Teoria Crísica

A dialética da política emancipatória: GEAC dialoga com Michael Neocosmos.

A política emancipatória existe quando observamos essa dialética entre, por um lado, um pensamento mais estatal, um pensamento “expressivo” da classe, da localização, da situação e, por outro lado, um pensamento excessivo que se propõe a falar de toda a humanidade. Quando existe essa dialética, podemos falar de política emancipatória. As ciências sociais têm dificuldade de pensar a emancipação porque são ciências do lugar, da localização. Ou seja, as mulheres pensam de certa forma, os homens de outra forma, as etnias se ocupam de questões étnicas, os camponeses se interessam pela terra, os operários se interessam pelo salário, etc. Parte-se do pressuposto de que o lugar social é que determina a subjetividade. Isto é um pensamento estatal: cada um permanece no seu lugar.

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* * *

Uma feliz coincidência permitiu que nos encontrássemos em Pretória. Michael Neocosmos recém havia retornado do Canadá, onde participara do congresso da Associação Internacional de Sociologia. Quanto a nós, estávamos de passagem pela África do Sul, rumo a um casamento em Moçambique. Já sabíamos, há alguns meses, que nossos percursos coincidiriam com os de Michael. Em abril de 2018, entramos em contato com ele para compartilhar nossa admiração pelo seu trabalho e propor uma troca de ideias, frente a frente, quando viajássemos à África. Michael nos respondeu de forma solícita e amável. Casualmente, ele regressaria da América do Norte enquanto ainda estivéssemos em Johanesburgo, distante apenas uma hora de carro de Pretória. Era possível encontrar-nos e não deixamos passar a oportunidade.

Nossos passos finalmente se cruzaram no Café 41 Groenkloof. Era agosto e a manhã estava ensolarada. Depois de pesquisar algumas fotos na internet, não foi difícil reconhecer Michael: barba grisalha, óculos, cabelos brancos e, no topo, uma boina que recordava vagamente aquela com que Lênin se deixava fotografar durante os primeiros anos à frente do estado soviético.

Michael trilhou uma trajetória de vários anos no pensamento marxista. Recentemente, ele tem procurado atualizar as paixões libertárias de outrora mais além do terreno da economia política, dedicando-se ao estudo da “política emancipatória”. Sua obra mais recente – e provavelmente mais célebre –, intitulada Thinking Freedom in Africa: Toward a theory of emancipatory politics (Wits University Press), recebeu o prêmio Frantz Fanon em 2017, ano em que se celebrou o centenário da Revolução de Outubro. No livro em questão, Michael assume que os estados pós-coloniais africanos carecem de legitimidade perante seus próprios cidadãos. Eles assentam sua governabilidade em uma administração de interesses conflitantes que busca preservar a capacidade de mando de uma oligarquia reconstituída. Neocosmos insiste em que pensar alternativas à atual conjuntura africana exige uma razão libertária que se distancie resolutamente da tentação de conceber a transformação social em termos estatais. Adotar esta atitude não consiste em um esforço criativo individual. Ao contrário, é necessário sintonizar as sensibilidades teóricas pessoais com o pensamento imanente àquelas situações excepcionais nas quais a ação política das coletividades humanas excede a defesa de interesses regulados pelo Estado, passando a afirmar uma política universal e igualitária. As ciências sociais convencionais teriam uma grande dificuldade epistemológica para conseguir operar essa mudança de sintonia subjetiva. Em Thinking Freedom…, Michael explica por que: “é importante notar que, em relação à política, os movimentos sociais, bem como as ONGs, constituem, sempre, interesses organizados. Em outras palavras, como eles invariavelmente representam interesses de vários tipos, suas políticas são, esmagadoramente, políticas da representação, de modo que sua existência (por mais que eles possam “resistir”, “protestar” ou “criticar”) não nos oferece muito mais do que exemplos populares de políticas estatais. Assim é como a sociologia dos movimentos sociais os analisa, mesmo quando tais movimentos se tornam capazes de inventar uma política do excesso sobre a sua localização social. A sociologia atualmente existente não foi capaz de transcender uma visão da consciência enquanto representação”.

