Por Grupo de Estudos em Antropologia Crítica
A obsessão de um indisciplinado é buscar as rupturas em todos os lugares; é saber que elas estão aí, latentes nas configurações atuais do poder e evidentes quando algo se desacomoda no cotidiano e surge uma brecha que separa o representado das suas representações, os membros de uma sociedade e as modalidades concretas de sua associação.
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Transcrição da intervenção realizada pelo GEAC na abertura da semana acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), 24 de setembro de 2018.
Estamos muito felizes de participar desta mesa de abertura da semana acadêmica do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) porque, de alguma forma, o GEAC também é fruto do esforço que os estudantes empreendem para organizar seus próprios espaços de debate teórico-político. Levando em conta a pauta temática desta atividade, nosso objetivo será revisitar algumas inquietações políticas que nos levaram ao encontro de variadas expressões do pensamento crítico contemporâneo e, especialmente, das chamadas “teorias decoloniais”. Vamos refletir sobre aqueles conflitos em cujo marco fomos desenvolvendo certa sensibilidade para o argumento decolonial e para outras matrizes teóricas, como o marxismo, a analítica foucaultiana do poder, o pensamento desejante de Deleuze e Guattari e as experiências de pesquisa militante que conhecemos ao longo do tempo. Todos esses engajamentos teóricos estiveram determinados por acontecimentos políticos que ainda hoje percorrem nossa trajetória coletiva e que talvez encontrem ressonância nos esforços que os estudantes de Erechim realizam para construir seus espaços autônomos de reflexão.
O itinerário de nossa intervenção nesta noite responde à seguinte questão: se as disciplinas acadêmicas como a história, a sociologia e a antropologia são, de alguma forma, solidárias à colonialidade do saber, do ser e do poder, e nós somo capazes de criticá-las no nível discursivo, então por que, ao fim e ao cabo, nós acabamos reproduzindo as práticas disciplinares que nos levam, justamente, a recair na reprodução da colonialidade? Parece haver mecanismos de produção de subjetividade que nos tornam solidários à reprodução disciplinar e, por conseguinte, à reprodução da colonialidade do saber. No transcurso de sua trajetória, o GEAC realizou uma análise e uma crítica institucional desses mecanismos que configuram nossa trajetória de formação enquanto cientistas sociais.
A ideia, aqui, é apresentar e compartilhar com vocês a relação travada pelo GEAC com alguns aspectos da reflexão desenvolvida no marco do coletivo de argumentação modernidade-colonialidade. Não pretendemos, contudo, fazer uma exegese da estrutura teórico-epistemológica básica do que se convencionou chamar teoria decolonial. Nossa proposta é um pouco diferente. Trata-se de pensar como se deu nosso encontro com a colonialidade e de que maneira esse encontro potencializou as apostas políticas que vínhamos desenvolvendo em certo momento da nossa trajetória de formação. É interessante pensar a decolonialidade, assim como outras expressões do pensamento crítico, enquanto matrizes intelectuais e fontes de conceitos que vêm em socorro dos agenciamentos políticos, das sublevações, das pequenas disrupções que praticamos em diversos espaços da vida coletiva a partir do momento em que acusamos um mal estar em nossa experiência de institucionalização. Talvez a relevância da teoria crítica não resida exatamente no fato de ela sinalizar uma problemática que faz parte do nosso mundo e, em seguida, nos convidar a tomar uma posição a respeito dela. Existem problemáticas que nos instigam inclusive antes de entrarmos em contato com as teorias críticas, de modo que nosso encontro com tais matrizes de pensamento apenas fortalece a enunciação de um mal-estar que já vínhamos vivendo no seio de nossa experiência de socialização.
Em 2011, quando o GEAC recém havia sido organizado, estava em jogo para nós, no contexto do programa de pós-graduação em antropologia da UFRGS, discutir a posição atribuída ao sujeito – ou, para agradar os latourianos, o quase-sujeito – “estudante” em determinada hierarquia institucional. Uma hierarquia que, como qualquer outra, distribui de forma mais ou menos estática as capacidades de fazer e, por conseguinte, os lugares de fala e as aptidões daqueles que são ordenados sob sua lógica. Em 2011, a UFRGS vinha passando por um processo de democratização relativa. A UFFS também é fruto do processo de democratização do acesso ao Ensino Superior proporcionado pelo ciclo progressista brasileiro. Na UFRGS, e especificamente em nosso programa de pós-graduação, pessoas com diversas trajetórias sociais e procedências nacionais estavam ingressando numa instituição universitária que até então havia sido relativamente homogênea no tocante a composição social de seu alunado. Na prática, isto introduzia novas problemáticas e agendas de reflexão no seio da vida acadêmica. Preocupações coletivas originadas em múltiplas militâncias que os estudantes desenvolviam fora da universidade começaram a aparecer no espaço universitário. No entanto, porque se tratava justamente de preocupações estudantis, elas não podiam se tornar imediatamente preocupações de uma instituição acadêmica. Ou seja, elas não podiam estar representadas nos currículos das cadeiras de graduação e pós-graduação, não podiam ser postas em debate nos espaços de tomada de decisão onde as pautas que orientam o ensino e a pesquisa são estabelecidas.
