Apresentação: Alex Martins Moraes
Na Venezuela bolivariana as práticas antropológicas já não gozam do “luxo” de se auto-desmarcar politicamente em nome da sóbria enunciação de uma diversidade da qual seriam meras intérpretes especializadas. Como saber situado, o chavismo generalizou a pergunta sobre a localização de todos os demais saberes e xs antropólogxs não puderam se furtar de respondê-la. Nesta entrevista, Yanett e Carmen falam dos compromissos que foram situando suas próprias práticas intelectuais e políticas: a guerrilha, a prisão, a militância feminista, a Revolução Bolivariana, o interesse pelos estudos de criminologia, a aposta em outras pedagogias e a paulatina construção de um “olhar de esquerda”, provavelmente mais lúcido e vivaz que qualquer “olhar antropológico” (seja lá o que isso signifique).
* * *
O Congresso Internacional de Antropologias do Sul (Mérida, outubro de 2016) transcorreu sem que se chegasse a uma delimitação precisa do conceito que lhe dava título. Ainda que alcançar uma definição de “antropologias do Sul” fosse a intenção de alguns dos participantes, a ausência de sínteses conceituais não pode ser considerada um resultado frustrante. É que certas noções são mais interessantes pelo que permitem visibilizar quando agenciadas politicamente do que pela sua capacidade de descrever fenômenos específicos. Entre os dias 10 e 15 de outubro, a cidade de Mérida, nos Andes venezuelanos, tornou-se ponto de confluência de uma diversidade pouco usual de formas de enunciar as antropologias. Diferente dos congressos aos quais nos dirigimos para garantir as cotas mínimas anuais de participação em eventos acadêmicos solicitadas pelas instituições que nos financiam e empregam, o encontro de Mérida foi espaço de engajamentos intensos e apostas elevadas. Nos corredores das diversas instituições que sediaram simpósios e conferências, nas ruas da cidade, nos bares até tarde da noite xs participantes buscavam uns aos outros para tecer novas alianças, compartilhar o relato de projetos coletivos, potencializar suas lutas e devires. Nestes momentos, a Antropologia se conjugava no plural e seu aspecto pretensamente consensual e homogêneo de disciplina acadêmica terminava diluído numa miríade de sotaques locais, disputas situadas, dissensos autênticos e encontros promissores.
Sem descrever absolutamente nada, a noção de “antropologias do Sul” acabou visibilizando uma pluralidade objetiva de práticas e projetos antropológicos que se definiam menos pela sua fidelidade metodológica ou conceitual a eventuais cânones disciplinares do que pelo fato de serem radicalmente situados e não se furtarem de reconhecer – e até mesmo reivindicar – tal condição. Mas no final das contas, que antropologia não é situada? Nenhuma, sem dúvidas. Muitas delas, contudo – as do norte? –, insistem em obviar sua posicionalidade que, a propósito, não é outra coisa senão a posicionalidade dos seus praticantes, determinada por certas trajetórias de classe, compromissos políticos, crenças, subordinações, dependências, medos, desejos e esperanças. Na Venezuela bolivariana as práticas antropológicas já não gozam do “luxo” de se auto-desmarcar politicamente em nome da sóbria enunciação de uma diversidade da qual seriam meras intérpretes especializadas. Como saber situado, o chavismo generalizou a pergunta sobre a localização de todos os demais saberes e xs antropólogxs não puderam se furtar de respondê-la.
Num simpósio que abordava os desafios etnográficos e metodológicos de fazer antropologias a partir do Sul, tivemos a oportunidade de escutar pela primeira vez como Carmen Rosillo se posicionava enquanto pesquisadora e militante feminista. O conteúdo da sua narrativa e a efusividade com que a expressava, de pé, sorridente, as mãos ágeis gesticulando cada palavra, nos fizeram desejar escutá-la um pouco mais, tête à tête. A atração foi recíproca. Carmen se entusiasmou com a exposição que Juliana Mesomo e eu fizemos, nesse mesmo simpósio, da trajetória do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica e dos seus atuais debates e apostas teóricas. Decidimos nos reunir no dia seguinte para continuar explorando afinidades. Este segundo encontro foi enriquecido pela presença de Yanett Segovia, amiga e orientadora de Carmen. Ambas se conhecem há muito tempo e mais recentemente vêm se ajudando a praticar uma antropologia que esteja a altura das experiências e compromissos com os quais a vida as defrontou: a guerrilha, a prisão no caso de Carmen, a militância feminista, a Revolução Bolivariana, o interesse pelos estudos de criminologia, a aposta em outras práticas pedagógicas e a paulatina construção de um “olhar de esquerda”, provavelmente mais lúcido e vivaz que qualquer olhar antropológico, seja lá o que isso signifique.
