Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo
Compartilhamos com vocês um artigo que foi censurado recentemente por uma revista de antropologia relativamente conhecida no Brasil. Segundo o censor, este texto colocava indevidamente em questão o suposto “núcleo duro” sem o qual “a antropologia seria outra coisa” e não mais uma “disciplina” que “está no campo científico” e cujo cânone (“Bourdieu”, “Passeron”, “Goffman” [sic!]) precisa ser respeitado. Censuras disciplinares à parte, este material será publicado em breve na Venezuela pela Red de Antropologías del Sur. Adiantamos seu conteúdo em primeira mão para xs leitorxs do Blog do GEAC.
“Ao longo de sua trajetória de institucionalização acadêmica, os praticantes da antropologia são “convidados”, mediante diversos processos de convencimento e coerção, a abandonar – ou relativizar – suas lealdades sociais e compromissos coletivos imediatos em favor de uma adesão disciplinar castradora, de tipo corporativo. O desafio é suspender essa dinâmica e assumir, em articulação com nossos interlocutores, o controle sobre os propósitos e as rotinas da produção e da enunciação do conhecimento”.
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Introdução
O trabalho de campo antropológico é uma porta de entrada promissora para a construção de agendas reflexivas situadas e negociadas politicamente. Isto se dá porque, em primeiro lugar, o tradicional imperativo metodológico que nos convida a “estar lá” possibilita o envolvimento dos pesquisadores com as dinâmicas coletivas que ocorrem durante o trabalho de campo. Em segundo lugar, as coordenadas epistemológicas básicas que orientam a produção de conhecimento antropológico – i. e. existem muitas formas de estar no mundo e estas, por sua vez, são construções coletivas – abrem a possibilidade de visibilizar e legitimar intuições e saberes que são eventualmente subalternizados pelos regimes dominantes de poder e de representação. Esta singularidade metodológica e epistemológica ressoa em muitos estudantes de graduação brasileiros como uma espécie de “promessa antropológica” que sinaliza no encontro etnográfico a possibilidade de enunciar um conhecimento ao mesmo tempo localizado e socialmente relevante, construído a partir do engajamento com os outros em situações concretas.
No entanto, ao longo do processo de formação dos novos antropólogos, as dinâmicas institucionais de reprodução da disciplina vão ofuscando as possibilidades anunciadas pela promessa antropológica. Aos poucos, a necessidade de aderir às rotinas produtivistas de escrita e publicação, bem como às matrizes conceituais e ênfases analíticas difundidas pelas agendas investigativas hegemônicas tende a precarizar o trabalho de campo como instância de engajamento intelectual criativo com nossos interlocutores de pesquisa. Em meio às contingências da voragem disciplinar, alguns procuram construir estratégias para enfrentar essa precarização. Na presente intervenção, desejamos contar a história de uma dessas estratégias, a que conseguimos desenvolver coletivamente no marco do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC), organizado em 2011 por estudantes de graduação, mestrado e doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)[i]. Trata-se de uma estratégia que se realiza em dois movimentos. O primeiro deles crítico-reflexivo, marcado pela constatação da perda de uma promessa e pela análise dos seus motivos. O segundo, caracterizado pela colocação em prática de outros modos de ação com a esperança de retomar a promessa perdida e transformá-la em referente para o empreendimento de novos engajamentos intelectuais e políticos.
A constatação da perda da “promessa antropológica” e a análise dos seus motivos resultaram de um exercício cartográfico[ii] realizado nos próprios espaços de ensino e pesquisa que habitávamos à época da conformação do GEAC[iii]. Esta cartografia consistiu num esforço analítico e de produção conceitual cujo objetivo era tornar nossa experiência de institucionalização pensável e, por isso mesmo, estrategicamente avaliável. No primeiro tópico apresentaremos, esquematicamente, as noções de “fronteira disciplinar”, “militância disciplinar”, “extrativismo cognitivo” e “axioma produtivista”, todas elas formuladas no decorrer da atividade cartográfica empreendida pelo grupo. Tais noções nos permitiram conceber criticamente certos mecanismos que tendiam a debilitar, no cotidiano da vida acadêmica, a exploração das consequências teórico-políticas mais radicais advindas do encontro etnográfico. A partir do segundo tópico, abordaremos nosso itinerário pessoal de recuperação da promessa antropológica. O itinerário em questão tem origem numa experiência de pesquisa levada a cabo pelos autores desta intervenção na cidade de Bella Unión, localizada no extremo norte da República Oriental do Uruguai[iv]. Tal pesquisa, realizada em colaboração com um grupo de trabalhadores organizados na Unión de Trabajadores Azucareros de Artigas (UTAA), foi um momento de retomada da promessa da antropologia tal como nós a tínhamos apreendido ainda nos primeiros anos de formação acadêmica. Isto foi possível porque o trabalho de campo junto aos membros da UTAA coincidiu com o momento em que eles também se esforçavam por redimir sua própria promessa. Por ora, basta dizer que quando nos somamos a estes esforços, suspendemos temporariamente os imperativos de reprodução da disciplina e conseguimos inscrever o exercício investigativo no horizonte de um projeto político com importantes consequências coletivas.
- Cartografando a antropologia disciplinar
O processo de formação em antropologia nas universidades brasileiras está marcado por um momento de inflexão entre a etapa da graduação e a da pós-graduação. Enquanto a graduação é um espaço mais propenso à interdisciplinaridade e à experimentação teórica e política, na pós-graduação a formação canônica do antropólogo ocorre de modo muito mais sistemático, encompassada com os critérios de excelência que informam as políticas nacionais de fomento à pesquisa acadêmica. Por isso, nesta etapa de formação os debates que não se relacionam estritamente com a constituição da postura profissional esperada do antropólogo universitário tendem a ser relegados a um segundo plano em favor da promoção dos hábitos de leitura e das agendas de pesquisa e reflexão instaladas pelos mercados editoriais e pelas instituições mais relevantes no “sistema-mundo da antropologia”[v]. Foi justamente para problematizar esta tendência e explorar ferramentas conceituais, metodológicas e políticas que propiciassem sua interrupção que um conjunto de estudantes provenientes do Brasil, da Argentina, da Colômbia e do Uruguai organizou o Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC).
Na América Latina o termo “antropologia crítica” costuma remeter a um campo muito heterogêneo de produção de conhecimento antropológico e científico-social que, entre os anos sessenta e setenta do século passado, operou não só a revisão dos paradigmas teóricos cultivados no norte global, mas também a enunciação do compromisso político dos antropólogos da região com as lutas subalternas – especialmente indígenas – suscitadas pela expansão das aparelhagens administrativas dos Estados nacionais e por certas estratégias de acumulação do capital. Destacam-se, neste período, declarações como a “carta de Barbados” em prol da libertação indígena – assinada, entre outros, por Guillermo Bonfil Batalla, Arturo Warman, Stefano Vares, Roberto Cardoso de Oliveira, Nelly Arvelo, Víctor Daniel Bonilla – e os debates protagonizados por Ángel Palerm, Rodolfo Stavenhagen e Darcy Ribeiro (Jimeno, 2004 e Garbulsky, 2001 oferecem boas revisões dos debates da época). Todos estes nomes – com exceção, basicamente, dos de Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro – brilhavam por sua ausência nos programas das matérias de graduação e pós-graduação oferecidas pela instituição em que nos formamos. Quando o GEAC foi criado, a noção de “antropologia crítica” representava para os seus membros menos uma filiação teórica específica do que a vontade de empreender certa busca de referências que não estivesse condicionada pelo cânone institucional estabelecido. Esta busca nos levou a definir retroativamente um conjunto de precedentes teórico-políticos que hoje em dia inclui, além dos autores já mencionados, as propostas de Luis Guillermo Vasco e Orlando Fals Borda – isto para nos restringirmos apenas ao campo da antropologia e da sociologia.
