizer algo sobre eles. Quem afirmasse o contrário só poderia ser um mentiroso ou um tolo. O poder era invisível, amorfo, genérico, oculto – tratava-se de uma pura potencialidade. O conhecimento humano pode direcionar seu poder genérico de acordo com formas e habilidades específicas – a maioria dos ody eram feitos de pedaços de madeira e outros objetos, cujos nomes evocavam uma utilidade específica que, não obstante, estava condicionada a que os adeptos do fanafody não apenas dominassem uma infinita variedade de ingredientes, mas também a ciência da astrologia, de modo a determinar o momento exato para usá-los ou combiná-los. Porém, o conhecimento jamais poderia dar conta dos espíritos em si mesmos. Inclusive os ody célebres, dotados de nomes e de personalidade – como o Ravololona ou o Ravatomaina –, eram evocados em referência aos seus ingredientes físicos, e não de acordo com as eventuais propriedades dos espíritos que lhes davam nome e eficácia. De fato, ninguém jamais poderia saber se esses espíritos eram um ou vários. Eles eram o incognoscível[43].
Hasina era o termo genérico utilizado para designar qualquer tipo de poder operante mais além dos limites da compreensão humana: era o poder dos ancestrais, dos espíritos, da magia, mas também da linguagem persuasiva (Délivre 1971: 143-45). Por fim, também era a palavra utilizada para designar objetos oferecidos às forças desconhecidas, de modo a pacificá-las, controlá-las, invocá-las para que realizassem um favor em particular e, inclusive, a partir daí, para que se tornassem eventualmente parte do ody por direito próprio (Ellis, 1838, p. 435; Callet, 1908, p. 56; Chapus e Ratsimba, 195, p. 91; Graeber, 2007a, p. 36–38). Como havia comentado anteriormente, um processo análogo fora utilizado nos rituais do século XIX para afiançar o poder monárquico. O hasina era muito real. Além disso, coisas inexplicáveis aconteciam. Mas sabia-se tão pouco sobre as causas de tais eventos que ninguém podia ter certeza se eles eram fenômenos puramente sociais ou se estavam baseados em algo mais.
Gostaria de chamar a atenção sobre o seguinte: o que os malgaxes parecem estar fazendo em muitos destes casos é surpreendentemente análogo àquilo que os OuTros sugerem para a prática do antropólogo. Os malgaxes estão se engajando num processo imaginativo e poético para chegar num acordo com uma realidade que – eles pressentem – jamais poderá ser completamente entendida. Uma das qualidades deste processo imaginativo é que ele sempre tende a permanecer na fronteira entre arte e fraude. Lembremos dos mitos cosmogônicos malgaxes mencionados anteriormente. Eles fazem referência às questões mais fundamentais da vida, do amor e da morte – os mistérios mais profundos da existência humana. Também são tiradas cômicas; as pessoas riem quando certos mitos são contados e se referem a eles como “as mentiras dos nossos ancestrais” – embora a maioria dos malgaxes sinta que, em algum nível, eles também são verdadeiros. Eles somente não são verdadeiros num sentido literal – mas o são em vários outros. De fato, para toda grande questão existencial, geralmente existem meia dúzia de respostas míticas que claramente se contradizem entre si. Alguém poderia, com certeza, perguntar: “no que essas pessoas acreditam?” ou “como seria a realidade para elas?”, de modo a eliminar a contradição que essas diferentes histórias oferecem e tratando os conceitos resultantes dessa questão como determinantes de uma realidade que nunca compreenderemos completamente. Mas fazer isso não corresponderia ao princípio de “levar a sério nossos interlocutores”. Praticamente qualquer um desses interlocutores ficaria muito feliz em apontar que, na verdade, os narradores dos mitos não entendem realmente dos assuntos que tratam. Ninguém entende, nem mesmo o etnógrafo. Isso significa que, no final das contas, estamos todos no mesmo barco.
Para ilustrar o tipo de análise que essa perspectiva nos abre, voltemos ao hasina. A palavra é frequentemente empregada em situações em que um falante do inglês diria “sorte”, “possibilidade” ou “fortuna” (embora, no último caso, ela se sobreponha a outra palavra: vintana). Eu levei algum tempo para entender esse uso. Como o emprego de hasina no sentido de “sorte” era compatível com a noção de “eficácia invisível” ou “poder sagrado”? Quer dizer que tudo, mesmo os eventos do dia-a-dia, era causado por espíritos? Um belo dia me dei conta de que meus amigos malgaxes, incluindo aqueles que dominavam idiomas europeus, ficavam igualmente intrigados quando eu aplicava a linguagem das probabilidades estatísticas a eventos cotidianos. Por exemplo: “qual a possibilidade de o ônibus chegar nos próximos dez minutos?” ou “eu aposto 10 para 1 que você deixou algo na sua outra bolsa”. Essas declarações não faziam sentido para eles. Refletindo sobre a questão, ocorreu-me que nossa própria aplicação da estatística nos eventos cotidianos é realmente tão peculiar quanto os conceitos supostamente místicos como mana, hasina ou sakti. Quando evocamos as estatísticas nestes casos, estamos efetivamente quantificando o exato grau em que não sabemos o que vai acontecer.