Michael tem familiaridade com a produção teórica desenvolvida do lado de cá do Atlântico. Ele dedicou seus estudos de doutorado à análise da reforma agrária chilena dos anos setenta e, mais recentemente, tomou contato com o pensamento político de autores latino-americanos contemporâneos, como Raquel Gutiérrez Aguilar e alguns expoentes da chamada inflexão decolonial. Nas conjeturas de Michael, a teoria social made in América Latina estaria muito mais enraizada do que suas congêneres africanas na prática concreta dos movimentos populares. Neste ponto, suas intuições soavam exageradamente otimistas aos nossos ouvidos. Provavelmente, boa parte dos questionamentos que ele endereça à atual miséria do pensamento crítico em solo africano sejam, também, aplicáveis à América Latina em geral e ao Brasil em particular. Passada a efervescência criadora de quarenta anos atrás, e em meio à profissionalização acadêmica de boa parte dos cientistas sociais, vozes militantes como as de Raquel Gutiérrez – mas também poderíamos mencionar outras bastante conhecidas, como as de Silvia Rivera, Raúl Zibechi, Arturo Escobar, Maristella Svampa, María Galindo e Colectivo Situaciones – são, apesar de audíveis, relativamente excepcionais. Nossa conversa com Michael começou, justamente, pela elucidação destas questões:

Michael Neocosmos

Michael Neocosmos: Os intelectuais sul-africanos não são como os intelectuais sul-americanos. Eles estão desconectados, em geral, dos movimentos sociais. Depois da década de noventa, a maior parte dos intelectuais críticos entraram para o Estado, de uma forma ou de outra.  Nesta condição, foi difícil, para eles, desenvolver uma concepção crítica do aparelho de Estado. Certas concepções marxistas ou nacionalistas tradicionais dominam o pensamento desses intelectuais. Também há certo mimetismo em relação ao que ocorre nos Estados Unidos. Não é como na América do Sul, onde há uma tradição crítica que se remonta à oposição ao “imperialismo ianque”, desde meados do século XX.

Já em outros países da região, as coisas não são exatamente como na África do Sul. A maioria desses países se tornou independente a partir dos anos sessenta, de modo que determinadas concepções críticas cujas origens se encontram nas lutas pela liberação parecem sobreviver. De qualquer forma, na África, não existe uma ampla cultura intelectual que seja independente. Claro, não podemos esquecer-nos dos trabalhos de Mahmood Mamdani, entre outros, mas esta geração está praticamente terminada. A maioria não os conhece. Também é importante mencionar que existe, sempre, um problema financeiro na África; um problema que dificulta o desenvolvimento da produção intelectual.  Isso se aplica à maioria dos países africanos. Contudo, aqui, na África do Sul, outro fator que dificulta o desenvolvimento do pensamento crítico é o nacionalismo. Aqui, de forma geral, os intelectuais mantêm alguma proximidade com o movimento nacionalista.

GEAC: Mas e todos esses movimentos populares autônomos que tu mencionas nos teus trabalhos? Eles não possuem intelectuais orgânicos, com programas reflexivos diferentes?

M.N.: Em meus trabalhos, eu menciono, particularmente o Abahlali baseMjondolo. Eles possuem seus intelectuais orgânicos, que vêm das bases do próprio movimento. Em geral, os marxistas tradicionais não gostam desse movimento. Por quê? Porque eles querem ser independentes. Não desejam ser controlados pelos partidos, pelas instituições do Estado, pelas organizações mais verticais.

GEAC: De fato, na América do Sul, temos uma ampla tradição de pensamento independente, exterior à Universidade. Em nosso país também existem, no interior da universidade, alguns focos de pensamento crítico. Contudo, as análises de conjuntura empreendidas pelos intelectuais mais institucionalizados costumam ser exageradamente verticais. Fala-se, o tempo inteiro, sobre o que “a esquerda” deveria fazer ou deixar de fazer para recuperar sua hegemonia, ou ainda, sobre o que as pessoas comuns supostamente querem ou desejam de seus representantes, etc. Trata-se de enunciados em boa medida exteriores aos conflitos políticos concretos aos quais pretendem se referir.

M.N.: Isso também ocorre com os chamados pensadores decoloniais? Mignolo, por exemplo?