Os atuais projetos intelectuais de Carmen e Yanett foram precedidos pela sua atuação no Grupo de Investigación Expresiones y Representaciones de la Violencia en América Latina y el Caribe (Valec), criado em 2008 na Universidad de los Andes (ULA). O Valec começou como uma rede que incluía pesquisadores da Espanha e da Venezuela e, aos poucos, foi incorporando estudantes do recém-criado doutorado em antropologia da ULA. Ao longo desse processo o grupo foi se distanciando do perfil essencialmente acadêmico que o caracterizava num primeiro momento e as tensões entre professores chavistas e opositores tornaram-se cada vez mais evidentes. O acirramento das posturas políticas fez com que os membros do grupo inicial decidissem trilhar novas trajetórias de pesquisa de acordo com seus compromissos políticos e afinidades pessoais. Este foi o ponto de partida para a criação do Centro de Estudios de Etnografía Comprometida, que Carmen, Yanett e outrxs amigxs levam adiante faz mais ou menos dois anos. O diálogo que apresentamos na sequência versa sobre as circunstâncias que foram definindo as posturas e apostas atualmente reivindicadas por nossas amigas venezuelanas. No final da transcrição da entrevista, compartilhamos algumas perguntas que nos ocorreram quando, já de volta ao Brasil, refletíamos sobre a conversa mantida com Carmen e Yanett. Trata-se de questões endereçadas aos espaços de formação e institucionalização que habitamos em nosso país; espaços pouco proclives ao debate aberto sobre alguns aspectos decisivos de sua própria posicionalidade.
Carmen Rosillo é cientista política e doutora em Antropologia pela Universidad de los Andes. Atua como pesquisadora no Grupo de Investigaciones Expresiones y Representaciones de la Violencia en América Latina y el Caribe. É uma das fundadoras do Centro de Estudos de Etnografia Comprometida.
Yanett Segovia é doutura em Antropologia pela Universidad Complutense de Madrid e dá aulas na Escuela de Criminología, no mestrado e no doutorado em antropologia da Universidad de los Andes. Atua como pesquisadora no Grupo de Investigaciones Expresiones y Representaciones de la Violencia en América Latina y el Caribe e no Centro de Estudos de Etnografia Comprometida, que ajudou a fundar.
Eis a entrevista.
GEAC – contem um pouco sobre a trajetória do Valec, as mutações e bifurcações que atravessou nos últimos anos.
Carmen – O grupo Valec foi se renovando com outras metodologias, com outras pessoas mais comprometidas com os processos de mudança que estavam ocorrendo no país. No início, na democracia liberal, podíamos caminhar juntas, reivindicar questões pontuais, independentemente de sermos feministas liberais ou não. Mas uma vez que se constitui a democracia participativa e protagônica, nos primeiros anos continuamos trabalhando, mas depois a polarização ficou mais forte, porque havia feministas opositoras ao processo que estávamos vivendo, e nós estávamos aqui, do outro lado, feministas que compartilhavam projetos e que viam nesse processo espaços de oportunidade para impulsionar o feminismo. Aqui na Venezuela jamais existiu movimento feminista. Sim houve mulheres feministas durante toda a história política venezuelana. Quando eu cheguei ao grupo, trouxe comigo uma postura feminista e havia outros professores que reivindicavam uma postura chavista. Eu, particularmente, comecei a abordar uma temática decorrente de minha experiência etnográfica em Município Santos Marquina, Mérida, com várias cooperativas de mulheres. Nessa época, depois do boom das cooperativas na Venezuela, começava a haver gente da oposição que se dedicava ao estudo da economia social e questionava a forma como eram capacitadas as pessoas que queriam conformar cooperativas. Até o governo já tinha dado as costas para esse boom e começava a propor empresas de produção social. Então as cooperativas começaram a ficar isoladas.