Duas perspectivas teóricas foram fundamentais no momento de emergência do GEAC. Por um lado, tínhamos a analítica foucaultiana do poder, com a qual estávamos familiarizados em decorrência do próprio “clima intelectual” de nosso espaço de formação. Por outro lado, saíamos em busca de uma relação criativa com a chamada “inflexão decolonial”, apresentada por companheiros provenientes da Colômbia e da Argentina. O encontro com a decolonialidade era operado a partir da base teórica oferecida pelas leituras de Foucault. Mais tarde, partindo dessas coordenadas iniciais, empreenderíamos um caminho pouco usual à Marx e aos debates marxistas contemporâneos, ambos, diga-se de passagem, amplamente invisibilizados pelos hábitos de leitura vigentes na antropologia institucional disciplinar brasileira. A narrativa detalhada dessa trajetória de (auto)formação, que continua em curso e se expressa singularmente nos posicionamentos de cada membro do grupo, não faz parte do escopo da presente intervenção. Seus efeitos, contudo, serão perceptíveis no tom das análises que apresentaremos mais adiante.
Durante os debates desenvolvidos nas primeiras reuniões do grupo, nos dedicamos a construir uma definição provisória de “antropologia crítica” que servisse como ponto de partida para ir sedimentando nossos próprios territórios reflexivos. No primeiro editorial do zine A Tinta Crítica (2011)[vi], onde sintetizávamos os resultados de nossos debates, “antropologia crítica” foi definida enquanto crítica da antropologia disciplinar e, simultaneamente, veículo de compromisso político com as disputas sociais desencadeadas em torno de três eixos de dominação: classe, raça e gênero. De acordo com esta acepção inicial, o antropólogo crítico não se dedicaria apenas a problematizar as relações de poder que organizam a capacidade de fala e intervenção dos sujeitos políticos; sua vocação também se realizaria mais além do texto, em meio à luta pela superação destas relações. Tal engajamento supunha questionar os esquemas de reprodução da própria disciplina antropológica e o lugar que nela se costuma atribuir ao pesquisador. Naquele primeiro editorial da Tinta Crítica, estabelecemos a premissa que inspiraria a atuação do GEAC nos anos subseqüentes, a saber: não é possível exercer antropologia crítica se a própria antropologia não for objeto de crítica. E o lugar a partir do qual se empreende esta crítica não é “a” Antropologia propriamente dita. Destrinchemos esta proposição.
Para o GEAC “a” Antropologia – no singular e com inicial maiúscula – não é um lugar genérico e muito menos um sujeito de fala, ainda que seja recorrente ouvirmos e proferirmos assertivas que parecem indicar o contrário. Quem nunca desenvolveu um argumento recorrendo a enunciados do tipo “minha crítica provém da Antropologia” ou “a Antropologia tem algo a dizer sobre isso”? Apesar da utilidade que certos termos podem ter para tornar mais ágil a comunicação cotidiana, às vezes vale a pena problematizar as conseqüências do seu uso, principalmente quando ele parece responder a algo mais do que a mera busca de praticidade linguística. O que “a Antropologia” define? Se esta questão fosse colocada a todos os antropólogos, certamente daria lugar a uma infinidade de respostas, ora convergentes, ora divergentes. Na prática, “a Antropologia” se multiplica em diversas experiências profissionais que respondem, por sua vez, a adesões teóricas, compromissos políticos e condicionamentos institucionais igualmente diversos. Além de se pluralizar numa miríade de práticas profissionais, “a Antropologia” também ganha existência concreta por meio de processos localizados de institucionalização. Assim, a antropologia praticada num hipotético Programa de Pós-graduação x pode apresentar cânones teóricos, preferências metodológicas, agendas investigativas, ethos institucionais, estilos de intercâmbio intelectual, etc. bastante diferentes dos observados no Programa de Pós-graduação y. Tal diversidade se complexifica quando constatamos que, no interior de cada uma destas instituições, há conflitos políticos entre diferentes noções de antropologia; conflitos que se expressam em duras lutas pelo controle dos recursos econômicos institucionalmente disponíveis e pela ocupação de postos administrativos e outros lugares de poder.
Se sairmos do âmbito universitário, a pluralidade objetiva das antropologias torna-se ainda mais evidente. Como se desenvolve e se define a antropologia praticada no contexto de organismos estatais como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ou a Fundação Nacional do Índio (FUNAI)? Em que aspectos elas se aproximam ou se distanciam das suas congêneres acadêmicas? E quanto às antropologias empresariais ou às praticadas por profissionais autônomos especializados na emissão de laudos de impacto social? Nestes casos, podemos, ainda, falar de “antropologia”? Independentemente das nossas opiniões pessoais a respeito, os antropólogos que habitam cada um dos espaços que viemos mencionando até aqui possivelmente definam os produtos da sua prática intelectual simplesmente como “antropologia”. O uso do termo tende, portanto, a obscurecer os projetos profissionais, políticos e intelectuais empreendidos por pessoas de carne e osso que, situadas em lugares de enunciação específicos, procuram constituir e cristalizar práticas antropológicas singulares. Falar de antropologias no plural implica, portanto, evitar esse obscurecimento prestando atenção àquilo que, em cada lugar e momento, determina a particularização das práticas antropológicas realmente existentes.
Para o GEAC, o diagnóstico das determinações que configuram tais práticas oferece a oportunidade de avaliar com alguma precisão onde estamos situados e o que nos posiciona aqui e agora. De posse deste tipo de conhecimento, podemos atuar estrategicamente nas situações, construindo as condições de possibilidade para, se for o caso, transitar de uma posição não tão desejável a outra mais interessante de acordo com nossas escolhas teóricas, compromissos coletivos e lealdades políticas. Com esta intenção, nos propusemos a avaliar criticamente as expressões da antropologia com as quais estávamos mais familiarizados no ambiente universitário, de modo a formular um juízo estratégico sobre seu funcionamento. O ponto de partida de nosso diagnóstico foi o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brasil), onde o GEAC atuava em seus primeiros dois anos de existência. Consideramos, contudo, que os mecanismos de institucionalização identificados neste programa de pós-graduação em particular estão disseminados tanto no Brasil como no exterior, podendo emergir de acordo com diferentes combinações e intensidades. Esta intuição se viu reforçada pelas trocas de ideias que mantivemos com estudantes de antropologia de outras nacionalidades através de oficinas (“talleres”) e entrevistas grupais promovidas durante o ano de 2016 (cf. GEAC, 2016; GEAC, 2017). Temos, portanto, a expectativa de que a presente análise possa incentivar novas cartografias críticas em outros espaços de institucionalização da antropologia disciplinar latino-americana.
1.1 Instauração e manutenção das antropologias universitárias disciplinares
Como argumentamos anteriormente, as antropologias universitárias disciplinares[vii] não são as únicas antropologias vigentes no país. Não obstante, elas representam uma parte significativa das práticas antropológicas institucionalizadas[viii], a tal ponto que costumam ser vistas como “a Antropologia” par excellence. De forma geral, a instalação e a manutenção das antropologias de perfil acadêmico-disciplinar dependem de uma série de mecanismos organizativos que buscam instaurar fronteiras institucionais, sistemas de intercâmbio de conhecimento, lógicas investigativas e ethos políticos institucionalmente dominantes. Nos próximos parágrafos, veremos como estes mecanismos identificam e agenciam elementos e processos heterogêneos para, a partir deles, definir um objeto de conhecimento – usualmente pensado em chave de “alteridade” – e organizar, com relação a dito objeto, certos procedimentos de representação e de subjetivação.