É interessante notar que a categoria “aluno” remete, etimologicamente, ao sujeito que não tem luz. Em espanhol, “aluno” se diz “alumno”. Neste idioma fica mais evidente a etimologia de uma palavra que remete à falta de luz, ao que não tem brilho próprio. A categoria “aluno” denota uma condição transicional. É como se o “aluno” estivesse fadado a desaparecer dentro da universidade. Ele é o sintoma de uma desfuncionalidade que logo vai ser dirimida na atribuição de um diploma, na configuração de um profissional e, eventualmente, na conversão desse “aluno” em “professor”, o que representaria o ponto culminante de uma trajetória exitosa de institucionalização disciplinar. Na UFRGS acontecia o seguinte: quando os estudantes – que não são “alunos” – se propunham a intervir com vigor na estrutura da instituição universitária, muitos professores levantavam objeções do tipo: “vocês não podem participar, não podem tomar decisões transcendentes, porque vocês passam e nós ficamos”. O organismo fica e vocês – o sintoma – passam. Às vezes, uma linguagem sofística é mobilizada para explicar por que alguns são diferentes dos outros no concernente à tomada de decisões que competem à todos. Deve-se ensinar ao aluno por que sua voz não é audível. Seja como for, algo sempre acontece e revela a inconsistência dessas categorias que, numa hierarquia dada, pretendem distribuir funções e possibilidades de existência.
Na UFRGS, em 2011, algo aconteceu. Alguma coisa sempre acontece e aqui em Erechim nós imaginamos que algumas coisas estejam acontecendo. Talvez esta semana acadêmica seja o indício de algo que está acontecendo. Na UFRGS, os estudantes chamaram essa coisa que estava acontecendo de “movimento paramos para pensar”. Esse movimento era uma greve estudantil. Foi a primeira greve de estudantes de pós-graduação desde a redemocratização do país. Naquele contexto de greve, os estudantes de mestrado em antropologia deixaram de comparecer às aulas porque achavam necessário pensar sobre a sua condição de existência institucional e sobre os mal-estares dela decorrentes. Eles queriam incidir sobre as pautas que informam o ensino da antropologia na pós-graduação, queriam dinheiro para organizar seus próprios eventos acadêmicos, queriam incidir nos espaços de tomada de decisões, queriam bolsas para poder estudar tranquilos e viver com algum conforto. E para dizer que queriam isso tudo, eles precisaram fazer o que, em tese, não corresponde à sua jurisdição enquanto estudantes universitários. Eles precisaram pensar. Pensar exige suspender o funcionamento da instituição e a reprodução das hierarquias institucionais. Parar e pensar são, portanto, condições mutuamente dependentes. Quando tudo está acontecendo normalmente, nada está acontecendo. Salvo o jogo das identidades e das funções já existentes. Pensar não corresponde à alçada dos alunos. A eles é dada a tarefa de aprender, de assimilar o pensamento legítimo em determinada área do conhecimento por intermédio dos esforços de um grupo de docentes. Pensar é outra coisa: significa dizer, por exemplo, que se está excluído de certos espaços deliberativos, de certas comunidades de debate, etc. e argumentar contra essa exclusão. Pensar, em síntese, é introduzir uma nova problemática na vida coletiva.
Nas aulas de graduação e pós-graduação, somos convidados a conhecer as problemáticas existentes, mas não nos compete instalar uma nova problemática a partir do exercício do pensamento. Para sermos mais precisos, nossa função enquanto estudantes é aprender a falar sobre tudo e todos a partir dos campos problemáticos e das agendas de pesquisa instalados pelas disciplinas às quais nos filiamos – ou nas quais alguém nos apadrinha. Quem pensa não somos nós, mas sim os intérpretes autorizados do cânone das disciplinas. Nós, ao contrário, somos chamados a usar conceitos, a aplicá-los, e desta forma a abastecer a máquina textual que legitima certos paradigmas acadêmicos. Pensar, por outro lado, é produzir conceitos – ou distorcê-los. É operar um uso dissidente da linguagem, de modo a fazê-la expressar dimensões pouco problematizadas da existência individual e coletiva.