GEAC – E as mulheres eram protagonistas de muitas cooperativas…
Carmen – Quando se aprova a nova constituição começam a se abrir muitos espaços de participação: mesas técnicas, conselhos comunais, cooperativas que apareceram a partir de 2003. Também estavam as missões. Missão Robinson, Missão Sucre, etc. Estas missões eram, na verdade, políticas públicas que Chávez decidiu chamar de missões. As mulheres dos setores populares começaram a se inscrever, começaram a receber financiamento para se organizar. Não há estatísticas claras a respeito mas, de fato, foram as mulheres que mantiveram todo esse processo com Chávez e agora com Maduro – ainda que houve um declínio, porque antes quase todo mundo era chavista. Começaram a criar universidades para as pessoas que estavam excluídas do sistema educativo. É importante observar que as universidades autônomas não eram inclusivas porque o exame de ingresso dificultava as coisas. Então é criada a Universidad Bolivariana, a UNEFA [Universidad Nacional Experimental Politécnica de la Fuerza Armada] é ativada através de outra perspectiva.
Yanett – Também está a UPTM [Universidad Politécnica Territorial], que é muito importante. A UBV [Universidade Bolivariana da Venezuela] é muito precária, foi criada no marco da proposta educativa de Chávez. Mas a própria dinâmica interna do chavismo a debilitou, principalmente por razões que tem a ver com corrupção, disputas políticas, etc. Em meio a essas dinâmicas a UBV foi se apagando e é academicamente muito precária. Não sei o que está acontecendo agora nessa instituição. De fato, no Congreso de Antropologías del Sur vi muita gente da UBV bem preparada, pode estar surgindo um movimento paralelo, não sei. Acho que eles estão mais ativos. Já a UPTM é uma universidade que se abre com um conceito totalmente diferente. A UBV entra mais num sistema convencional, mas a UPTM segue o princípio de uma educação que se conforma com currículos livres. Cada pessoa tem seu próprio currículo. Criam-se as comunidades de aprendizado, que são núcleos que funcionam no marco de um território determinado, com problemas determinados. É uma universidade criada, fundamentalmente, com princípios de intervenção. Existe de tudo. Algumas funcionam muito bem, outras são regulares, etc. Por exemplo, eu sou tutora de uma comunidade de aprendizado. Carmen colabora com essa comunidade. Isto funciona no bairro. Eu tive alguma dificuldade para me acostumar, porque tu estás dando aula e tem uma criança chorando, os meninos entram correndo na sala. No bairro onde atuo funcionam quatro comunidades de aprendizado: contabilidade, pedagogias alternativas, enfermagem e prevenção do delito e criminologia, que é onde eu me encontro. As quatro comunidades funcionam num mesmo espaço chamado la escuelita, que é um espaço muito precário. Ali trabalham tutores institucionais, que fazem parte do corpo de funcionários da Universidade e são pagos e tutores acadêmicos, como eu, que são, no geral, voluntários. Bom, e a ideia é que a Universidade funcione nesses bairros, que as pessoas possam entrar e sair, possam participar. No caso da escola de enfermagem, o bairro se beneficia diretamente com a presença dessa comunidade de aprendizado.
Carmen – Eu quis participar desse espaço. Tenho uma relação de proximidade com uma organização de mulheres, coordenada por Vannesa Rosales, dentro do projeto Escuela Convivencial para la Paz. Vannesa é ativista de um feminismo popular. As reuniões que compartilhei com essas mulheres foram feitas de maneira clandestina, oculta, posto que elas se propõem a oferecer às mulheres um aborto seguro. O aborto não está legalizado na Venezuela. Então, essas mulheres foram sendo preparadas e são capazes de administrar alguns comprimidos abortivos. Contudo, é preciso ter muito cuidado, porque se ficam sabendo que estas atividades estão sendo levadas a cabo, os responsáveis podem ir presos. A maioria dessas mulheres estão sofrendo restrições em suas casas, por parte dos seus pais e mães, em razão das suas práticas. Outras conseguiram trabalho e agora alcançaram certa independência financeira, porque quase todas elas dependem economicamente dos maridos. Eu, particularmente, estou me integrando aos poucos a esses espaços e colaboro com a tutoria da Yanett. Organizo oficinas, tento evitar essas formas de ensino que passam pelo bombardeio de teoria, vou participando das conversas e abordando certas temáticas de acordo com os interesses que os participantes manifestam. Problematizamos, por exemplo, a diferença entre violência e conflito, visibilizamos a violência contra as mulheres.