Em última análise, os seres humanos estão todos no mesmo dilema existencial. Dificilmente conseguimos prever eventos futuros com precisão, mas, simultaneamente, conforme o tempo vai passando e, na medida em que algo acontece, faz menos sentido falar como se outra coisa “pudesse” ter acontecido. Isto também é verdade no caso dos cientistas sociais, especialistas em escrever sobre eventos passados como se eles pudessem ter sido previstos. Inclusive quando eles tentam prever o futuro, geralmente se equivocam. Sempre que encontramos uma crença “aparentemente irracional” é provável que estejamos na presença de um dilema existencial, um quebra-cabeça que ninguém conseguirá resolver de fato[44].
Uma observação final sobre as ramificações políticas das ideias teóricas
Comecei este ensaio observando que eu parecia ter sido colocado diante de um desafio. Essencialmente, perguntaram-me por que minha posição teórica não seria, simplesmente, uma forma de positivismo condescendente. Eu também disse que me parecia útil esclarecer a diferença teórica atual entre Eduardo Viveiros de Castro e eu mesmo, dado que parecia haver algo genuíno em jogo nesta matéria.
Agora deve ter ficado claro que, de fato, nós temos posições teóricas quase diametralmente opostas. Eu sou um realista ontológico e um relativista teórico[45]. Valorizo o desenvolvimento de uma rica diversidade de perspectivas teóricas incomensuráveis – pelo menos parcialmente – sobre uma realidade que, creio eu, não pode nunca ser completamente englobada por nenhuma dessas perspectivas – pela simples razão de que ela é real. Em contraste, Viveiros de Castro adota uma abordagem muito diferente para a ontologia e (a menos que eu o tenha lido mal) considera que as abordagens teóricas prévias (por exemplo, a hermenêutica, o materialismo dialético ou o estruturalismo clássico) são profundamente equivocadas, na medida em que consistem em formas de Epistemologia 2.
Contudo, na medida em que a virada ontológica está apenas desenvolvendo um novo conjunto de questões para os etnógrafos introduzirem no seu material, seria uma tolice levantar qualquer objeção (na verdade seria inclusive inconsistente do ponto de vista do relativismo teórico). Afinal, quem se oporia a um chamado a abordar seu material de pesquisa de uma forma mais criativa e experimental? Isto é, sem dúvidas, algo bom. Mais ainda, as tentativas de lidar com questões ontológicas empreendidas por Irving Hallowell (1960), Fred Myers (1986) e Michael Scott (2013) contribuíram efetivamente e de forma grandiosa para a disciplina. Os próprios escritos de Viveiros de Castro sobre o perspectivismo (1992, 1998, 2004) em particular se tornaram, em minha opinião, a contribuição mais surpreendente e original para a teoria antropológica em anos recentes.
Creio, contudo, que o problema aparece, em grande medida, quando a virada ontológica começa a fazer afirmações explicitamente políticas, estabelecendo-se, desta forma, como uma metateoria em condições de legislar sobre o que os antropólogos podem dizer ou não[46].
Ainda que eu hesite em dizer, considerando a hostilidade declarada pela virada ontológica com relação à tradição do relativismo cultural, os problemas parecem muito semelhantes com o que aconteceu quando os relativistas pararam de ver a si mesmos como enunciadores de uma metodologia, uma forma de entender as culturas “nos seus próprios termos”, e começaram a insistir em que o relativismo deveria ter, também, um status moral e político[47]. Era compreensível que eles tivessem que fazê-lo. Muitas das pessoas estudadas pelos antropólogos naquele tempo eram amplamente descartadas como selvagens ou primitivas, sujeitos cujas perspectivas, ideais e estéticas eram tratadas como intrinsecamente indignas e, inclusive, patológicas. Obviamente, alguns apontamentos morais básicos – que não fazia sentido dizer que incisões labiais eram questionáveis enquanto usar brinco não era; que é problemática a promulgação de leis que proíbem a realização de potlatches – tinham de ser feitos. E ninguém realmente os estava fazendo. Mas no momento em que o relativismo se torna um princípio político e, pior ainda, um guia para legislar – o momento em que alguns começaram a dizer que ninguém tinha o direito de julgar qualquer declaração ou ação realizada no marco de um universo cultural diferente do seu – surgem os problemas. Em primeiro lugar, quem define o que conta como um universo cultural? Os nuer não podem julgar os dinka ou, ao contrário, todos os nilotas são próximos o suficiente para serem considerados a mesma comunidade moral? Ao traçar fronteiras, não podemos simplesmente seguir as “categorias nativas” porque precisamos dessas fronteiras para saber quem são os “nativos” relevantes. Então, é necessário que exista uma autoridade externa que decida sobre as fronteiras. No entanto, daí surge novamente o problema: quando precisamos decidir quem, dentro dessas fronteiras, é capaz de definir o que pode ser considerado como “ideias nuer”. São poucas as chances de que as pessoas que acabamos de definir como “nuer” estejam de acordo a esse respeito. Então, o relativista deve apelar para visões autoritativas. Mas quais são as autoridades locais? Não podemos usar as “ideias nuer” para identificar as autoridades porque cairíamos numa lógica circular: primeiro precisamos saber quem são as autoridades para saber o que são realmente as “ideias nuer” sobre autoridade[48]. Então, estranhamente, se formos relativistas culturais, a única coisa sobre a qual não podemos ser relativistas é a autoridade. Finalmente, no momento em que decidimos não emitir julgamento sobre as visões de alguém que reside num universo cultural diferente (alguém que é nuer, dinka, etc.), precisamos desenvolver, imediatamente, uma supercategoria especial – do tipo “moderno” ou “ocidental” – na qual incluir aqueles pontos de vista que deveriam ser condenados e questionados. Esta supercategoria tende a se inflar infinitamente, até englobar qualquer pessoa, desde cientistas malásios até antropólogos cingaleses, donos de plantações creole ou políticos iraquianos – ou seja, qualquer sujeito cujas opiniões o relativista se sente inclinado a considerar errôneas.