O primeiro dos mecanismos em questão, que denominamos fronteira disciplinar, consiste na definição dos limites internos e externos da disciplina antropológica. Tomás Guzmán avalia que a disciplina estabelece um “espacio límite entre [lo] diferenciado que es el campo y [lo] indiferenciado que es la institucionalidad” (Guzmán, 2015: s/n). O “dentro” e o “fora” da disciplina estão distribuídos nestes dois pólos: o indiferenciado e o diferenciado. Isto significa que a relação entre sujeito cognoscitivo e fenômeno cognoscível termina inscrita num espaço fraturado que é composto por uma interioridade e uma exterioridade. No espaço interior se localiza o sujeito indiferenciado do conhecimento intencional; no espaço exterior, por sua vez, ocorrem fenômenos cognoscíveis diferenciados e multiplamente determinados. De acordo com esta particular organização do espaço e da ação, sujeito cognoscitivo e fenômenos cognoscíveis devem ocorrer em descontinuidade sociológica. Em outras palavras, o primeiro não deve deixar-se afetar, no momento da análise e da reflexão, pelas determinações que incidem sobre os segundos. Ao retornarem da exterioridade empírica para a interioridade disciplinar, os antropólogos são, portanto, convidados a se pensarem enquanto comunidade sapiente vinculada por afinidades básicas – que podem variar de acordo com a instituição – e relacionada com “o mundo lá fora” por meio de uma vontade de saber fiel a agenda intelectual de sua disciplina. A adesão a esta vontade de saber é tanto mais efetiva quanto mais o praticante da disciplina estiver convencido da necessidade de submeter-se à militância disciplinar, que discutiremos na continuação.
Ao longo de sua trajetória de institucionalização acadêmica, os praticantes da antropologia são “convidados”, mediante diversos processos de convencimento e coerção, a abandonar – ou relativizar – suas lealdades sociais e compromissos coletivos imediatos em favor de uma adesão disciplinar de tipo militante e corporativo[ix]. O chamado a essa adesão se manifesta em discursos que procuram apresentar “a” Antropologia – e sua rotina institucional disciplinar – como um “modo de vida”, um “olhar antropológico”, uma “forma de estar no mundo” ou, na sublime definição de Roberto da Matta, um “anthropological blues”. Num texto canônico, apresentado aos estudantes brasileiros de antropologia já nas primeiras cadeiras de graduação, da Matta descreve claramente qual postura devemos estar dispostos a assumir se quisermos “vestir a capa de etnólogo”. Precisamos, segundo o autor, “aprender a realizar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes fórmulas: (a) transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico” (da Matta, 2004[1976]:174).
De forma esquemática, podemos dizer que enquanto a fronteira disciplinar procura estabelecer uma cisão entre o antropólogo e seus outros, a militância disciplinar, por sua vez, gera as condições subjetivas nas quais esta fronteira pode fazer sentido para cada pesquisador. Deste modo, torna-se pensável a possibilidade de discernirmos, dentre os enunciados que produzimos, aqueles que correspondem a eventuais desvios ideológicos daqueles que dizem respeito a um autêntico estranhamento, sintonizado com a melhor tradição antropológica[x]. Comprometido com a militância disciplinar, o antropólogo aceita para si o desafio de imitar, em suas práticas cognitivas, o célebre estratagema do Barão de Münchhausen, que consiste em agarrar os próprios cabelos e puxar-se para fora do pântano de compromissos sociais, pertencimentos coletivos e lealdades tradicionais no qual está imerso. Neste sentido, “a” Antropologia se torna, novamente nas palavras de Roberto da Matta, “um mecanismo dos mais importantes para deslocar nossa própria subjetividade” (da Matta, 2004:178). Um pouco mais adiante – e em pretensa continuidade com a afirmação anterior –, o autor argumenta que “o homem não se enxerga sozinho e precisa do outro como seu espelho e seu guia” (Idem). Neste ponto, caberia perguntar sobre o quê, concretamente, desloca nossa subjetividade: a antropologia ou o encontro com os outros? Precisamos da antropologia para desestabilizar nossa perspectiva sobre os demais ou, alternativamente, a própria participação na vida coletiva, sempre atravessada por tensões e contradições, já nos dá elementos para colocar em questão a suposta estabilidade das concepções que nutrimos? Que espécie de deslocamento subjetivo a antropologia disciplinar nos proporciona?
Diante destas questões, estamos atualmente trabalhando com a hipótese de que, ao reivindicar o estranhamento como atributo epistemológico seu, a disciplina tende – com perdão da redundância – a discipliná-lo e a sobrecodificar seus resultados. Assim, por exemplo, certas figuras institucionalmente autorizadas poderão recriminar um pesquisador por não ter eventualmente “estranhado o suficiente”. Além disso, poderão impor categorias para significar o estranhamento, de modo que a percepção da diferença e da singularidade em nós mesmos e nos demais possa ser narrada de acordo com os conceitos atualmente fixados pelos sistemas de intercâmbio intelectual legítimos. Por exemplo, quando da Matta escreveu sua apologia do anthropological blues, a diferença detectada pelo estranhamento dizia respeito à multiplicidade dos “universos de significação” nos quais estamos imersos enquanto seres humanos. De inspiração culturalista, este era um conceito amplamente disponível e legitimado nos debates intelectuais da época. Hoje, temos à nossa disposição outras tantas noções antropologicamente viáveis que servem para definir a natureza das diferenças empiricamente observadas no trabalho de campo. Voltaremos sobre esta questão em seguida, ao discutir a noção de “conceitos vendáveis”.
O terceiro mecanismo disciplinar identificado pelo GEAC foi o extrativismo cognitivo[xi]. Definimos extrativismo cognitivo como o ato de subsumir a experiência compartilhada ao conceito vendável. Este tipo de conceito, abundante em todas as disciplinas acadêmicas, é o objeto de troca privilegiado nos sistemas de intercâmbio que realizam o valor dos bens intelectuais. Ele move a máquina produtivista, eximindo-nos da reflexão exaustiva para nos compatibilizar com a publicação intensiva. Em outras palavras, o extrativismo cognitivo é o procedimento mediante o qual estabelecemos a funcionalização utilitária da experiência de trabalho de campo – ou seja, do encontro com os demais – no quadro conceitual de uma disciplina. A inscrição da experiência investigativa nos circuitos de troca acadêmicos exige que tanto os praticantes da antropologia como os seus interlocutores deixem – para usar uma sugestiva imagem de Edward Said (2001) – “paus e pedras” do lado de fora da disciplina. Como forças materiais e históricas, nós e “nossos” outros somos impotenciados no exato momento em que os pensamentos e práticas sociais que desenvolvemos são colocados a serviço de um projeto disciplinar autorreferencial. Autorreferencialidade é a tendência das antropologias disciplinares de priorizar suas categorias analíticas e suas agendas reflexivas como ponto de partida para endereçar questões ao “mundo empírico”. Graças ao fomento desta tendência, estamos autorizados a produzir peças escritas nas quais a experiência de trabalho de campo se converte no substrato empírico de descrições saturadas de conceitos vendáveis. Estes textos estão orientados aos mercados editoriais acadêmicos, onde poderão realizar-se como valor de troca sob a forma de publicações em revistas indexadas. A possibilidade de comprovar publicações desta natureza através dos currículos profissionais nos permite mobilizar uma série de recursos materiais que incluem bolsas de mestrado e doutorado, bolsas produtividade e financiamentos públicos para os programas de pós-graduação aos quais pertencemos.