Mas voltando ao assunto do grupo [Valec], quando comecei a participar deste espaço minha orientadora não era a Yanett, mas sim outra professora, também feminista. Eu estava um pouco desconfortável com minha posição como pesquisadora, sentia que as informações que obtinha eram muito superficiais, não estava satisfeita com a forma como a investigação vinha ocorrendo. Foi então que deixei o trabalho de campo, para não cair num estado de desespero. Precisava entender o que estava acontecendo comigo. Depois eu voltei ao campo e mandei tudo à merda. Me esqueci da metodologia. Então, a partir daí, outro método foi emergindo. Eu perguntava às mulheres “por que tal coisa” e as mulheres começavam a me contar coisas, iam pegando confiança, proximidade. Neste contexto, fui falar com a Yanett, que estava trabalhando outras perspectivas e decidi abdicar da minha orientadora anterior. Fiquei sozinha, continuei caminhando, às vezes me perdia, voltava a encontrar o caminho, seguia em frente. Logo, Yanett se tornou minha orientadora e compartilhou comigo a metodologia que estava utilizando naquele momento, que consistia numa etnografia vivencial, originada das experiências de cada um durante o trabalho de campo e baseada em relações dialógicas horizontais. Não havia perguntas dirigidas, não havia normas, não era linear… quebramos tudo. Então foram emergindo muitas coisas. Eu conversava com as mulheres, as acompanhava. Não cheguei a me tornar cooperativista, mas sim chegava até as cooperativas, por exemplo de hotelaria e restaurante, e a mulher estava sozinha, precisa de uma mão e eu colaborava. Uma maneira de me aproximar foi realizar oficinas. Não eram exatamente oficinas de feminismo, mas é óbvio que eu dizia que era feminista, porque isso me atravessa. Não posso sair por aí com uma máscara. E nesses encontros elas me perguntavam sobre a minha família, se o meu marido não se irritava porque eu estava lá, contavam seus problemas sexuais, de violência, de alcoolismo, etc. e isso foi uma verdadeira aprendizagem de vida muito importante.
As mulheres têm uma grande consciência política e a partir da sua participação nos espaços comunitários e nas suas cooperativas, elas se tornaram solidárias, se ajudam mutuamente. Já as oficinas que organizamos durante a pesquisa tiveram uma alcance muito maior do que eu esperava, porque as mulheres convidavam os conselhos comunais, as pessoas das missões e assim as outras comunidades começaram a me chamar para repetir a experiência em outros lugares. Eu não posso dizer que as mulheres se tornaram feministas, mas algumas começaram a reconsiderar certas atividades domésticas historicamente atribuídas às mulheres e começam a procurar estratégias com seus filhos e seus companheiros para redistribuir de forma mais equitativa esses trabalhos. Também fiz terapia com algumas mulheres e recomendei a outras que denunciassem seus agressores antes que fossem mortas. Algumas deram esse passo e outras ficaram enjauladas, convivendo com seus agressores. Era uma comunidade extremamente violenta, marcada pelo consumo excessivo de álcool e outras substâncias.
GEAC – e como surge a ideia do Centro de Estudos de Etnografia Comprometida?
Yanett – inicialmente organizamos o Valec com um interesse muito acadêmico e na medida em que o tempo foi passando, com as coisas que aconteceram, isso foi mudando. Primeiro era um grupo de estudantes e professores que começaram a trabalhar juntos e foram se somando ao Valec, mas este mudou totalmente a partir de certo momento. Se antes os professores chavistas e anti-chavistas se davam bem, houve um momento em que isso deixou de ser possível e, aos poucos, cada um foi tomando seu próprio caminho. O grupo Valec ficou muito apagado, não fizemos mais simpósios. Foi então que o espaço começou a se nutrir dos alunos que estavam entrando, entre eles Carmen. Nesse momento a coisa ganhou novos contornos e já abertamente nos declaramos com interesse políticos. Diretamente as conciliações e todas essas coisas terminaram. Então cada um tinha sua história, não? Eu pertenci à guerrilha quando a guerrilha estava desaparecendo na Venezuela. Eu era muito jovem, mas participei disso, Carmen também. Hoje nossos espaços de pesquisa são violência política e simbólica, interculturalidade, economia social e solidária, violência contra as mulheres, dependência química, violência e a questão das tecnoculturas e subjetividades no espaço digital.