A virada ontológica ou a introdução da noção deleuzeana de alteridade radical como princípio político pode melhorar essa situação? Creio pode torná-la ainda pior. A única grande diferença que consigo divisar com relação à posição relativista, tendo em vista este problema específico, é que alguns defensores da VO (por exemplo, Holbraad ,2011) levam as implicações conservadoras do relativismo clássico ainda mais longe e propõem que a virada ontológica protege quaisquer pontos de vista autoritativos dentro do próprio “Ocidente”. Pior ainda, eles continuam exigindo padrões universais para o reconhecimento da autoridade legítima (mesmo através de vários “mundos”); eles propõem que estas autoridades tenham a prerrogativa de determinar a natureza da realidade em si mesma no seu respectivo território sem importar se os indivíduos em questão desejam realmente ser investidos de tal poder! Esta é, para mim, a ironia definitiva. Depois de ser acusado de introduzir teorias marxistas “pelas costas dos nativos”, eu não sou de grande valia. Sendo assim, só me resta devolver a questão: os OuTros realmente acham que a maioria das pessoas com as quais os antropólogos trabalham iriam realmente estar de acordo com a proposição de que elas vivem em “naturezas” e “ontologias” fundamentalmente diferentes das dos outros humanos – ou ainda, que as palavras determinam as coisas?[49]
* * *
O problema com o relativismo cultural é que ele situa as pessoas em caixas que elas não conceberam. Como problema meramente intelectual, isto não é muito importante. Contudo, no momento em que o relativismo se torna uma posição moral ou política, as coisas adquirem outra dimensão. A Ontologia 2 apenas substituiu os compartimentos.
Algumas pessoas gostam de compartimentos. Parece haver boas razões para acreditar que este é o caso daqueles sujeitos com quem Viveiros de Castro trabalha, aqueles junto aos quais ele luta pelo direito à “auto-determinação ontológica”. Contudo, por esta mesma razão, nós devemos respeitar os desejos de quem espera que seus compartimentos sejam menos herméticos ou, ainda, de quem não quer ser colocado em nenhum tipo de compartimentalização.
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Uma ideia que não é perigosa não merece ser chamada de ideia.
Oscar Wilde
Nos meus momentos mais cínicos eu às vezes penso na teoria social como uma espécie de jogo no qual um dos prêmios mais cobiçados consiste em ver quem teve a ideia mais selvagem, mais chocante, mais aparentemente perigosa, mas que não oferece qualquer desafio às estruturas de autoridade existentes. Nos acostumamos tanto a jogar esse jogo que já não sabemos como seria uma ideia realmente perigosa. Deixem-me explicar.
Mais acima eu observei que um realismo ontológico que torna possível dizer que alguns enunciados científicos são verdadeiros também permite afirmar que outros são falsos. Deixem-me virar o jogo agora – ainda que isto signifique violar uma espécie de tabu da escrita antropológica (sou ciente de que o que estou prestes a dizer poderia me colocar em mais problemas do que a defesa de qualquer tipo de “teoria social radical”): ser capaz de dizer que certas formas de magia não funcionam realmente permite afirmar que outras formas de magia sim funcionam.
No caso do fanafody malgaxe, isto pode não parecer uma afirmação tão extravagante assim. Como já mencionei, o fanafody representa um continuum, que vai de infusões e cataplasmas, muitos dos quais possuem claramente propriedades farmacológicas (algumas conhecidas e outras desconhecidas para a ciência mainstream) até encantamentos destinados a produzir relâmpagos, tornar seu portador invisível ou levar um ex-namorado à loucura através da possessão de espíritos malignos. Mas eu não estou me referindo às fronteiras ambíguas entre efeitos “somáticos” e “psicológicos”. Estou querendo dizer que, talvez, existam pelo menos alguns casos em que a prática do fanafody, ou outras formas daquilo que os antropólogos costumam chamar de “magia”, envolve mecanismos causais que nós simplesmente ainda não entendemos. Existem, no final das contas, abundantes tradições alternativas na ciência – todas elas tratadas com hostilidade pelo mainstream intelectual – que especulam sobre tais possibilidades. (Algumas envolvem a pesquisa de ideias originalmente propostas por filósofos como Peirce, Whitehead ou Bergson, mas no momento em que alguém tira essas ideias das salas de conferência para usá-las como base para experimentos científicos, é desacreditado) Sem dúvidas, muitos dos seus expoentes são o tipo de lunático do qual tanto se fala. Mas e se alguns deles estivessem certos?
