Por Juliana Mesomo
Todos os conhecimentos são situados e é impossível falar de lugar nenhum. Ao reivindicar isto, as antropologias feitas a partir do sul reconhecem os efeitos da localização: somos interpelados por processos políticos que nos constituem e por dinâmicas sociais de enclassamento, generização e racialização que definem nosso lugar de enunciação.
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A relevância política de certas categorias não se deve tanto ao que elas permitem descrever, mas sim ao que elas visibilizam, mobilizam e aglutinam. Ainda que não saibamos de antemão o que significam precisamente, são insígnias que fazem confluir experiências e desejos. Antropologias do Sul é uma destas categorias. Uma das genealogias mais conhecidas do termo remonta ao ano de 1993 quando pesquisadores de diversos países da América Latina – entre eles, Colômbia, Brasil, México, Peru e Venezuela – refletiram, a convite de Estaban Krotz, sobre a natureza das antropologias praticadas pelos “povos do sul”. Sob este nome foram incluídos todos os povos e países do Sul global que haviam sido, nos séculos XIX e XX, objetos de estudo das antropologias dominantes praticadas no Norte global. A questão que mobilizava-os naquele momento era simples: o que há de diferente nas antropologias praticadas a partir do Sul? Mais de vinte anos depois, antropólogos e pesquisadores venezuelanos de diversas áreas convidaram seus companheiros da região a atualizar esta pergunta, levando em conta as mudanças sócio-políticas e econômicas vividas no continente durante as últimas décadas. A partir desta convocatória foi possível reunir entre os dias 10 e 15 de outubro de 2016, na cidade de Mérida (Venezuela), diversos sujeitos, projetos e experiências em torno da ideia-força de antropologias do sul.
Ainda que convoque sobretudo pesquisadores de países periféricos, o “Sul” em “antropologias do Sul” não se refere a limites geográficos. A intenção daqueles que se encontraram em Mérida há algumas semanas não era, de forma geral, erigir cânones e regimes de autoridade com o sinal invertido – ao invés de norte universalista, o sul particularista. Pelo contrário, a consigna orientadora do evento motivou a discussão e a formulação de alguns princípios capazes de desestabilizar as antropologias institucionalizadas praticadas tanto no Norte quanto no Sul global. “Do Sul” podem ser aquelas antropologias concretamente existentes que escapam às normas das antropologias dominantes ou que não são reconhecidas enquanto tais pelos estabelecimentos antropológicos por conta da sua maneira de implicar política e epistemologia ou pelo fato de ignorarem as fronteiras disciplinares. “Sul” podem ser novos e inusitados sentidos associados às práticas investigativas, ligados aos compromissos políticos, às posicionalidades e às subjetividades daqueles que as desenvolvem. “Sul” podem ser aquelas práticas e intenções que apontam para superar a repetição dos cânones, autoridades e privilégios copiados das antropologias dominantes do Norte global.
Antropologias do Sul pode ser lida, por um lado, como categoria que ajuda a visibilizar antropologias não reconhecidas pelo establishment e/ou precarizadas pelos imperativos produtivistas atuais; por outro lado, antropologias do Sul podem ser tomadas como um conjunto de princípios mobilizadores de práticas outras, dotadas de intensidades, potências e contradições próprias que puderam ser debatidas durante os grupos de trabalho, conferências e assembleias do encontro em Mérida. Mencionarei, brevemente, alguns dos principais debates que tivemos a oportunidade de participar e que me pareceram relevantes para refletir sobre as possibilidades de cruzamentos entre as reflexões do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC) e a vontade de praticar antropologias a partir do Sul.
O Sul como espaço epistemológico
O Sul nas antropologias do Sul não representa um lugar físico. É um espaço epistemológico no qual a enunciação de um conhecimento socialmente relevante responde a outros critérios de validação e de produção, diferentes ou contrários à ego-política do conhecimento ou à figura do observador desapegado. Em primeiro lugar, as antropologias do Sul reconhecem a necessidade da enunciação corporizada e localizada do conhecimento. Ou seja, reconhecem que o sujeito cognoscente está sempre implicado, como observou Ramón Grosfoguel, na sua localização epistêmica/étnica/racial/de gênero/sexual. Todos os conhecimentos são situados e é impossível falar de lugar nenhum. Ao reivindicar isto, as antropologias feitas a partir do sul reconhecem os efeitos da localização: somos interpelados por processos políticos que nos constituem e por dinâmicas sociais de enclassamento, generização e racialização que definem nosso lugar de enunciação.