Carmen – Sim, eu sou mais velha que ela, estive presa, vivenciei toda uma história familiar. Por isso, em todo esse contexto dos simpósios [do Congresso de Antropologias do Sul] apareceu um professor que é do mesmo estado que eu, Zulia, uma zona petroleira, então ele disse que tinha sido guerrilheiro, não? Mas o que chamou minha atenção é que era guerrilheiro mas quando estavam falando da demarcação dos territórios indígenas Yukpa ele apresentou fortes objeções. Então eu pensei “poxa, como era guerrilheiro e agora está na oposição?” Ainda mais tendo sido de um grupo que foi perseguido, que era clandestino, num conflito que gerou tantos mortos. Então tu não entendes como podem existir pessoas que nas décadas de sessenta, setenta e oitenta foram guerrilheiros e agora são oposição extrema.
GEAC – E como se define o compromisso político do grupo que formaram há dois anos atrás? Comentavam que assumem abertamente um compromisso político. Que compromisso é esse e como se materializa nas suas práticas investigativas?
Yanett – O que começa a definir nosso grupo é uma proposta metodológica que estamos revisando permanentemente na qual a etnografia tem uma importância muito forte. A vivência no campo é fundamental para nós e sempre discutimos sobre quais seriam as melhores formas de mostrar essa experiência que vivenciamos através do diálogo. Outra coisa que nos convoca é um olhar de esquerda, independentemente de sermos chavistas ou não. O que nos custa aceitar é um opositor que confronte aquilo que nós concebemos como justo. Isto tem a ver, de alguma maneira, como o fato de que o chavismo nos disse “bom, de que lado estás?”. Porque antes havia, por exemplo, convivência com pesquisas que esgrimiam certo compromisso social, como USAID, financiado pelos Estados Unidos. Eles têm um interesse social, mas o problema é onde está situado esse compromisso e para que serve. Entendemos que sempre existe uma intencionalidade por trás das pesquisas que fazemos ou estamos organizando. Por isso somos muito cuidadosos com quem nos financia.
Recentemente uma organização estadunidense muito famosa que financia diversos projetos no país e que tende a criminalizar a pobreza me procurou para fazer uma pesquisa e, claro, não aceitei. Quem quiser ganhar dinheiro desta forma não pode estar conosco. Guiados por estes princípios, em certo momento nos demos conta que precisávamos sair da universidade. O que nós queremos com o Centro de Estudos de Etnografia Comprometida é ter mais independência com relação à Universidad de los Andes porque esta instituição é cada vez mais de direita. Eu, por exemplo, fui diretora da Escuela de Criminología e me destituíram em decorrência de minha posição epistemológica e metodológica, que se confrontava com o poder institucionalizado que marcou a esta instituição desde o início. Então sentimos necessidade de sair da universidade para nos proteger um pouco e ter mais independência. No Centro de Estudios de Etnografía Comprometida, fizemos uma solicitação de financiamento para o governo para constituir o que chamamos de Escola Convivencial para a Paz. Este projeto tem como objetivo não apenas acompanhar e assistir os jovens que estão metidos em problemas nos seus bairros mas também toda a comunidade, anciãos, anciãs, mulheres, crianças. Atualmente estamos atuando no bairro Pueblo Nuevo. Há, também, outro projeto em La Guajira, com o Wayuu, seus conflitos territoriais e memória histórica, que é um pouco mais problemático em decorrência da enorme conflitividade dessa zona do país. Estas são, contudo, questões um pouco mais delicadas…
GEAC – E como vocês avaliam que a Revolução Bolivariana incide no que são as práticas antropológicas e inclusive na própria pesquisa social venezuelana, tanto no âmbito universitário como mais além dele. Há relações entre o desenvolvimento da revolução bolivariana e a emergência de certa criatividade antropológica e sociológica?