O que estou perguntando, então, é o seguinte: “e se o Ravololona realmente for capaz de evitar que o granizo caia sobre as plantações?”. Devo confessar que me parece improvável. Mas talvez – e apenas talvez – eu esteja errado. Ainda assim, de uma coisa estou certo: nós nunca teremos a chance de descobrir se estivermos comprometidos em tratar cada declaração inusitada dos nossos interlocutores como se fosse a porta para alguma realidade alternativa que nunca iremos compreender. O engajamento com esse tipo de experimento mental nunca irá nos abrir às possibilidades inquietantes. Ou, pelo menos, não para aquele tipo de possibilidade inquietante que faz as pessoas perderem seus empregos. Pelo contrário, certos experimentos mentais nos privam dessas possibilidades na exata medida em que, como sugere Holbraad, a virada ontológica protege a ciência ocidental e o senso comum.
Eu comecei com os azande, então me permitam finalizar com eles. É certo que Evans-Pritchard postulou que a bruxaria zande não era literalmente verdade. Mas existe uma passagem famosa na qual ele parece matizar essa postura. Depois de contar como seus informantes explicavam que as bruxas enviavam uma substância imaterial na forma de luzes brilhantes que se deslocavam ao longo dos caminhos pela noite para aprisionar e destruir as almas das suas vítimas, ele observa:
Apenas uma vez pude ver a bruxaria em seu caminho. Ficara escrevendo até tarde, em minha cabana. Por volta de meia-noite, antes de me recolher, tomei uma lança e saí para minha costumeira caminhada noturna. Andava pelo jardim atrás de minha cabana, entre bananeiras, quando avistei uma luz brilhante passando pelos fundos do abrigo de meus criados, em direção à residência de um homem chamado Tupoi. Como aquilo parecia merecer uma investigação, comecei a segui-la até que um trecho de relva alta obscureceu minha visão. Corri depressa, atravessei minha cabana e saí do outro lado, de forma a ver onde a luz estava indo; mas não consegui mais enxergá-la. Sabia que apenas um de meus criados tinha uma lamparina capaz de emitir luz tão brilhante. Mas na manhã seguinte ele me disse que não tinha saído àquela hora e nem usara a lamparina. Não faltaram informantes solícitos para dizer que o que eu tinha visto era bruxaria. Pouco depois, na mesma manhã, morria um velho parente de Tupoi, agregado à sua residência. O acontecimento explicou inteiramente a luz que eu vira. Nunca cheguei a descobrir sua origem real; possivelmente um punhado de relva aceso por alguém que saía para defecar. Mas a coincidência da direção em que a luz se movia e a morte subsequente estavam de acordo com as ideias azande (Evans-Pritchard, 1937, p. 34).
É verdade, Evans-Pritchard oferece uma explicação potencial, racional, mas ele não parece estar muito convencido dela. E a simples materialidade dos fatos descritos pelo autor tem claramente o objetivo de abrir uma possibilidade inquietante: quem sabe aqui esteja acontecendo alguma coisa que simplesmente não conhecemos? No final das contas, se alguém diz seriamente que pode estar acontecendo algo que a ciência não explica, é preciso aceitar a possibilidade de que essa pessoa esteja realmente certa.
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Notas
[1] Gostaria de agradecer Rita Astuti, Maurice Bloch, Sophie Carapetian, Giovanni da Col, Rebecca Coles, Julie Goldsmith, Stephanie Grohmann, Mervyn Hartwig, Erica Lagalisse, Niall McDevitt, Hayder Al-Mohammad, Heathcote Ruthven, Marshall Sahlins, Alpa Shah, David Wengrow, Heather Williams e Matthew Wilde por suas valiosas leituras e reflexões.
[2] Richard Charles Nicholas Branson é um empresário britânico, o fundador do grupo Virgin e autor de diversos livros. Seus investimentos vão da música à aviação, vestuário, biocombustíveis e até viagens aeroespaciais [N. de T.].
[3] E, é claro, não há garantia de que a tentativa de totalização realmente funcione.
[4] Neste sentido, meu argumento assemelhava-se ao que Bruno Latour (2007) desenvolvia naquela mesma época. Para ele, a ciência social durkheimiana pode até ser adequada em tempos de normalidade, mas não está em condições de tanger situações de criatividade social. Latour parece não ter concordado com o paralelismo, dado que depois de eu ter-lhe enviado meu artigo, ele imediatamente suspendeu a troca de mensagens.
[5] No texto original, David Graeber escreve “the OThers”, fazendo uma brincadeira com o vocábulo “others” (outros) e a sigla em inglês para “virada ontológica”, OT (Ontological Turn). Escolhemos manter, na presente tradução, esta sobreposição de sentidos proporcionada pela grafia em caixa alta das letras O e T [N.deT.].
[6] Pelo menos aqui a palavra “nativo” está escrita entre aspas…
[7] O Lunkanka, que também foi citado, não é um ody malgaxe propriamente dito, mas um nkisi bakongo que foi discutido numa longa citação de meu ensaio (Graeber 2005: 417). Viveiros de Castro assume, erroneamente, que ambos os feitiços seriam malgaxes.