GEAC: O que talvez falte a esses teóricos é uma relação mais desenvolta com a pesquisa social, que nós concebemos como um dispositivo de construção de perguntas significativas sobre o devir dos processos coletivos. Há um problema com o pensamento crítico universitário no Brasil, e possivelmente em outros países da região, que é o seguinte: os intelectuais críticos prescrevem alternativas e soluções, mas não se propõem a desenvolver estratégias para operar uma crítica imanente das situações. Deste modo, se produzem enunciados críticos sobre o que está acontecendo, mas estes enunciados são projetados sobre as situações, não emanam delas. Não é muito comum que se desenvolvam estratégias para reconstruir as tensões e processos de ruptura a partir dos próprios agenciamentos coletivos. Se bem é verdade que muitos intelectuais conhecem a trajetória dos movimentos populares, também é correto dizer que eles enunciam o devir destes mesmos movimentos a partir da universidade. Não se trata de um pensamento conjunto, no calor das lutas. São interpretações secundárias do que está acontecendo. Talvez faltem estratégias de pesquisa militante. No contexto do Grupo de Antropologia Crítica, estamos interessados em pensar com as pessoas.

M.N.: Claro… porque as pessoas pensam. E não pensam nas categorias científicas de análise. Não necessariamente utilizam conceitos como classe, etnia, etc.

GEAC: Sim, mas nem por isso estão exclusivamente restritas ao âmbito da prática. Às vezes há uma tendência implícita na ciência social acadêmica de encarar as pessoas como “fazedoras de coisas”, mas não como protagonistas de um pensamento. E quando disciplinas como a antropologia conseguem reconhecer que as pessoas possuem um pensamento singular, é comum que este pensamento seja esquematizado e apresentado enquanto uma unidade, como se possuísse contornos definitivos e estivesse basicamente dado em seus aspectos lógicos fundamentais. Então, temos o reconhecimento de um pensamento singular que é imediatamente antropologizado e encapsulado em conceitos do tipo “ontologia”. É como se fosse a forma de pensamento de um grupo, e não uma razão imanente a determinada situação. Os autores decoloniais nem sempre conseguem evitar essa tendência.

M.N.: Parece uma busca do comunismo primitivo.

GEAC: Talvez seja uma atualização dessa velha busca sob novos termos. Aqui está faltando algo que parece central em tuas reflexões: o pensamento dialético.

M.N.: Por isso que o livro de Sylvain Lazarus [Antropologia do nome] é muito importante… mas, ao mesmo tempo, muito difícil. Seja como for, eu acho que a antropologia deve começar por esse enunciado fundamental de Lazarus; um enunciado que diz: “as pessoas pensam”. Não podemos dizer que as pessoas pensam “como deveriam pensar” pelo motivo de pertencer a um segmento específico da população. Por exemplo, não é correto assumir que, se alguém é um operário, deve pensar como se supõem que os operários pensam. O mesmo aplica-se aos camponeses. As pessoas pensam e, às vezes,  este pensamento é racista, é étnico, é humanitário, é qualquer coisa. O importante é começar a seguir de perto esse pensamento. Esse é o trabalho de Judith Hayem, que é antropóloga. Para mim, o importante é compreender a política quando a política existe. E quando eu digo “política”, refiro-me à política emancipatória. A política emancipatória existe quando observamos essa dialética entre, por um lado, um pensamento mais estatal, um pensamento “expressivo” da classe, da localização, da situação e, por outro lado, um pensamento excessivo que se propõe a falar de toda a humanidade. Quando existe essa dialética, podemos falar de política emancipatória.

GEAC: Para nós a problemática do excesso é central no momento de indagar sobre os devires emancipatórios no campo social. Tu chamas a atenção sobre certa incapacidade das ciências socais de compreender a subjetividade política e o devir da política emancipatória. Grosso modo, tu falas que as ciências sociais são ciências do Estado que abordam as dinâmicas coletivas a partir de uma problemática da administração das populações e, por esta razão, têm dificuldade de enunciar aqueles processos coletivos que não se encaixam nas segmentações que definem o estado atual da sociedade.