Carmen – Eu acho que tanto no âmbito acadêmico como no âmbito externo existem vinculações e ressonâncias com todo esse processo que está ocorrendo na Venezuela. Neste centro estamos comprometidos diretamente, uns mais que outros, com o projeto deste governo. Outros desenvolvem um olhar mais crítico diante de certas medidas tomadas que possuem forte incidência econômica, política e social.
Yanett – Inicialmente muitos intelectuais se aproximaram da proposta do chavismo. Nossa constituição é uma das mais avançadas no tocante aos direitos dos povos indígenas e dos afrodescendentes. Houve um chamado para que os intelectuais participassem na elaboração dessas leis e sua atuação foi realmente importante. O que está plasmado nessa lei são longas discussões com os povos indígenas sobre uma grande diversidade temática, principalmente em relação à posse da terra. Mas o que ocorre depois? Bom… se dão situações que fazem com que pessoas como Esteban Mosonyi, que foi fundamental na construção de tudo isso, agora se oponha ao que está sendo feito. Mosonyi se posiciona contrário à criação do arco mineiro do Orinoco e o desligam da Universidad Indígena del Tauca, que ele tinha criado. Ele não apenas criou esta instituição, mas todas as demais universidades indígenas do país. Então podemos dizer que houve uma grande abertura inicial e muito boas intenções, com afrodescendentes também. Houve promoção do respeito, da interculturalidade e todas essas questões. Devemos reconhecer que Chávez fez coisas importantes, mas isto foi desabando aos poucos e por isso algumas pessoas importantes retiraram seu apoio.
Carmen – E outros permaneceram. Eu estou inscrita no PSUV [Partido Socialista Unido de Venezuela, governista] mas uma atuação mais orientada para o concreto do que para a vida institucional do partido. Mantenho meu compromisso social, político, para caminhar em direção à uma sociedade mais equitativa, mais justa, mais solidária… podemos chamá-la de socialista ou de outra coisa, mas este continuará sendo o compromisso político do nosso centro de pesquisa.
Yanett – A proposta aqui não é fazer grandes revoluções, não é tomar o estado, porque eu, particularmente, creio que a coisa não vem pelo estado, mas sim dos movimentos sociais, de baixo. O que nós queremos é acompanhar os processos sociais que vão sendo vividos.
Carmen – O empoderamento é um processo pessoal que depois é coletivizado.
GEAC – O que recomendariam para quem estiver interessado em ter contato com uma produção mais crítica e comprometida nas ciências sociais venezuelanas? Sugerem alguma página na internet onde possamos acessar os resultados das pesquisas de vocês e de outros grupos que conduzem atividades parecidas?
Yanett – Existem várias publicações na internet. Temos, por exemplo, Aporrea, que é um espaço chavista que está aberto para outras posições também. Outras sugestões seriam La Guarura e Marea Socialista, que também é muito interessante. Aporrea é mais política e La Guarura mais acadêmica, para dizer de algum modo. Acho que essas são as três mais importantes.
* * *
Inquietações finais: e se a representação da vida acadêmica como lugar de diálogo cordial e dissenso comedido entre pares for menos um imperativo da vida universitária do que o sintoma da endogamia de classe imperante em certos espaços de formação? E se o ethos liberal imperante nos programas de pós-graduação brasileiros não tiver nada a ver com o “olhar antropológico” em abstrato, mas sim com a perspectiva sociologicamente configurada de quem o professa? E se os constantes chamados “metodológicos” ao estranhamento de si e do “outro” não forem questão de epistemologia, mas uma decisão ética tão específica quanto questionável? Este tipo de estranhamento precisa ser, realmente, o ponto de partida de qualquer enunciado antropológico? E se a relutância com relação ao engajamento político e a pesquisa militante for, ela própria, uma expressão desmarcada do engajamento político exclusivo de certos antropólogos com a reprodução de sua própria disciplina?
0 comments on “Antropologia, etnografia comprometida e Revolução Bolivariana. GEAC entrevista Carmen Rosillo e Yanett Segovia.”