[8] O sampy foi oficialmente destruído quando o Rei Ranavalona II converteu-se ao cristianismo em 1869. A palavra passou, então, a ser utilizada como tradução do termo “ídolo”, que aparece no Velho Testamento. Já fanampoana sampy (“servir aos ídolos”) se tornou a tradução de “paganismo”. Como resultado, ninguém hoje em dia admite ter algum tipo de relação com o sampy. Os feitiços do granizo contemporâneos (ody havandra) – cujos poderes não estão, de nenhuma forma, limitados ao granizo – são, contudo, nítidas versões tardias de uma mesma coisa e, frequentemente, possuem os mesmos nomes e poderes. No século XIX, o Ravololona foi um sampy real, ainda que de importância menor (ele não aparece em todas as listas oficiais de feitiços). Diz-se que ele escapou do expurgo real e veio a se tornar o guardião de um poderoso ancestral chamado anak’Antitra na região de Arivonimamo, a mesma área onde fiz meu trabalho de campo (Clark 1896: 455-56; Renel 1915: 142, 158-59; Domenichini 1985: 694-96). Havia várias expressões do Ravololona à época de minha pesquisa, assim como também estava presente seu feitiço rival, o Ravatomaina. A história que me contaram em Betafo foi que o atual detentor do Ravatomaina havia perseguido o Ravalolona através de uma montanha até a cidade de Ambatomivolana. Ainda hoje, os dois feitiços rivais tentam empurrar o granizo um para os campos do outro.
[9] Este termo é usado com certa ambiguidade. Aparentemente, Viveiros de Castro está dizendo que, sendo a VO um “jogo de linguagem” wittgensteiniano, meu movimento pode ser encarado como irregular. Contudo, como não estou jogando esse jogo em particular, e mesmo assim continuo sendo criticado por fazer jogadas irregulares, presumo que os critérios de Viveiros de Castro poderiam aplicar-se à totalidade dos etnógrafos.
[10] Eu uso o termo como um adjetivo, especialmente quando se refere ao século XIX. Também me refiro uma vez a “Imerina”, o território do reino merina do século XIX. No que segue, vou usar “merina” principalmente em referência ao reino do século XIX.
[11] Obviamente, nossas informações sobre esses assuntos em períodos anteriores são bastante limitadas, mas o rei merina Radama I, do início do século XIX, era um notório cético que, segundo os relatos, teria dito a visitantes estrangeiros que ele achava que todos os aspectos do fanafody, particularmente o sampy real, eram meras fraudes, ponderando que a religião em si era, em suas palavras, “uma instituição política” (por exemplo, Copalle, 1827). Ele também era famoso por inventar testes para colocar à prova o poder de seus sampy, por exemplo, escondendo um objeto no palácio e desafiando seus guardas a encontrá-lo (por exemplo, Ellis 1838, 408, p. 411-12, etc.; Callet, 1908, p. 1104–1105 ). Não é preciso dizer que, se bem os observadores da época notaram que os guardas sempre falhavam nos testes, mais tarde as tradições orais – algumas das quais eu mesmo pude ouvir – inverteram as histórias e insistiram que os sampy mais poderosos milagrosamente confundiam aqueles que tentavam encontrá-los.
[12] Na verdade, foi originalmente escrito para fazer parte desse capítulo, mas teve que ser suprimido para se adequar ao espaço que eu dispunha.
[13] É importante enfatizar que todas essas conversas ocorreram inteiramente em língua malgaxe. As pessoas dificilmente teriam falado sobre esses assuntos de maneira tão despreocupada se estivessem falando francês.
[14] Uma fonte missionária típica do período colonial diz o seguinte: “até que a consagração tivesse sido realizada e que os juramentos de lealdade tivessem sido feitos, o amuleto, embora bem definido em relação à sua construção e características gerais, era para eles apenas um pedaço de madeira” (Edmunds 1897: 62; itálico meu). Várias outras fontes confirmam que o que dá poder ao amuleto é uma espécie de acordo coletivo. No entanto, outras histórias indicam, também, que o espírito de certos amuletos visitou o seu futuro dono em sonhos e visões e isso fez com que ele os “descobrisse” (por exemplo, Domenichini 1985).
[15] Por exemplo, sempre que os sujeitos chegavam a um acordo ou registravam um contrato oficial de qualquer tipo, eles tinham que dar uma pequena peça de prata ao rei. Este ato foi denominado manasin’Andriana, cuja melhor tradução neste contexto é “dar poder ao rei”. Na cerimônia anual do Banho Real, tais “presentes de poder” na forma de moedas de prata eram realizados por todo o reino e o rei passava por um processo ritual que reproduzia precisamente a criação de um poderoso ody ou feitiço (ver Graeber 1996: 15-19; 2007a: 35–39).
[16] A ontologia se remonta ao ano de 1606 e é geralmente associada a um filósofo alemão chamado Jacob Lorhard. A epistemologia foi introduzida muito mais tarde, pelo filósofo escocês James Frederick em 1854. A semiótica é mencionada em Locke, mas só entra realmente no uso comum com um legado do trabalho de C.S. Peirce a partir da década de 1860. A semiologia vem ainda mais tarde, com Saussure nos anos vinte.
[17] Gorgias escreveu, aparentemente, um livro Concerning what is not, or, on nature. Ele não sobreviveu. Para um bom resumo do seu argumento ver Barnes 1979: 136–37.