O extrativismo cognitivo é intensamente acentuado pelo axioma produtivista, que consiste na forma dominante de atribuição de valor ao conhecimento produzido em âmbito acadêmico e, por conseguinte, nas antropologias de tipo disciplinar. A publicação intensiva de artigos científicos em revistas indexadas de elevada avaliação é a conduta esperada do antropólogo que pretende subsistir nas instituições universitárias[xii]. O chamado à publicação ganha efetividade através de tecnologias de avaliação da produção científica que distribuem legitimidades e ilegitimidades, êxitos e fracassos no espaço interior da disciplina. Poderíamos sintetizar o axioma produtivista da seguinte maneira: “o valor de uso de qualquer expressão do conhecimento é medido pelo seu valor de troca nos mercados editoriais”. O produtivismo tende a subsumir[xiii] tanto a qualidade dos vínculos estabelecidos entre pesquisador e interlocutor quanto o conteúdo das pesquisas (seu valor de uso) à quantidade de publicações contidas, potencialmente, nos resultados escritos do trabalho investigativo (seu valor de troca)[xiv]. Este movimento de realização do valor de troca potencial de qualquer esforço intelectual tende a bloquear a mobilização de outros valores de uso decorrentes do nosso labor. O critério de atribuição de valor de troca ao conhecimento produzido através da pesquisa acadêmica é a publicabilidade que, por sua vez, depende dos interesses promovidos como prioritários nas agendas investigativas estabelecidas. A constatação da vigência e da disseminação do axioma produtivista nos permite formular a hipótese de que o valor total de qualquer esforço reflexivo submetido aos aparelhos disciplinares tende a ser colonizado, hoje em dia, pela especulação sobre seu valor potencial nos mercados editoriais e em outros circuitos intra-acadêmicos de avaliação e validação do conhecimento. Isto dificulta a exploração de outras funcionalidades e modalidades de realização do trabalho investigativo que não se adaptem – tanto no que diz respeito aos seus produtos como no tocante à sua temporalidade – aos critérios de validação e aos prazos de avaliação atualmente fixados pelas agências financiadoras.
Os mecanismos de disciplinamento da prática antropológica que acabamos de descrever tendem a precarizar por diversos meios (ver Tabela 1) a possibilidade de enunciar, a partir do engajamento com os outros em situações concretas, um conhecimento ao mesmo tempo localizado e socialmente relevante. Por isso, afirmamos que o compromisso com a reprodução disciplinar tem como implicação inevitável a traição da promessa antropológica. Somente com a suspensão dos imperativos da disciplina poderemos conferir novos desdobramentos à promessa que orienta muitos de nós. Suspender tais mecanismos implica, no entanto, construir espaços de engajamento a partir dos quais redefinir as coordenadas do trabalho investigativo. Para efetivar esta redefinição de coordenadas, a alternativa preconizada por quem vos escreve consiste em incluir a pesquisa antropológica em agenciamentos coletivos politizantes[xv]. Inscritos nestes agenciamentos, temos a possibilidade de assumir, junto aos nossos eventuais companheiros de percurso, o controle da produção e dos produtos do conhecimento, garantindo, assim, sua vida autônoma mais além dos mecanismos de captura disciplinares. Relataremos, nos tópicos seguintes, como conseguimos explorar as conseqüências decorrentes dessa possibilidade graças a uma série de situações proporcionadas por nosso trabalho de campo no extremo norte do Uruguai.
Tabela 1
Principais efeitos de poder dos mecanismos disciplinares | |
Fronteira disciplinar | Marcação e exteriorização do outro; desmarcação e interiorização do sujeito cognoscitivo. |
Militância disciplinar | Docilização disciplinar do estranhamento; sobrecodificação da diferença. |
Extrativismo cognitivo | Subsunção da experiência compartilhada ao conceito vendável. |
Axioma produtivista | Subsunção do valor de uso do conhecimento produzido a sua publicabilidade. |
- Mais além do disciplinamento, de volta ao campo
Dez anos antes de nos instalarmos na cidade de Bella Unión, o presidente Tabaré Vázquez, à frente do primeiro governo nacional da coalizão de centro-esquerda Frente Ampla[xvi], estivera ali para anunciar seu compromisso com o fortalecimento da agroindústria canavieira local. A produção de cana-de-açúcar havia sido a maior geradora de postos de trabalho na cidade até o início dos anos noventa, quando sua rentabilidade se viu comprometida pela competição com o açúcar brasileiro no Mercado Comum do Sul (Mercosul). As tentativas de reconversão produtiva empreendidas pelos governos neoliberais da década de noventa não puderam absorver a mão-de-obra descartada pela produção açucareira em declínio, fazendo com que a recuperação desta última se tornasse uma bandeira consensual entre as organizações da sociedade civil bellaunionense – associações patronais incluídas. A chegada da Frente Ampla ao governo, com respaldo ativo dos sindicalistas de Bella Unión, gerou condições políticas propícias para uma intervenção desenvolvimentista denominada Proyecto Sucro-Alcoholero (PSA). Apresentado pelo governo como a pedra de toque do novo Uruguai produtivo, este projeto permitiu a estatização e modernização da usina local, que passou a produzir energia elétrica, biocombustível, alimento animal e açúcar.
Bella Unión é uma cidade de quinze mil habitantes situada na única tríplice fronteira que o Uruguai compartilha com o Brasil e a Argentina. Ao longo de boa parte do século XX, uma pujante agroindústria açucareira prosperou no local, mobilizando trabalhadores uruguaios, argentinos e brasileiros. Diferentemente de outros casos e contextos nacionais, a introdução da produção de açúcar no Uruguai não foi um instrumento ou resultado da colonização europeia e não responde necessariamente às clássicas definições do sistema de plantation. Ao contrário, a entrada da cana-de-açúcar no Uruguai data de meados dos anos quarenta e foi consequência das políticas econômicas neobatllistas, que canalizaram financiamento público para um grupo de produtores dispostos a experimentar alternativas agrícolas rentáveis no norte do país (ver Mereson, 2016; Moraes, 1990). Desde então, a cidade passou a ser identificada e conhecida no contexto nacional e regional pela presença da agroindústria açucareira. Em 1991, ano em que o Uruguai assinou o Tratado de Assunção e passou a integrar o Mercosul, esta situação começou a mudar. À época, uma frente de organizações sociais bellaunionenses denominada Intersectorial denunciava que existiam 120 produtores sem possibilidade de acessar créditos, 700 famílias sem fontes de renda e uma perda de 500 postos de trabalho no corte de cana. A entrada do Uruguai no Mercosul, portanto, colocou em xeque a viabilidade econômica da produção de açúcar em Bella Unión. Para mitigar os impactos negativos dessa situação, o governo decidiu incorporar o açúcar em sua lista de exceções ao sistema de livre comércio, estabelecendo um prazo para que os produtores de cana procedessem à reconversão produtiva com subsídios do Poder Executivo. Tal processo de reconversão incluiu uma drástica redução do cultivo da sacarígena, redundando na perda de 1.500 postos de trabalho[xvii].
A crise definitiva da indústria açucareira uruguaia teve seu auge em 2001, quando o então presidente Jorge Batlle (2000-2005) anunciou o fim das medidas protecionistas. Naquela época, que antecedia a vitória eleitoral da Frente Ampla, a cidade de Bella Unión era narrada pela imprensa nacional como uma região devastada pelo desemprego, castigada pela pobreza e ameaçada por uma epidemia de hepatite que equiparava os índices de mortalidade infantil da zona aos registrados em certos países da África subsaariana. Os próprios movimentos sociais bellaunionenses foram, em boa medida, responsáveis pela exposição deste cenário catastrófico às audiências nacionais, esgrimindo-o como índice de um histórico descaso governamental com o norte uruguaio. Neste contexto, não surpreende que a capacidade da esquerda de mudar para melhor a vida do povo fosse inicialmente colocada à prova no território habitado pelos pobres por excelência: Bella Unión. Contudo, quando o ambicioso Proyecto Sucro-Alcoholero começava a dar seus primeiros passos, os mesmos sujeitos em nome dos quais a esquerda havia inaugurado o novo Uruguai produtivo tomaram uma decisão inesperada.