O pensamento é diferente do conhecimento. Conhece-se através das categorias que nos deixam conhecer “algo”. Pensar, por outro lado, é tanger o não conhecido, ou seja, dizer algo sobre o mundo em tensão com as matrizes de conhecimento estabelecidas. É preciso barrar as formas existentes de conhecer, bem como as experiências que referendam esse conhecimento, para conseguir pensar algo novo. Em 2011, os grevistas da UFRGS – e nós formávamos parte desse grupo – pararam as aulas, subtraíram-se à relação “professor”/“aluno”, para desenvolver outra forma de estar na universidade. Ao parar o processo institucional, que é o processo onde se verifica a “verdade” da condição do “aluno”, os grevistas assumiram uma posição diferente no contexto da universidade: uma posição de força a partir da qual outras possibilidades puderam ser enunciadas por quem supostamente não poderia enunciá-las.
Os estudantes – e não os “alunos” – queriam intervir nos programas de ensino da pós-graduação e justificavam sua vontade em referência à colonialidade dos repertórios teóricos mais tradicionais. Os estudantes queriam desenvolver com mais autonomia suas agendas investigativas e justificavam sua posição em referência ao epistemicídio inerente à promoção de um conjunto demasiadamente restrito de matrizes metodológicas no contexto da instituição universitária. As teorias decoloniais serviram, naquele momento, para sustentar um possível apresentado pelos estudantes em greve. Um possível que indicava a capacidade estudantil de prescrever os rumos do seu próprio processo de formação. Não é que colonialidade, enquanto matriz teórica, tivesse gerado uma revolta estudantil e não é que essa revolta estudantil entrasse em confronto direto com a matriz colonial de saber-poder. As teorias decoloniais foram solícitas à crítica da instituição universitária uma vez que o processo de institucionalização pôde ser fugazmente interrompido pela ação política. O enunciado que permitiu a interrupção desses processos de institucionalização e a irrupção de novas discussões no espaço institucional foi “devemos parar para pensar”. Um enunciado simples e corriqueiro adquiriu estatuto de pensamento porque atribuiu aos estudantes duas prerrogativas que lhes eram negadas no dia a dia da vida institucional, a saber: “parar” e “pensar”. O slogan “paramos para pensar” identificava nos estudantes algumas aptidões pouco usuais: uma espécie de devir-outro condicionado à suspensão de um cotidiano ordinário e banal.
Parar a rotina e pensar sobre o que se quer… Ao suspender as rotinas institucionais, os estudantes conseguiram instalar uma problemática nova em seu espaço de formação e, mais do que isso, conseguiram desenvolver amplos debates em torno dessa problemática. Eles tiveram a possibilidade de discutir questões que não correspondiam a sua alçada. Obrigaram a instituição universitária a responder positivamente as suas inquietações e a deixá-los intervir com força nas rotinas de ensino, avaliação, distribuição de recursos financeiros, etc. Foi porque “paramos para pensar” que nós, do GEAC, assim como outros companheiros que pararam conosco e desenvolveram seus próprios itinerários reflexivos, conseguimos avaliar a relevância de usar certas categorias decoloniais no momento de construir agendas mais autônomas de pesquisa. A greve estudantil e seus resultados benéficos abriram espaço às nossas próprias inquietações teóricas em um mundo institucional onde, até então, devíamos deleitar-nos com as inquietações teóricas de nossos mestres – algo que nos fazia “mal-estar”. Naquela época, não estávamos satisfeitos com as matrizes de leitura da realidade que a disciplina na qual nos formávamos costumava disponibilizar.
Uma observação: a disciplina na qual nos formávamos – a antropologia – não era toda a antropologia. Nós não estávamos insatisfeitos com “toda” a antropologia, mas sim com uma expressão localizada dessa disciplina. Não existe “toda” a antropologia. A antropologia só existe em expressões concretas de institucionalização, como qualquer outra disciplina. A antropologia é sempre um processo localizado. Ninguém fala em nome da antropologia em geral – ainda quando pretenda fazê-lo. Sempre se fala em nome de uma instituição – ou de uma trajetória institucionalizada de formação – que tem características específicas e um processo de estruturação singular; processo este que se sustenta em certas figuras autoritativas e é remetido a uma série de “razões” que resguardam cânones teóricos específicos.