[18] Eu estava a ponto de escrever “da comunicação humana”, mas, de fato, C. S. Peirce, que inventou o termo, acreditava que a comunicação tem lugar em todos os níveis da realidade física e que termos como “iconismo” ou “idexicalidade” poderiam inclusive ser aplicados ao trabalho das partículas atômicas.
[19] Note-se, aqui, a ambiguidade do fraseio: “questões de conhecimento e epistemologia”. Isto implica que elas não são exatamente a mesma coisa. Mas no resto do ensaio as palavras vêm a ser usadas como se fossem aparentemente intercambiáveis.
[20] Ver, por exemplo, Graeber 2007b: 66–69. Eu duvido, diga-se de passagem, que muitos OuTros compartilhem esse diagnóstico em particular. A maioria parece rejeitar a imaginação como apenas mais um subconjunto do que eles chamam de “epistemologia”, se bem que eu diria que isto é verdade apenas para o que eu chamei, em outro lugar, de imaginação “transcendente” como oposta a imaginação “imanente”, esta última sendo um elemento em todas as formas de ação. A solução última da virada ontológica – a criatividade etnográfica – me parece um simples retorno do projeto imaginativo com outro nome.
[21] Então, quando Henare, Holbraad e Wastel definem epistemologia, o fazem deste modo: “as várias formulações sistemáticas do conhecimento” (2006:9), ou seja, qualquer conhecimento informado por uma teoria de qualquer tipo.
[22] Eu percebo que em postulados teóricos mais recentes os OuTros começaram a enfatizar a prática, mas isto não parece ter afetado sua própria prática de forma perceptível.
[23] Escrever Ontologia 1 ou Ontologia 2 seria inapropriado neste caso, dado que o autor parece tentar formular uma síntese de ambas.
[24] Hallowell não foi exatamente o primero. Havia uma série de referências à ontologia no tocante ao tempo, escritas por Hallowell. Chegando o mais longe que posso, o verdadeiro responsável por introduzir o termo ontologia em antropologia foi Ethel Albert, uma filósofa analítica que trabalhou no Harvard Values Project dirigido por Clyde Kluckhohn (e.g., Albert 1956). Ela propôs dividir os princípios subjacentes a qualquer cultura em termos de metafísicas (conformadas por ontologias e cosmologias), epistemologias, psicologias e valores. Muitos trabalhos desenvolvidos no marco do Values Project – ou por ele influenciados – adotaram variações dessa abordagem (Albert & Kluckhohn 1959). Parece improvável que Hallowell não tivesse conhecimento disso.
[25] Só para o caso de o leitor achar que eu estou exagerando: “Embora Foucault diga que o discurso cria seus objetos, ele ainda está trabalhando a partir da suposição de que existe algum mundo real lá fora. Por exemplo, quando um corpo não pode ser masculino ou feminino até um discurso de gênero evocar essa distinção como operativa, temos, ainda, um corpo ao qual o discurso se refere. Em contraste, o que propomos aqui é uma coisa totalmente diferente do construtivismo – um construtivismo radical não muito diferente daquele almejado por Deleuze… O discurso pode produzir efeitos não porque ele “sobredetermina a realidade”, mas porque nenhuma distinção ontológica entre “discurso” e “realidade” é pertinente, em primeiro lugar. Por outras palavras, conceitos podem portar coisas porque conceitos e coisas são uma e a mesma coisa” (Henare, Holbraad, Wastel 2006: 13). Aparentemente não há nada, não importa o quão obviamente louco seja, que um acadêmico contemporâneo não consiga atribuir, de alguma forma, a Gilles Deleuze. (E neste caso os próprios autores admitem que a ligação é bastante tênue)
[26] Os OuTros certamente objetariam que isto é injusto, dado que eles estão tentando dissolver o próprio dualismo que torna possível a oposição entre materialismo e idealismo: mas quase todo o mundo afirma isso hoje em dia. A questão é tentar saber se eles estão tratando de dissolver o materialismo no idealismo, o idealismo no materialismo ou ambos, materialismo e idealismo, em alguma outra coisa. Todas as evidências nos dizem que a primeira opção é a correta. Por exemplo, no texto de Henare, Holbraad e Wastel (ibid.), palavras como “material” ou “físico” regularmente aparecem entre aspas, mas palavras como “conceito” (“ideia” aka) ou “concepção” nunca.
[27] Eu pensei duas vezes antes de afirmar o óbvio, mas a palavra “ocidentais” é amplamente usada, hoje em dia, como um eufemismo para “pessoas brancas”. É claro que os OuTros não são mais culpados disso do que qualquer outra pessoa, mas é necessário chamar a atenção sobre o fato.
[28] Por exemplo, Holbraad, Pedersen e Viveiros de Castro (2014) definem a VO como “a dedução transcendental comparativa etnograficamente fundamentada do Ser”.
[29] Tempo e espaço não são, tecnicamente, “categorias” para Kant (se é que o eram para Aristóteles). Entretanto, tinham um status conceitual apriorístico similar.