No dia 15 de janeiro de 2006 a imprensa montevideana noticiava que um conjunto de organizações de trabalhadores e pequenos produtores rurais encabeçadas pela Unión de Trabajadores Azucareros de Artigas (UTAA) tinham ocupado terras do Estado em Bella Unión para denunciar sua exclusão política do projeto de desenvolvimento traçado pelo governo frenteamplista. Estes ocupantes de terras não se enunciavam unicamente a partir da carência, da doença e do desemprego; eles também reivindicavam que o PSA os incluísse entre seus beneficiários na condição de provedores de matéria prima para a usina da empresa estatal Alcoholes del Uruguay S.A. (ALUR). Fiéis ao horizonte político introduzido pela fundação do seu sindicato, em 1961, os assalariados que ocupavam terras públicas em 2006 demandavam medidas governamentais que lhes possibilitassem transcender a própria condição de trabalhadores estacionais dependentes de um salário. Assim como eles, os militantes sindicais da década de sessenta também souberam conjugar a luta salarial com o lema “tierra para quien la trabaja”, reclamando a expropriação de latifúndios locais e sua divisão entre os cortadores de cana e suas famílias[xviii]. Ainda que o então governo de Jorge Pacheco Areco (1967-1972) tenha procedido à expropriação parcial desses latifúndios, sua distribuição ocorreu apenas durante a ditadura civil-militar uruguaia, de acordo com critérios muito distantes dos preconizados pela UTAA antes de sua proscrição pelo regime de exceção iniciado em 1973. Passados 44 anos da fundação do sindicato, a reativação da prescrição política instalada em 1961 – “tierra para quien la trabaja” – permitiu que a UTAA problematizasse o Proyecto Sucro-Alcoholero a partir de um horizonte de possibilidades inicialmente excluído das diretrizes norteadoras da política de desenvolvimento oficial.
Em meados de 2015, quando de nossa mudança para Bella Unión, a ampliação da agroindústria sucroalcooleira havia comportado a realização de sete experimentos de acesso à terra protagonizados por membros e ex-membros da UTAA e de outras organizações de trabalhadores e pequenos produtores da cidade. Naquele momento, o sindicato atravessava uma dramática renovação de quadros ocasionada por conflitos internos decorrentes, em alguma medida, do próprio papel jogado pela entidade no contexto do PSA. O fato de alguns dirigentes terem acessado terras do Instituto Nacional de Colonización dava lugar a suspeitas sobre a intensidade do seu compromisso com os trabalhadores rurais. As novas lideranças que assumiram a direção da UTAA em junho de 2015 sugeriam que seus predecessores já não eram “assalariados”, mas sim “produtores” contratantes de mão-de-obra, condição que os colocaria num potencial conflito de interesses com as bases da organização.
Na ocasião da primeira visita que fizemos aos dirigentes sindicais recém-empossados, procuramos tecer algumas indagações sobre “la política” que orientaria seu mandato. “No tenemos nada que ver con la política – respondeu prontamente um dos sindicalistas –, cada uno de nosotros tiene sus creencias, pero estamos acá para defender a los trabajadores”. Intuímos uma falha de compreensão, decorrente da polissemia da palavra “política”, e procuramos dissipar o mal entendido reformulando nossa pergunta: “¿qué es lo que piensan hacer en defensa de los trabajadores?” Nossos interlocutores definiram seus propósitos em contraste com os que atribuíam à direção anterior. Neste sentido, eles aludiram à necessidade de discernir entre os interesses dos “produtores” – incluídos aqueles oriundos do próprio sindicato – e os dos “trabalhadores”, primando pelos segundos. Também fizeram questão de frisar que todos os membros da nova diretoria eram cortadores de cana e afirmaram sua disposição de não negociar com os patrões pelas costas dos assalariados.
A luta pelo acesso a terra não parecia ser, naquele momento, uma preocupação prioritária dos novos dirigentes da UTAA. Ela surgia em seus enunciados como uma situação geradora de condutas e interesses problemáticos que precisavam ser identificados e, em seguida, separados dos objetivos principais da ação sindical. Por um instante, chegamos a pensar que a nova orientação estratégica do sindicato poderia significar uma retirada das disputas em torno da questão agrária, o que representaria o fechamento da sequência de reivindicações fundiárias desencadeada em 2006. Os meses subsequentes do trabalho de campo desmentiriam quase todas essas suposições. Dizemos “quase” porque uma delas demonstrou ser correta: a sequência iniciada em 2006 encontrava-se, de fato, temporariamente encerrada. E logo seríamos chamados a fazer parte de um novo processo político em vias de abertura.
- Duas promessas
O que ocorreu depois de nosso primeiro encontro com os novos dirigentes da UTAA não estava previsto no projeto de pesquisa que garantira para um de nós a bolsa de estudos doutorais que financiou parte da estadia de seis meses em Bella Unión. Tampouco era compatível com os discursos mais convencionais sobre o método e o objeto da análise antropológica, mas estava sintonizado, isto sim, com uma “ética ativista”[xix], com a opção pelo trabalho de campo e com a paixão pela teoria. Estes três elementos, que nos fizeram aderir à promessa da antropologia nos primeiros anos da graduação, passariam a orientar, a partir de agora, nosso engajamento com um projeto político que buscava redimir o que mais adiante denominaremos “promessa do desenvolvimento”[xx].
3.1 A promessa da antropologia
A disciplina antropológica e o desenvolvimento são semelhantes no seguinte sentido: tanto uma como o outro assentam sua capacidade de mobilização numa promessa que seguidamente traem. Como vimos ao longo do primeiro tópico, no transcorrer de sua vida acadêmica o estudante de antropologia, interpelado pelo axioma produtivista, vê a potência do encontro etnográfico ser progressivamente subordinada aos parâmetros de utilidade, relevância e legibilidade promovidos pelos mercados editoriais e pelos mecanismos de avaliação que distribuem os êxitos e os fracassos no mundo da disciplina. Estabelece-se, assim, um efeito de fronteira entre a antropologia disciplinar acadêmica e seu exterior “empírico”. Tal efeito sobredetermina o engajamento criativo do trabalho de campo, compelindo o antropólogo a assumir uma postura extrativista não só em relação àqueles com quem compartilha o espaço-tempo da investigação, mas também diante das próprias motivações que o conduziram ao encontro etnográfico. O extrativismo cognitivo coloca os construtos teóricos e os relatos originados pelo encontro investigativo à serviço do abastecimento da máquina disciplinar herdada. Mediante este procedimento, os resultados da pesquisa são primeiro dissociados dos eventuais imperativos político-pragmáticos originados numa experiência social compartilhada e, em seguida, transmutados no que Tomás Guzmán (2012) denominou “memória de Funes” etnográfica: de repente nos esquecemos de por que lembramos tanto, de por que tínhamos “estado lá”. Este esquecimento induzido dará origem aos “dados” passivos do trabalho de campo, os quais servirão, a partir de agora, para fazer proliferar insights, conceitos vendáveis, páginas de currículos, bolsas de estudo e financiamentos institucionais. Com sorte, nos ajudarão a conseguir trabalho na universidade pública ou, mais provavelmente, fora dela, no setor privado. Romper com este ciclo é, sem dúvidas, uma escolha ética, mas isto não a torna fácil, já que as instituições extrativistas, públicas ou privadas, concentram boa parte das possibilidades de emprego disponíveis aos cientistas sociais. Nada nos impede, contudo, de confiar na promessa que inicialmente nos comoveu. Poderíamos sintetizá-la assim: “o encontro com o outro é lugar de perguntas, respostas e sentido”. Convencidos disto e desconfiados dos procedimentos disciplinares que procuram, por sua vez, instaurar perguntas, respostas e sentidos tendentes a subordinar as coordenadas intelectuais e existenciais fundadas na situação de encontro, chegamos a Bella Unión abertos a tecer alianças que nos permitissem explorar outras premissas para a construção do conhecimento e novos lugares para a sua enunciação.
