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Coletes amarelos: um desafio ao parlamentarismo

Por Alain Bertho[1]

Tradução: Grupo de Estudos em Antropologia Crítica. Publicado originalmente em Anti-K.

A revolta dos coletes amarelos é, acima de tudo e antes de qualquer coisa, uma mobilização coletiva duradoura e popular que transborda os truísmos sociológicos. Ela se inscreve completamente em seu próprio tempo: o dos grandes distúrbios e ocupações. Ninguém pode prever o que será dos coletes amarelos. O certo, no entanto, é que mais mobilizações desse tipo nos aguardam nos próximos anos. O crepúsculo do parlamentarismo está apenas começando.

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Nas últimas semanas, assistimos ao surgimento de um novo tipo de mobilização política. Faz algumas semanas, também, que o governo e os partidos compartilham um erro de diagnóstico: a mobilização dos coletes amarelos seria um grito de raiva, um movimento social espontâneo que encontraria sua verdade apenas numa composição sociológica a priori. Seriam, basicamente, levantes protagonizados por pessoas do campo, das pequenas cidades e dos “territórios” esquecidos da França? Sem dúvida. Mas, acima de tudo e antes de qualquer coisa, estamos diante de uma mobilização coletiva duradoura e popular que transborda os truísmos sociológicos.

Rapidamente nos damos conta da heterogeneidade dos dispositivos ideológicos e subjetividades políticas mobilizados por aqueles sujeitos que se lançam às ruas. Sem dúvidas não serei o primeiro nem o último a chamar a atenção sobre este ponto. Existe, é claro, uma gama vastíssima de enunciados, às vezes contraditórios, que remontam às características dos respectivos coletivos locais. Mas afinal o que garante sua unidade, mobilização e popularidade? Essa é a questão importante. A unidade é construída em torno de dois eixos fortes. O primeiro, que começa com a contestação dos impostos, é, na verdade, uma rejeição da injustiça e das crescentes desigualdades. O segundo é constituído pela recusa de qualquer forma de delegação e representação. A nomeação de porta-vozes reconhecidos é tão veementemente repudiada quanto foi, desde o início, qualquer mediação partidária ou eleitoral.

Os coletes amarelos se colocam em interlocução direta com o Executivo. Esta é a lógica contemporânea da separação entre o Estado e os povos, do colapso das formas representativas da democracia, do colapso, como se diz, dos “corpos intermediários”. A democracia parlamentar inventada no final do século XVIII parece atingir seus limites históricos que, a propósito, também são expressados, de outra maneira, pela explosão dos populismos.

O populismo eleitoral, seja de direita ou de esquerda, está desmoronando em seu próprio terreno. O chamado apressado a um retorno às urnas aparece, na melhor das hipóteses, como uma tentativa de canalizar eleitoralmente a raiva e, na pior delas, como um meio para pôr fim à mobilização. De Gaulle, por exemplo, tentou suspender o maio de 68 dissolvendo a Assembleia Nacional. Mas o processo eleitoral delegatório (e dilatório) já não tem credibilidade. A democracia incorporada pelos coletes amarelos é uma democracia da exigência imediata e uma democracia da expertise popular.

Já não há necessidade de uma “Nuit Debout”[2] na Praça da República: hoje as “nuit debout” são tão numerosas quanto os piquetes populares. Uma narrativa comum está sendo elaborada. Um conhecimento popular de situações vividas está sendo construído. Por que seria necessário, então, delegar uma fração desse novo poder aos profissionais do discurso de Estado? No final das contas, é necessário reconhecer que para cada François Ruffin[3] – que soube entender e experimentar as revoltas atuais – existem inúmeros profissionais da representação, tanto no governo como na oposição, que são surdos e cegos ao que está acontecendo.

Os coletes amarelos pertencem completamente ao seu próprio tempo: o das primaveras árabes, praças ocupadas e ZADs[4]. Ninguém pode prever o que será deles. O certo é que mais mobilizações desse tipo nos aguardam nos próximos anos. O crepúsculo do parlamentarismo está apenas começando.

Notas

[1] Professor da Universidade Paris VIII. Seu blog “Antropologia do presente” compila e analisa as revoltas e distúrbios mundiais desde 2007. “Tempo das revoltas” (Le temps des émeutes) é o título do livro que ele escreveu com base nesse trabalho de análise.

[2] Nuit debout é um movimento social francês que começou em 31 de março de 2016, decorrente de protestos contra as reformas trabalhistas conhecidas como lei El Khomri ou Loi travail. O movimento foi organizado em torno do objetivo geral de “derrubar o projeto de lei El Khomri e o mundo que ele representa”. Nuit Debout tem sido comparado ao movimento Occupy Wall Street nos Estados Unidos e ao movimento antiausteridade espanhol 15-M ou Indignados.

[3] Fundador e editor chefe do jornal Fakir. Foi eleito deputado nas eleições legislativas de 2017 com apoio da frente de esquerda “La France insoumise”, do Partido Comunista, do Partido Verde e da agrupação “Ensemble”. Emergiu como uma das lideranças do movimento “Nuit debout” e mantém uma interlocução amistosa com algumas expressões da sublevação dos coletes amarelos.

[4] A expressão francesa “zone à défendre” (ZAD) é um neologismo utilizado para designar uma forma de ocupação com vocação política, ocorrida, geralmente, em espaços abertos e destinada a fazer frente a projetos de intervenção desenvolvimentista.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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