[30] Parte desta cegueira é sem dúvidas possível, uma vez mais, graças a priorização da reflexão abstrata (“experiência”) sobre a ação (que integra a experiência). Certamente ninguém pode organizar seus assuntos pessoais e muito menos organizar um grupo social em duas metades rotuladas de “verão” e “inverno” ou como quer que queiramos chamá-las, a menos que já esteja funcionando como a consciência de que todos os eventos não são simultâneos, que as ações têm efeitos e assim sucessivamente. Vale a pena observar que alguns filósofos como Alfred North Whitehead (1929) pegam o mesmo argumento e acusam o próprio Kant de abstrair a ação da experiência. Whitehead observa que quando, instintivamente, saímos do caminho de um veículo que se aproxima, não estamos calculando conscientemente que o choque causará uma lesão, estamos, isto sim, operando num nível inconsciente onde nossas ações são indistinguíveis das dos peixes ou insetos ou, em certo grau, até mesmo das plantas. Parece razoável concluir, então, não que as noções de tempo ou causa existem na mente das formigas e dos arbustos, mas sim que todas as entidades físicas operam num mundo real onde tempo e causa são parte da realidade e nós sabemos disso porque “nós” não somos, na verdade, diferenciáveis de nossos corpos.
[31] Então, Viveiros de Castro (2015: 10) argumenta que a emergência do termo ontologia deve-se, em parte, “à exaustão do nomos crítico que separa o fenômeno da coisa em si” – dizendo, aparentemente, que não há coisa em si e renomeando de “ontologia 2” o que Husserl chamaria de fenomenologia.
[32] Este foi o ponto de partida para o meu livro sobre valor (ver Graeber 2001: 51–54).
[33] A persona ficcional, Bey, é um pedófilo de cabo a rabo; o grau em que Bey poderia ser tratado como um substituto para o autor em tal matéria é, como se pode imaginar, alvo de muita discussão.
[34] Eu observo que, ao passo que Bey rejeita toda a autoridade e toda a certeza, a atual posição da VO parece ser a oposta — pelo menos no que diz respeito a quem poderia ser classificado como o “nativo” devidamente autorizado. É por isto que Bhaskar (1986: 41) insiste que “fora do realismo, o falibilismo colapsa em dadaísmo, em um deslocamento epistemológico do ceticismo humeano (“tudo pode acontecer”). E ceticismo, aqui (“tudo vale”), como em qualquer lugar, significa, na prática, a aceitação do status quo. Mais ou menos isso: “tudo se mantém”. Apesar das intenções do autor, o ceticismo (como anarquismo) é invariavelmente dogmático (e conservador) de fato. Podemos observar perfeitamente esse deslizamento na citação de Holbraad, onde a anarquia ontológica termina se tornando um ponto de apoio para as formas existentes de autoridade. E falando enquanto ativista, posso afirmar que o relativista moral mais sistemático que eu conheci tinha sido policial.
[35] Feyerabend foi, de fato, amplamente responsável pela introdução da palavra “incomensurabilidade” no discurso acadêmico.
[36] De novo, usando o termo no seu sentido tradicional, epistemologia 1. Enquanto que Thomas Kuhn é considerado o introdutor da noção de incomensurabilidade teórica, Feyerabend já havia usado o termo nos anos 50.
[37] Por exemplo, os primeiros dois ensaios teóricos que publiquei (Graeber 1996, 1997) tinham a intenção de representar diferentes, e até certo ponto incomensuráveis perspectivas sobre problemas que se justapunham. O mesmo pode ser dito sobre meu trabalho sobre o valor (2001, 2013b) e sobre a dívida (2011).
[38] Eu tenho comigo uma cópia do livro de Feyerabend intitulado Against method que Bhaskar uma vez tirou da estante do seu escritório para me presentear. “ Feyerabend é ótimo”, assegurou, “ele foi um anarquista genuíno e o livro é simplesmente maravilhoso. Tu deves lê-lo! Claro que eu mesmo estou totalmente em desacordo com ele”.
[39] De qualquer forma, não tenho a impressão de que os OuTros realmente negariam isso; eles apenas declarariam “ilegal”.
[40] Isto também significa reconhecer sua liberdade. No posfácio de Lost people (2007a: 379–92) eu argumento que nosso reconhecimento dos outros como humanos se assenta acima de tudo na sua imprevisibilidade, nos limites para nosso possível conhecimento deles. Esta perspectiva está amplamente inspirada no meu próprio engajamento com a epistemologia 1 malgaxe.
[41] As únicas exceções reais eram os ody famosos, como o Ravololona, que possuíam nomes e histórias, frequentemente escolhidos por seus proprietários. Mas isto ocorria apenas quando se falava dos ody. Já no tocante aos seus donos, as pessoas empregavam o termo “conhecimentos”. Por exemplo: “fulano ‘conhecia’ feitiços do granizo, feitiços do raio”, etc.
[42] Fanahy é o termo genérico para “alma”, incluindo a alma dos seres humanos vivos. No entanto, era apenas ocasionalmente empregado em referência aos espíritos subjacentes ao fanafody. Lolo significa literalmente “fantasma”. Na medida em que ninguém aceitaria que os espíritos responsáveis pela eficácia dos feitiços tivessem alguma relação com os espíritos dos mortos, o termo “lolo” aplicava-se, fundamentalmente, para os espíritos desencarnados. Zavatra significa “coisa”. No século XIX os “zavatra” eram conhecidos genericamente como Ranakandriana (Callet, 1908, p. 83–85, 134, 179–82) e também careciam de nome, sendo indistinguíveis uns dos outros e incognoscíveis.