M.N.: Bom, não seria necessariamente uma problemática da administração das populações. Trata-se, antes de qualquer coisa, de uma problemática sociológica. As ciências sociais são ciências do lugar, da localização. Ou seja, as mulheres pensam de certa forma, os homens de outra forma, as etnias se ocupam de questões étnicas, os camponeses se interessam pela terra, os operários se interessam pelo salário, etc. Parte-se do pressuposto de que o lugar social é que determina a subjetividade. Isto é um pensamento estatal: cada um permanece no seu lugar.

GEAC: O lugar se estabelece em exterioridade ao pensamento das pessoas…

M.N.: Lazarus utiliza a oposição entre exterioridade e interioridade. Eu penso que ela não é necessária. Marx diz que o capitalista é uma personificação do capital e o operário uma personificação do trabalho. Se eu penso assim, não tenho como pensar a mudança. Em geral, as coisas são assim, mas também existem exceções. E são as exceções que importam. Por isso, Lazarus diz que o pensamento emencipador é excepcional, raro: às vezes ele existe e às vezes não. Então, o problema com o pensamento de Estado não reside no fato de que ele é administrativo, mas sim no fato de que ele só pensa os lugares, os interesses, as identidades.

GEAC: Atualmente, no campo da esquerda, é comum que a política seja pensada como uma confederação de interesses e de lugares.

M.N.: A teoria liberal diz que o Estado equilibra as diferenças e os interesses. A teoria marxista afirma que o Estado responde a certos interesses e não a outros. De qualquer forma, se trata sempre de interesses que vão ser representados. Assim, o político fala pelas pessoas, o sociólogo fala pelas pessoas, os historiadores falam pelas pessoas. Este é o problema. A partir do momento em que dizemos que existe uma divisão, que existem lugares, deve haver, também, um representante desta divisão.

GEAC: Os sociólogos e os antropólogos estão interessados em saber o que as pessoas são num momento dado, o que as pessoas desejam, consomem, onde as pessoas moram, a qual classe social pertencem, etc. Mas talvez a subjetivação política não tenha nada a ver com tudo isso…

M.N.: Sim, a política tem a ver com isso. Temos que começar em algum lugar. Começamos sempre num lugar. Nós habitamos o social. Quando há uma rebelião, no geral ela começa com um problema concreto que é ignorado. Então, a subjetivação política tem a ver com isso, senão nós caímos no idealismo. A subjetividade não vem do céu. Ela vem da conjuntura material existente.

GEAC: Sim, a subjetivação é imanente ao lugar, mas está em tensão com ele.

M.N.: Claro, por isso é difícil, por isso é dialética.

GEAC: Então podemos dizer que a subjetivação política emancipatória tem a ver com a contestação de um lugar, com colocar em questão esse lugar.

M.N.: É necessário estar num lugar para colocá-lo em questão.

GEAC: Para nós, esse processo de colocar o lugar em questão é uma dinâmica do excesso.

M.N.: Sim, é possível. Mas não se trata apenas do excesso.  É uma dialética. Por isso eu falo do “expressivo” e do “excessivo”. Existe uma limitação e uma contradição nos processos políticos. Eles são sempre influenciados pelo lugar. O lugar está sempre presente. Por esta razão, quando lemos, por exemplo, Toussaint Louverture, nos damos conta de que ele pensa a universalidade, mas o faz a partir de uma posição, de um lugar de ex-escravo ou de escravo. Ele pensa com categorias da revolução francesa, com as categorias do iluminismo. Se vocês olharem outros exemplos, noutras situações históricas, vão ver que o universalismo aparece em diferentes localizações, colocado de formas diversas. Não é sempre a mesma coisa que está em jogo.

GEAC: Como estas reflexões que desenvolves atualmente dialogam com a tua trajetória no pensamento marxista?

M.N.: Eu comecei lendo Althusser, nos anos setenta. Depois eu li Marx, li O Capital. Quando eu era estudante de doutorado, como vocês, nós líamos O Capital num grupo de estudos. Depois, li muitas coisas sobre a questão agrária na América Latina. Minha formação intelectual é marxista, minha formação política foi no Partido Comunista. Atualmente, sou crítico de ambos. Acredito que é necessário desenvolver o marxismo. Não podemos ficar apenas na economia política. A economia política é um pensamento analítico. É importante ter em conta a economia política, é importante uma sociologia que coloca questões analíticas e críticas, mas isso não é suficiente. Se formos pensar a política, devemos fazê-lo de uma forma dialética, não de uma forma analítica. O problema é que, geralmente, as pessoas pensam a política de uma forma analítica. Primeiro construímos um partido, depois o partido possui o conhecimento sobre as dinâmicas do capital e por aí vai. A questão é fazer uma fusão entre o pensamento em ato e a teoria.