3.2 A promessa do desenvolvimento
O projeto de desenvolvimento do governo frenteamplista em Bella Unión respondeu às expectativas de estabilidade econômica nutridas por diversos atores sociais da cidade, fossem eles trabalhadores assalariados, comerciantes ou produtores rurais mais ou menos capitalizados. Quando a UTAA passou a disputar de forma contundente os sentidos do PSA a partir da ocupação de terras de 2006, o fez motivada pela promessa de que a intervenção econômica na zona possuía um caráter “social”, como afirmavam os representantes do governo naquela época. Aferrado a esta promessa, o sindicato dos cortadores de cana procurou encaminhar suas demandas tanto no plano sindical como mais além dele, no terreno da reivindicação fundiária, de acordo com uma vocação política inaugurada em 1961 e atualizada com intensidade variável ao longo da história da organização. Em 2015, contudo, Érico, um dos novos dirigentes do sindicato, constatava, entre perplexo e inconformado, que “esto era para ser un proyecto social, pero es un proyecto productivo”. Estava referindo-se, entre outras coisas, ao endividamento generalizado dos trabalhadores que haviam acessado terras para produzir cana-de-açúcar com financiamento da empresa ALUR. Sérgio, o secretário geral da UTAA, lamentava os constantes conflitos internos das novas colônias agrícolas e questionava duramente o não cumprimento de todas as cláusulas do convênio laboral por parte daqueles que, tendo sido trabalhadores rurais, agora empregavam mão-de-obra assalariada em suas plantações. Segundo ele, “no era eso lo que los viejos [os fundadores do sindicato] querían”. E se perguntava: “¿qué es lo que ellos querían?”, para concluir em seguida: “tenemos que estudiarlo”.
Estes enunciados, recorrentes nas reuniões sindicais das quais começamos a participar a partir de julho de 2015, nos levaram a avaliar de outra maneira o “mal entendido” suscitado pela palavra “política” no primeiro encontro que mantivemos com os dirigentes recém-empossados. Não era questão de polissemia. Ali estava em jogo a negação de uma política e não exatamente sua ressignificação. E se dizer “não” para uma política é eventualmente dizer “sim” para outra coisa, o que estávamos presenciando nas sucessivas reuniões do sindicato era a tentativa de formular a afirmação de algo diferente. Os novos dirigentes não menosprezavam a priori a problemática do acesso a terra; a dificuldade residia, de fato, nas condições que determinavam o acesso e a permanência dos trabalhadores nas terras outorgadas pelo governo. Repensar radicalmente tais condições passava por um procedimento inicial de negação. No tocante à avaliação do PSA, partia-se da conclusão de que a promessa do “projeto social” fora substituída, compulsoriamente, pela realidade do “projeto produtivo”. A narrativa laudatória dessa substituição já havia sido explicitada numa entrevista radial concedida em 2013 por Raúl Fernando Sendic, o então presidente da Administración Nacional de Combustibles, Alcohol y Portland (ANCAP), principal acionista da empresa ALUR. Sendic dizia o seguinte: “En su momento nuestra lucha fue defender la caña de azúcar (…) y hoy entendemos que nuestra lucha debe estar concentrada en lograr una mayor productividad en esas chacras y lograr más toneladas de caña por hectárea y un mayor rendimiento en la producción del azúcar”.
Os dirigentes do sindicato, por sua vez, procuravam interromper esta periodização supostamente inexorável dos fatos. Do Proyecto Sucro-Alcoholero eles retinham não apenas a defesa da cana – que se encadeia, logicamente, ao compromisso com sua viabilidade econômica enquanto cultivo –, mas também a promessa de um “projeto social”. Convencidos do esgotamento de tal projeto num horizonte produtivista que multiplicava novas e velhas subordinações, nossos companheiros na direção do sindicato recuperavam a promessa inicial e se esforçavam por projetar, a partir dela, um futuro diferente recorrendo à memória das prescrições políticas de sua organização. Ao empreender esse esforço, eles se descolavam do “nós” enunciado por Sendic e se defrontavam com a tarefa de agenciar um “nós” diferencial, um novo sujeito para sustentar a promessa do “projeto social” agora que ela havia sido resgatada da voragem do “projeto produtivo”.
“Queremos saber la opinión de ustedes, no es sólo escuchar lo que nosotros decimos, queremos que ustedes participen, que nos den una mano. De aquí a unos años, cuando les pregunten cómo estuvo en Uruguay, van a poder decir que hicieron algo, que participaron, que aquello es de ustedes también. Es mucho más lindo así, ¿no?”. Com estas palavras generosas, Érico nos convidou, numa tarde de finais de julho de 2015, para somar esforços na formulação e na realização de uma política emergente; política que desde então nos mobiliza, fundando as perguntas e os sentidos de nosso engajamento intelectual. Aqui, a antropologia é uma desculpa, ou melhor, uma promessa que nos lança no mundo.
- Sobre encontros, promessas e traições
Da retomada de duas promessas – a da antropologia tal como nós a apreendemos no GEAC e a do desenvolvimento tal como nossos companheiros da UTAA a concebem –, assim como da vontade de enfrentar as carências/traições que elas permitem diagnosticar, surgiram as condições para um agenciamento coletivo politizante e para a produção do conhecimento como produção de possíveis. As repercussões disto em nossa prática investigativa, bem como nas lutas da UTAA, foram variadas. Por razões de espaço, evocaremos apenas aquelas que nos parecem mais destacáveis tendo em vista o argumento que viemos desenvolvendo nesta intervenção.
Em primeiro lugar, é evidente que nossa relação com a teoria antropológica em geral e com a antropologia do desenvolvimento em particular acabou fortemente redefinida depois de Bella Unión. Se no contexto do GEAC nós já evocávamos a necessidade de explorar as possibilidades de uma antropologia “delirante” (Guzmán; Moraes, 2014), cujo movimento reflexivo se organizasse menos em torno da narrativa da “ordem” – simbólica, discursiva, cultural, etc. – do que da detecção de suas inconsistências, então a estadia no norte uruguaio nos obrigou a aprofundar a reflexão sobre as condições teóricas e epistemológicas para efetivar uma abordagem desta natureza. Precisávamos plasmar um movimento reflexivo capaz de acompanhar as descobertas que íamos empreendendo com nossos companheiros de Bella Unión. Isto implicava reorganizar a teoria de modo a compatibilizá-la com a enunciação das possibilidades anunciadas pela política com a qual nos comprometemos enquanto pesquisadores. A teoria era, portanto, uma forma de responder ao convite para “opinar”; era o espaço onde ocorria a apropriação singular de uma experiência compartilhada; apropriação esta sempre externalizada e sempre reformulada em meio às mutações da situação que lhe servia de referência. Os resultados destes esforços teóricos apareceram em algumas sínteses parciais escritas no estilo acadêmico (Moraes, 2015a; 2015b) e repercutiram, também, nos argumentos que vieram a sustentar publicamente as apostas políticas que nossos interlocutores estavam colocando em prática.