[43] É importante enfatizar esta questão porque o estilo de crítica inaugurado por Goldman (2006; também replicado, por exemplo, por Tassi & Espirito Santo, 2013, p. 96) afirma que os “fetiches” afro-brasileiros são vistos por seus elaboradores como passíveis de ativar poderes intrínsecos que existem nas substâncias materiais, o que encaixa, naturalmente, na perspectiva latouriana. Devo assumir que as coisas são realmente assim, mas enfatizando, sempre, que no caso do fanafody malgaxe a situação é outra. Meus informantes insistiam muito em que o poder emergia da conjunção de acordos sociais e espíritos invisíveis; os ingredientes canalizavam uma agência genérica sob a forma de poder, de modo a realizar funções específicas. As explicações sobre o nkisi bakongo são bastante similares, salvo que, neste último caso, os poderes costumam ser descritos enquanto espíritos dos mortos. Toda a questão, no concernente aos “fetiches” da moderna África Ocidental gira em torno do fato de que a qualidade dos objetos não é o elemento mais importante. As fontes mais antigas podem, é claro, estar erradas, mas na medida em que elas estão em conformidade com a etnografia recente neste aspecto específico, seria recomendável apresentar pelo menos o caso de um antropólogo que, desenvolvendo estudos na África e falando com fluência a língua local, afirme que os poderes são inerentes à “materialidade” dos fetiches. Só assim faria sentido mudar de perspectiva sobre esta temática.
[44] Apenas para evitar possíveis mal-entendidos, devo dizer que não estou aqui defendendo algo como a posição wittgensteiniana promovida por filósofos como Peter Winch (1964). Ou seja, não estou defendendo a posição de que a magia, assim como ideias semelhantes, seriam mais bem entendidas não como afirmações de poder mas como formas de refletir sobre os limites do poder humano. A magia é, de fato, uma afirmação de poder que se joga nos limites do nosso conhecimento.
[45] Para algum curioso: eu tendo a combinar um amplo marco teórico realista crítico com elementos marxianos, spinozistas e whiteheadianos.
[46] Viveiros de Castro há muito vem falando de “autodeterminação ontológica” como um projeto político, mas a declaração mais explícita da VO como um movimento político é o texto “The politics of the ontological turn” (2014), no qual os autores declaram que a VO é revolucionária em todos os sentidos do termo. Numa discussão online de acompanhamento organizada pela revista Cultural Anthropology eles compilam catorze reflexões diferentes, feitas por uma miríade de autores, sobre as implicações políticas da VO. Eis uma lista de palavras que não aparecem em nenhum ensaio da referida compilação: servo, escravo, casta, raça, classe, patriarcado, guerra, exército, prisão, polícia, governo, propriedade, fome, desigualdade. (Deixei de fora “gênero” porque a frase “perspectivas tacitamente generizadas” só aparece em um ensaio). É verdade que os ensaios eram bem curtos, mas para uma discussão sobre políticas ostensivamente revolucionárias, a ausência de qualquer um desses termos é, ainda assim, notável.
[47] Marshall Sahlins: “O relativismo não é e não pode ser uma relativismo moral vulgar. Ele foi sempre um modo de avaliar as condições de possibilidade das práticas dos outros, portanto, da ontologia comparativa. Neste sentido, a investigação ontológica foi instalada dentro da disciplina: uma condição de possibilidade da antropologia em si mesma” (comunicação pessoal, setembro de 2015).
[48] Isto não é apenas jogar com a lógica; uma das primeiras coisas que se aprende geralmente, quando fazemos um trabalho de campo, é que as opiniões sobre quem pode falar com autoridade estão fortemente divididas. Para voltar aos nuer: obviamente os anciãos locais ( “touros”) têm uma autoridade assegurada com a qual quase todos concordam. Mas e os profetas ?E se os profetas contam, devemos incluir todos eles, ou apenas os que parecem ter os pontos de vista menos controversos? Se profetas e anciãos locais discordam, qual perspectiva tem precedência? E o que dizer dos chefes de pele de leopardo?
[49] Neste caso, o legado de perspectivismo permite evitar a questão, uma vez que constitui um forte argumento de que muitos povos indígenas nas Américas concordariam pelo menos com algumas dessas propostas. Mas, certamente, a maioria das pessoas que vivem no Senegal, Karnataka ou Madagascar não. Normalmente, quando os críticos (por exemplo, Heywood 2012) objetam que a VO parece estar impondo a sua própria “meta-ontologia” a resposta consiste em insistir que a VO não é uma teoria, mas um método (“ontografia”, por exemplo, Holbraad 2012: 263-64, Pedersen 2012). Esta é uma resposta válida, mas também em outros contextos, os próprios autores (por exemplo, Holbraad, Pedersen e Viveiros de Castro 2014) propõem que a VO deve ser considerada um movimento político “revolucionário” de importância presumivelmente universal. Estas duas posições parecem ser irreconciliáveis. Se alteridade é um princípio político, tem que haver alguma maneira de determinar quem é Outro e quem não é.
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