GEAC: E como fazer essa fusão? Quais são as estratégias para fazer uma fusão desse tipo?

M.N.: É necessário estudar as técnicas que foram utilizadas em outros momentos históricos. Eu penso que Mao Tsé-Tung é muito importante nesse aspecto. Mao fala da chamada “linha de massas”. Ele propunha fazer investigações, escutar, estudar o que as pessoas diziam e levar essas questões para o partido, sistematizá-las e retorná-las para a linha de massas. É necessário analisar essa experiência, ver o que funcionou e o que não funcionou. Eu acredito que o problema principal é a questão do partido. Porque é como se o partido sempre tivesse razão. Ele deixa de escutar as massas.

GEAC: Talvez um dos problemas resida nesses conceitos abstratos como “massa” ou, inclusive, como “as pessoas”. Trata-se de noções que, às vezes, se tornam muito genéricas ou exageradamente abrangentes. Não surpreende, então, que se façam necessários alguns intérpretes autorizados para sistematizar o que as massas, ou as pessoas, desejam para si mesmas.

M.N.: Claro… por isso, quando alguém diz “as massas” é necessário, sempre, perguntar-se sobre o que são as massas. A resposta não é evidente. Em geral, eu penso que podemos usar essas categorias para politizar um debate, ou seja, para colocar a questão sobre quem são as massas. As massas são aqueles que se rebelam. Se não há rebelião, não podemos fazer nada. A questão sobre quem são as massas começa entre as pessoas que se rebelam.

Militantes do Abahlali baseMjondolo

GEAC: Nos últimos anos, aqui na África, quem são as pessoas que se rebelam?

M.N.: Depende do país. Na África do Sul, está essa organização da qual eu falava: Abahlali baseMjondolo. Eles existem desde 2005 e conseguiram sobreviver porque são independentes. Eles não querem ser representados, eles querem se apresentar. Eles discutem com os intelectuais críticos, mas na medida em que estes intelectuais não imponham seu ponto de vista. Caso contrário, eles preferem ser completamente independentes. Abahlali baseMjondolo surgiu há mais de dez anos em Durban, no contexto da luta contra as remoções forçadas e pelo acesso à moradia em bairros populares. Atualmente, eles têm mais de 24.000 membros, não fazem diferenciação de nacionalidade no momento de construir suas lutas e reivindicações. Também procuram manter uma posição de autonomia em relação aos partidos políticos e organizações não governamentais. São necessários movimentos como este para que haja política. Sem movimentos, não há política. E as organizações também são fundamentais. Mas é necessário pensar em organizações que não sejam partidos políticos. Refiro-me a organizações que respeitem a independência do movimento. A propósito, eu tenho um pequeno problema com a ideia atualmente dominante de “movimento social”. O que quer dizer “movimento social”? Trata-se do movimento de uma categoria, de um lugar social específico. Por exemplo, na Bolívia, o governo se apresenta como um governo dos movimentos sociais. Como isso é possível? O governo se apresenta como a unidade, enquanto os movimentos sociais representariam interesses particulares. O governo é a universalidade e os movimentos são o particularismo. O Estado devém o espaço de síntese dos movimentos particulares. Aí está o problema.

Outra experiência sul-africana importante foi a do United Democratic Front, nos anos 90, que conseguiu fazer uma política não identitária. Esta frente era nacionalista, mas se tratava de um nacionalismo popular. Há uma diferença enorme entre o nacionalismo reacionário, que insiste na autoctonia, e o nacionalismo popular, que é inclusivo. Para este último, que foi pensado por Fanon, a nação está formada por aqueles que lutam pela liberdade, sem importar de onde são. O importante é lutar juntos contra a opressão. Por outro lado, a política nacional reacionária, a política nacionalista burguesa, não enfatiza a política emancipadora, mas sim a autoctonia. Se tu nasceste aqui, tudo bem, mas os outros devem ir embora.