Além disso, produzir conhecimentos situados implica reconhecer que estes são parciais e só podem ser lidos/traduzidos/potencializados através de alianças, mais ou menos conflitivas, com outros conhecimentos parciais produzidos por sujeitos igualmente localizados. As objetividades que produzimos só poderão ser enunciadas e gerar efeitos de verdade através do que Donna Haraway denomina “redes de diálogos em política”. Em suma, definir o sul como um espaço epistemológico nos leva a reconhecer que nossos lugares de enunciação estão configurados por processos políticos e históricos. Contudo, os lugares de enunciação não são nunca fechados e estáveis. Eles estão abertos a alianças, transformações e redefinições que incidirão sobre o que poderá ser dito no seu contexto. Quando se trata de ciência ou de pesquisa científico-social, a objetividade dos enunciados produzidos por um pesquisador responderá à natureza das composições políticas que lhe permitiram definir uma perspectiva e, por conseguinte, um lugar de fala potencial. Por conta disso, fazer antropologia a partir do Sul implica abandonar o privilégio das disciplinas hiper-reais (“a” antropologia, “a” sociologia) em favor da produção situada de conhecimentos socialmente relevantes.
As antropologias do sul respondem aos compromissos políticos dos povos do Sul?
Outro princípio que foi esboçado no encontro em Mérida se refere a tratar explicitamente os compromissos políticos dos antropólogos e pesquisadores. Este compromisso não se refere apenas às lutas “dos outros” com quem interlocutamos e nos solidarizamos. Refere-se, em primeiro lugar, ao espaço contraditório – ou pelo menos “tenso” – onde nós mesmos nos localizamos. Definir que todos os conhecimentos são situados implica reconhecer o lugar onde praticamos antropologia: nos corredores universitários, como professores ou estudantes, num órgão estatal, numa ONG, num sindicato ou num movimento social, contratados por uma empresa privada, etc. Cada um destes lugares, cuja relação pode ser desigual e conflitiva entre si, implica para quem o habita compromissos, dramas, dilemas, subordinações e funções diferentes.
Por outro lado, reconhecer explicitamente que as antropologias têm compromissos políticos nos conduz a uma discussão ao mesmo tempo delicada e banal com a qual as disciplinas acadêmicas hiper-reais raramente se defrontam. Afinal, quais são os compromissos políticos aos quais respondemos? Elucidar este ponto implica dialogar com os demais, estabelecer coletivamente quais são os compromissos de uma época e/ou de um grupo e entrar em alguns conflitos. Implica abandonar os consensos verticais de que “todos lutamos por um mesmo objetivo”. Estudantes, professores do ensino público ou profissionais de pesquisa terceirizados não tem os mesmos anseios políticos que um professor universitário, por exemplo – embora possam confluir eventualmente em alguns interesses.
Além disso, que horizontes definem nossos compromissos? Comunismo, socialismo, anarquismo, lutas dos povos indígenas, antirracismo, feminismos, emancipação, transformação, revolução, autonomia, antifascismo, descolonização, democracia, direitos humanos… Os significados dessas palavras-consignas variam segundo as composições coletivas em que estão inseridas e conforme a historicidade e a localização das suas expressões, mas as antropologias feitas a partir do sul há tempos circulam pelos mesmos lugares onde estes significados são disputados e definidos. Fato é que, da mesma forma, as diversas antropologias existentes podem ser definidas pelas relações que estabelecem com tal ou qual forma de viver a política: democracia liberal, reformismos ou radicalização de lutas localizadas, entre outras inclinações possíveis. Como qualquer ação política pedestre, as antropologias feitas no sul podem ser interpeladas pelo que dizem, fazem ou deixam de fazer – ou seja, podem ser chamadas à responsabilização.
Antropologia comum
Livre dos compromissos com as disciplinas acadêmicas hiper-reais, a etnografia não precisa responder à necessidade, tão abstrata quanto inócua, de contribuir para o progresso d“a” antropologia. Seus objetivos podem ser estabelecidos conforme as alianças e os objetivos políticos coletivamente definidos em cada momento. As metodologias – pesquisas de arquivo, história oral, grupos focais, etnografias dos dispositivos de poder, do Estado, etc. – podem, então, ser escolhidas de acordo com a imaginação e a natureza de cada encontro. Para as antropologias praticadas a partir do sul, a etnografia ou a própria prática antropológica não necessitam ter, como último e único fim, a escrita de uma monografia acadêmica – um texto que poderá, porventura, ser utilizado em alguma mobilização. A etnografia e a prática antropológica podem se desdobrar em uma série de outros produtos que terão efeitos imediatos num processo presente: a formulação de um plano de lutas, uma intervenção em espaço público, um debate coletivo, etc. A experimentação metodológica das antropologias do Sul, portanto, vai muito além da mera variação entre técnicas ou “estilos” de etnografia. Trata-se de suspender os compromissos unívocos com a reprodução disciplinar, reconhecer e habilitar os usos mundanos da etnografia e das teorias informadas pelas mais diversas “tradições” antropológicas. Apropriáveis por qualquer um, em qualquer lugar, convertidas em bem comum – sem o privilégio do controle por parte da disciplina –, a etnografia e a teoria antropológica podem adquirir novas caras e novas formas, realmente diferentes do que fora praticado até então.
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