A investigação social, por sua vez, respondeu às ênfases e às preocupações instauradas pelo engajamento político. Cientes do nosso interesse investigativo inicial, os dirigentes do sindicato nos convidaram para ajudar na organização da nova Comisión de Tierras da entidade, cujo objetivo seria elaborar uma proposta de acesso à terra compatível, por um lado, com o “projeto social” reivindicado pela UTAA e, por outro lado, adequada às condições econômicas, às habilidades laborais e aos projetos de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras que se aproximavam do sindicato. Ao longo de um mês, organizamos oficinas semanais com um grupo de cerca de vinte aspirantes a terras. A ideia era conhecer-nos mutuamente e formular uma modalidade de colonização agrária que, pelo menos em teoria, pudesse evitar as vicissitudes das anteriores experiências produtivas protagonizadas pelos trabalhadores. Militantes da UTAA que já integravam outros empreendimentos produtivos foram convidados a visitar a Comisión de Tierras para compartilhar sua avaliação das experiências em curso e oferecer conselhos e orientações aos futuros assentados. Fazendo eco das inquietações de Sérgio, decidimos estudar o que queriam os velhos dirigentes do sindicato e, para tanto, saímos atrás dos arquivos pessoais guardados por lideranças históricas da organização. Ali, obtivemos inspiração para pensar as características organizativas de um projeto produtivo controlado pelos trabalhadores. Não era a primeira vez que o sindicato impulsionava este tipo de proposta e nada mais justo que fazer uso do patrimônio intelectual da organização para elaborar uma reflexão relativamente autônoma sobre o acesso à terra.
A troca de ideias proporcionada pela Comisión de Tierras permitiu que discutíssemos e redigíssemos uma Carta Política e algumas “Bases para la creación de una unidad productiva diversificada con miras a la elaboración de una política global de reforma agraria” (UTAA, 2015). Ambos os documentos serviram para enunciar, diante de diferentes organismos governamentais, meios de comunicação e movimentos sociais de todo o país, os propósitos políticos de uma nova ocupação de terras do Estado que se consumou no dia 14 de novembro de 2015. Esta medida de luta estendeu-se durante um mês, até que o Instituto Nacional de Colonización aceitasse conceder terras e recursos financeiros para a implantação de um experimento produtivo diversificado, enfocado na produção de outros gêneros alimentícios mais além da cana-de-açúcar. Este acontecimento encerrou a sequência de reivindicações fundiárias circunscritas ao horizonte político-estratégico do Proyecto Sucro-Alcoholero e fez aparecer uma nova demanda política, que os ocupantes de terras sintetizaram, em novembro de 2015, com o seguinte lema: “por una reforma agraria real y generosa”.
O horizonte da reforma agrária foi parcialmente ignorado pelos representantes do Instituto Nacional de Colonización, que desde o início dos diálogos com os ocupantes de terras, procuraram circunscrever a negociação aos aspectos logísticos da “Carta Política” e das “Bases” apresentadas pelo sindicato. Sua intenção parecia ser a de encaminhar uma solução pontual para um problema que eles consideravam absolutamente pontual. A postura do sindicato, no entanto, foi – e continua sendo – outra. Para a organização, a “Carta Política” dizia respeito a todos os trabalhadores rurais do país e um problema pontual de Bella Unión suscitava, portanto, uma solução potencialmente universalizável. Desde a ocupação de terras, o sindicato vem se mobilizando neste sentido. Já para os protagonistas da nova unidade produtiva, o desafio atual é garantir as melhores condições possíveis para o êxito de um empreendimento em nome do qual eles empenharam grandes esforços familiares. Hoje, a construção de uma cooperativa agrária canaliza suas expectativas de uma vida menos determinada pela inconstância do trabalho sazonal, pela escassez relativa de alternativas laborais e pela ameaça constante de empobrecimento e desemprego que pesa sobre a geração dos seus filhos.
Quanto a nós, continuamos acompanhando o desenrolar da promessa em favor da qual militamos e pesquisamos. Além disso, agora também precisamos dedicar nossos esforços intelectuais para produzir a tese de doutorado que saldará a dívida contraída com as instituições financiadoras. Será possível redigi-la sem responder aos imperativos do extrativismo cognitivo? Conseguiremos evitar que os resultados da pesquisa em Bella Unión sejam colocados a serviço de fins totalmente alheios – e eventualmente contraditórios – aos da luta política que os tornou possíveis e necessários? Criar as condições de possibilidade para responder afirmativamente a estas questões é um esforço com o qual vale a pena engajar-se. De antemão, contudo, já podemos dizer que nossa antropologia produziu seus resultados cruciais na medida em que nos permitiu ser co-autores de um agenciamento coletivo promissor, baseado na partilha de perguntas e sentidos mobilizadores.
Ao colaborar para redimir, na prática, a promessa do desenvolvimento, gostamos de pensar que também redimimos, para nós mesmos, a promessa de certa antropologia; uma promessa que sinaliza a possibilidade de fundar no encontro etnográfico a produção de outros mundos de sentido e de outros sentidos para o mundo. Isto pôde acontecer à custa de nos esquecermos temporariamente dos imperativos da máquina disciplinar, assim como nossos companheiros da UTAA também colocaram entre parênteses a prescrição desenvolvimentista para imaginar outro futuro possível. Talvez o principal desafio agora, para nossos interlocutores e para nós mesmos, seja continuar atentos à distância que separa uma promessa de sua traição, por mais que os realistas procurem apresentá-las como indiscerníveis e os fatalistas tendam a afirmar que a segunda é a realização inevitável da primeira.
Notas
[i] No momento de sua fundação, em 2011, o GEAC estava formado por dez membros. Quatro deles eram estudantes de graduação em Ciências Sociais e seis estudantes de mestrado e doutorado em Antropologia Social, todos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), localizada em Porto Alegre, região sul do Brasil. Com o passar dos anos, o GEAC deveio um coletivo mais restrito, orientado à realização de práticas coletivas de escrita e a dinamização de espaços de auto-formação e intervenção teórico-política.
[ii] Em sintonia com Suely Rolnik, entendemos o trabalho cartográfico como um movimento empírico e reflexivo que demanda o envolvimento do cartógrafo com as intensidades que povoam o presente, consistindo num “desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da paisagem” (Rolnik, 1989:15). Este “desenho” não é outra coisa senão uma prática de imaginação teórica materializada em categorias e referências que, nas palavras de Rita Segato, “tornam habitável e pensável a experiência que vamos vivendo” (apud Sztulwark, 2016 s/n). No caso do GEAC, a cartografia se desenvolveu através do diálogo constante com colegas e professores que conviviam conosco num mesmo espaço de formação (ver nota número 2). Os resultados dessas conversas foram debatidos e analisados ao longo de duas oficinas abertas realizadas em 2016, das quais participaram estudantes e docentes de variadas instituições no Brasil e na Colômbia (cf. GEAC, 2016; GEAC, 2017).
[iii] No momento de realização deste exercício cartográfico, os membros do GEAC eram todos estudantes de graduação em Ciências Sociais e de mestrado e doutorado em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
[iv]A experiência de trabalho de campo em Bella Unión fez parte de uma pesquisa de doutorado sobre a reativação da agroindústria canavieira uruguaia, levada adiante por Alex Moraes com financiamento do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (Conicet-Argentina).
[v] Contra a ideia de uma única antropologia, Eduardo Restrepo (2012b) propõe afinar nosso olhar através da noção de “sistema-mundo da antropologia”. Tal sistema descreveria um campo heterogêneo, cruzado por circuitos transinstitucionais de diálogo e poder nos quais se reproduz, com maior ou menor dificuldade, certo senso comum disciplinarista a respeito do que deve(ria) ser o trabalho antropológico legítimo. Geopoliticamente, o gradiente de legitimidade começa no norte e termina no sul global. Institucionalmente, as universidades aparecem como âmbito privilegiado de onde falar sobre antropologia e ser antropólogo/a. A validação dos conhecimentos produzidos no âmbito do sistema-mundo antropológico toma como critério quase exclusivo sua adequação ao consenso hegemônico fixado transitoriamente em torno das matrizes teóricas da moda.