Não podemos simplesmente separar o nacionalismo do comunismo, a política étnica da política não-étnica. Essa divisão nem sempre existe e, por vezes, as políticas étnicas são progressistas quando constituem políticas de libertação contra um estado central opressor. No entanto, elas se tornam reacionárias quando deixam de se identificar com alguma concepção universalista. Se vocês forem analisar a própria Revolução Francesa, verão que nela confluíam alemães, poloneses, etc. Foi a mesma coisa com a revolução da Argélia. Neste último contexto, o que Fanon chamava de “consciência nacional” era complemente diferente do nacionalismo reacionário neofascista. Antes de 1990, na África do Sul, também houve um nacionalismo popular que se opôs ao apartheid. Depois disso, contudo, a nação deveio uma categoria da política estatal hegemônica. Enfim, o problema não são as categorias étnicas e nacionais enquanto tais, mas sim a política que lança mão desses termos. Podemos dizer o mesmo em relação ao comunismo: existe Stalin, mas também existem militantes que lutam pela igualdade.

GEAC: Voltando a questão dos movimentos sociais, qual é a dialética entre a apresentação política operada por estes últimos e os processos de representação? Poderia haver uma dialética entre esses dois processos coexistentes?

M.N.: Poderia haver uma dialética. É possível, mas não é necessário. As pessoas querem se apresentar a si mesmas. No geral, as pessoas têm delegados, não representantes. O delegado coloca-se diante de uma coletividade que diz a ele o que deve ser feito, como ele deve votar, etc. E uma vez que isto acontece, ele deve comunicar sua ação aos demais, deve falar sobre o que fez. Ele não pode fazer o que ele quiser. Quanto tu fazes o que tu queres, te tornas um representante. Por isso, a democracia liberal é uma democracia de representantes: eles fazem e dizem o que bem entenderem.

GEAC: Na América do Sul, alguns governos de esquerda ou progressistas foram resultado de certos movimentos de massa contra o neoliberalismo nos anos noventa. E quando não emergiram diretamente desses movimentos, tiveram que estabelecer um diálogo estreito com as suas demandas. No entanto, a construção de respostas institucionais às exigências e expectativas formuladas até o início dos anos 2000 passou pelo arbítrio de uma burocracia especializada que se sentia em condições de mediar as vontades populares no contexto de uma estratégia macroeconômica que, para preservar a confiança dos mercados e da burguesia, precisava resguardar-se das ameaças representadas por uma democracia de massas.

M.N.: Essa é uma questão interessante… parece haver conhecimentos que são próprios dos especialistas. O pensamento de Lênin é problemático neste ponto, porque ele dizia que uma vez que estivermos no poder, todos poderão dirigir o Estado. Mas isso não funciona. A questão é como controlar essas pessoas que ocupam funções administrativas. É impossível que todos saibam tudo. Pessoalmente, eu penso que o Estado não tem como desaparecer de uma vez só. O socialismo é um Estado que se transforma, que abre a possibilidade de participação e de invenção para todos. A ideia é que qualquer um possa se tornar especialista e que seja possível explicar a todos pelo menos certos aspectos dos seus problemas. O conhecimento disponível não pode ser monopolizado. Não devemos profissionalizar o conhecimento. O problema é que, a partir do momento em que há profissionais, controlá-los torna-se impossível. Os profissionais se controlam a si mesmos. Eles têm as suas organizações e se controlam a si mesmos. É necessário, contudo, que esses profissionais respondam à coletividade e que esta possa questioná-los sobre a base de outros conhecimentos, talvez mais frágeis, mas que, de qualquer forma, permitem que certas perguntas sejam colocadas. Isso vale para todos os profissionais, não apenas para os especialistas em economia. Estou falando dos advogados, dos juristas, dos sociólogos, dos antropólogos.

Algo mais sobre Michael Neocosmos

Ele é Professor Emérito de Humanidades da Rhodes University, África do Sul, e Professor visitante no Instituto de Humanidades da Universidade de Connecticut, Estados Unidos. Escreveu numerosos livros e artigos acadêmicos, entre eles Thinking Freedom in Africa: Toward a theory of emancipatory politics (Wits University Press), que recebeu o Frantz Fanon Award for Outstanding Book em 2017.

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