[vi] O zine circulou em formato impresso até o ano de 2013, quando passamos a priorizar o Blog do GEAC (http://www.antropologiacritica.wordpress.com) como meio privilegiado de divulgação dos debates do grupo. As primeiras edições da Tinta Crítica também podem ser acessadas através de nosso blog na sessão dedicada ao jornal: https://antropologiacritica.wordpress.com/tinta-critica/
[vii] Este tipo de antropologia, que se reproduz nas universidades, possui, como iremos demonstrar ao longo deste sub-tópico, uma série de características que o singularizam.
[viii] As práticas antropológicas institucionalizadas não existem apenas na universidade, elas também se fazem presentes em outras instituições estatais e privadas que demandam técnicas e conceitos afiançados pelas antropologias universitárias disciplinares e procuram funcionalizá-los de acordo com um conjunto de objetivos administrativos.
[ix] A ideia de militância disciplinar é caudatária das reflexões inicialmente realizadas por Juliana Mesomo (2016) em torno do que ela chama “um processo de dessubjetivação” através do qual os estudantes de antropologia são convencidos de que precisam se des-identificar das suas experiências e inquietações para poder se identificar, em seguida, com o “ponto de vista antropológico” como se este fosse uma espécie de segunda natureza. Neste processo, os sujeitos se dessubjetivariam ou se desidentificariam do que foram, são e gostariam de ser para se identificarem com a “subjetividade antropológica” e, por conseguinte, delegarem a ela a função de parâmetro ético, epistemológico e político para pensar e atuar frente às diferenças sociamente existentes.
[x] Observemos que as práticas do estranhamento e da familiarização, tal como as define Roberto da Matta, não se aplicam apenas aos “outros”, situados na exterioridade disciplinar, mas também aos enunciados produzidos pelo próprio antropólogo, o que implica uma atualização da fronteira disciplinar no espaço subjetivo do praticante da antropologia. Devemos estranhar a nós mesmos através das categorias fornecidas pela disciplina para alcançar uma perspectiva antropológica a respeito da singularidade que nos caracteriza.
[xi] A noção de extrativismo também foi abordada pelo Coletivo Juguetes Perdidos (2011) tendo em vista o cotidiano dos jovens que habitam a região metropolitana de Buenos Aires. Para os membros do coletivo, há uma série de “economias” (economias ilegais, policiais, redes de tráfico, máfias, etc.) que são capazes de extrair mais-valia da vitalidade, dos conhecimentos, dos corpos e das habilidades destes jovens. Por outro lado, existem também diferentes “máquinas de enunciação” (acadêmicas, midiáticas, jornalísticas, televisivas, literárias e políticas) que buscam conhecer e incorporar suas linguagens e experiências para estetizá-las e vender mercadorias, para potencializar iniciativas políticas ou para publicar estudos e romances sobre as vidas destes jovens. Referidas máquinas de enunciação “realizan un extractivismo de modos de vida”. Como alternativa ao extrativismo, sugerem a prática do “roubo mútuo”, ou seja, uma interação baseada na possibilidade de que ambos, pesquisador e interlocutor, possam deixar e levar algo das situações de encontro.
[xii] No tocante à avaliação dos programas de pós-graduação em antropologia das universidades brasileiras, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior) confere um peso decisivo (40% sobre a nota final) às publicações de alunos e docentes em revistas indexadas, que são classificadas como A1, A2 e B1, de acordo, entre outros fatores, com seu tipo de indexação – nacional ou internacional. Espera-se, por exemplo, que os docentes de programas de pós-graduação em antropologia avaliados com notas 6 e 7 pela CAPES (notas máximas) publiquem cerca de dois artigos por ano em revistas indexadas (Moraes, 2014). Quem não cumpre estas metas pode chegar a perder o posto de professor-pesquisador da pós-graduação, ficando circunscrito às salas de aula da graduação. Já os processos de seleção de novos estudantes para os cursos de mestrado e doutorado incluem a contabilização da produção científica dos candidatos, de acordo com os parâmetros de valoração estabelecidos pela CAPES.
[xiii] Sustentamos a tese de que existe um isomorfismo entre o axioma produtivista e a subsunção – ou sobredeterminação – do trabalho ao capital no âmbito da produção de valores de troca. É apenas sobre a base do axioma produtivista – e dos condicionamentos que ele coloca à circulação dos produtos do conhecimento – que o trabalho intelectual se torna produtivo no âmbito acadêmico.
[xiv] O Colectivo Indocentia (2016) utiliza um enfoque semelhante ao nosso para avaliar as consequências do produtivismo no sistema universitário espanhol. Já o Coletivo de Escrita SIGJ2 (2012) apresenta algumas alternativas para interromper pontualmente as conseqüências do produtivismo mediante a suspensão da competição individualizada nos mercados editoriais.
[xv] Por agenciamentos coletivos politizantes entendemos a geração de um espaço outro de militância – que não o da “militância disciplinar” – no marco do qual construir perguntas, respostas e sentidos que orientem a produção de conhecimento científico-social. Como veremos nos tópicos seguintes, estes espaços outros de militância proporcionam critérios de valoração do conhecimento e usos da teoria que se afastam daqueles promovidos pelos mecanismos disciplinares.
[xvi] O “Encuentro Progresista-Frente Amplio-Nueva Mayoría” (em português, Frente Ampla) é uma coalizão permanente de partidos de esquerda e centro-esquerda fundada em 1971 no Uruguai. Em 2004, a Frente Ampla venceu as eleições nacionais e chegou pela primeira vez à Presidência da República, rompendo com quase dois séculos de alternância no poder entre os dois partidos tradicionais: Nacional (ou Blanco) e Colorado.
[xvii] As informações que utilizamos para delinear o panorama social da década de 1990 em Bella Unión fazem parte de um denso trabalho histórico e etnográfico empreendido por Silvina Mereson (2016) e publicado em livro sob o título: “Los peludos: cultura, política y nación en los márgenes del Uruguay”. Nas partes finais deste livro, após reconstruir a trajetória da Unión de Trabajadores Azucareros de Artigas desde 1961, Merenson realiza uma cuidadosa análise do período de crise da agroindústria canavieira uruguaia. Seu estudo permite entender como o movimento sindical dos cortadores de cana interpretou a situação de crise econômica e se adaptou à conjuntura, desenvolvendo novas pautas políticas baseadas na reivindicação de direitos sociais e de acesso à terra.
[xviii] A UTAA foi fundada em 1961 sob o influxo de um pensamento de esquerda cujo programa de transformação da sociedade havia outorgado uma centralidade até então inédita à questão agrária. Durante a década de sessenta e até o golpe de Estado civil-militar de 1973 a UTAA soube conjugar suas respectivas demandas sindicais com a luta agrária sob a consigna “tierra para quien la trabaja”.
[xix] Ética ativista é um conceito criado no marco do GEAC para denotar a postura de valorização do encontro com os outros e dos eventuais compromissos dele decorrentes. A “ética ativista” e a “militância disciplinar”, discutida no tópico 1, coexistem numa articulação conflitiva já que a segunda “vampiriza” a primeira, ou seja, vale-se da vontade de encontro que ela porta ao mesmo tempo em que ergue sua legitimidade sobre a negação de tudo aquilo que, na situação de encontro, fragiliza a suposta primazia enunciativa da disciplina.
[xx] Baseado numa pesquisa realizada na comunidade de Usibamba, nos Andes peruanos, Pieter de Vries (2015; 2013; 2007) aborda os processos de desenvolvimento rural como máquinas desejantes que geram promessas para, posteriormente, acabar com elas. Isto levaria à conformação de linhas de devir coletivo que retomam, em diferentes momentos da trajetória histórica de um grupo humano, a memória de desejos não cumpridos e possibilidades suprimidas. Tal memória pode, eventualmente, passar a animar novos processos de luta e transformação social. A perspectiva de Pieter de Vries inspirou a avaliação das dinâmicas políticas nas quais nos vimos inseridos ao longo da pesquisa de campo em Bella Unión.
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