A experiência de indisciplinamento que encarnamos na UFRGS durante a greve de 2011 exigia formas de pensamento que lhe fossem solidárias. E nossos professores não eram capazes de ofertá-las. Suas matrizes de leitura da realidade eram insuficientes para reconhecer a singularidade política do que nós, seus “alunos”, estávamos incorporando. Assim, por exemplo, a partir da perspectiva professoral, a greve foi lida como uma “insensatez”, como a ação desorientada de quem “não entendeu” o funcionamento da instituição, como um boicote pautado por desavenças de ordem pessoal, como um vanguardismo capitaneado por elementos esquerdistas, como um atentado às relações de reciprocidade que organizavam a vida institucional, como a revolta primaveril de estudantes “mimados” que não sabiam valorizar seus próprios privilégios, etc., etc. A greve era plenamente explicável enquanto reprodução de relações já existentes – birras, vanguardismo, mimos – ou enquanto desvio anti-social puramente negativo. Seus critérios intrínsecos de pensamento não portariam qualquer novidade. Eis, aqui, um exercício prático da antropologia então professada por nossos docentes: uma antropologia incapaz de lidar com a dimensão criativa de uma política autonômica sem antes estabilizá-la – isto é, neutralizá-la – em categorias que negam absolutamente sua singularidade. Se esta é a imagem que certa antropologia nos oferece do mundo, onde fica, então, sua alardeada “relevância social”, sua suposta “sensibilidade” à diferença, à heterogeneidade, etc.? Neste ponto, alguém poderia objetar que, durante a greve de 2011, nossos docentes não estavam fazendo antropologia, mas sim política. Tendemos a estar de acordo com essa objeção, mas acrescentaríamos a ela o seguinte reparo: eles estavam fazendo uma política inegavelmente antropológica, na medida em que colocavam a escuta atenta do que os “outros” (ou seja, nós, os estudantes) diziam em detrimento da reprodução de seus próprios (pré)conceitos.
Depois de negociações tensas entre estudantes e professores, a greve foi finalmente suspensa e a pós-graduação pôde voltar a “normalidade”, ou quase. O movimento dos estudantes produziu consequências inesperadas – e inclusive um pouco traumáticas – mas nem por isso isentas de potencial criador. Por exemplo, o inevitável esfriamento das relações entre docentes e discentes colocou estes últimos diante da possibilidade – quando não da necessidade – de percorrer com mais desenvoltura seus respectivos itinerários de pensamento e pesquisa. Os estudantes precisaram se auto-formar em pequenos grupos e cooperar entre eles para levar seus compromissos acadêmicos a bom termo. No GEAC, nós procuramos radicalizar ao máximo as potencialidades dessa situação indisciplinada, desenvolvendo rotinas de leitura e discussão que se afastaram de modo paulatino e irremediável das coordenadas intelectivas mais ou menos implícitas que conduziram nossos docentes a não entender nada do que estava acontecendo diante dos seus olhos.
A problemática instalada pelo coletivo de argumentação modernidade-colonialidade dialogava com nossas sensibilidades estudantis indisciplinadas. Diga-se de passagem, o estudante é sempre um indisciplinado: o telos do processo de disciplinamento consiste em transformar o estudante em alguém ajustado a disciplina, como comentávamos anteriormente. O êxito máximo de um estudante seria transformar-se em professor: professor de uma disciplina, isto é, aquele que professa uma disciplina. Mas enquanto isto não acontece, o estudante – ou melhor, o “aluno” – é um desajustado: ele é perigoso e precisa ser investido por processos sistemáticos de apaziguamento, controle e institucionalização.
Voltando à problemática decolonial, ela era sedutora para nós porque propunha grosso modo o seguinte: existe um enorme espaço social, uma enorme unidade de análise, que se chama “sistema-mundo-moderno-colonial”. Todos os processos associados à modernidade do sistema-mundo só são explicáveis em referência a reprodução de uma colonialidade, isto é, de um espaço de exercício do poder onde posiciona-se um conjunto de alteridades em relação de exterioridade funcional e subordinada às instituições da modernidade: o Estado, o direito, o mercado, as relações de produção reguladas pelo salariato. A dimensão colonial do sistema mundo está segmentada segundo critérios específicos de diferenciação assentes em marcações de gênero, raça e classe. Trata-se da colonialidade do saber-poder, isto é, das marcações que respondem à necessidade de controle do trabalho e de reprodução biológica da espécie nos marcos de regimes específicos e mutáveis de poder. Tais regimes estabelecem, por um lado, um diagrama societário desejável e funcional e, por outro lado, aquilo que muitos terão que fazer para que uma fração relativamente exígua de pessoas encarne esse ideal e viva suas eventuais benesses. Esta segmentação da humanidade responde a uma lógica da conquista e assenta-se na disseminação de ideologias que, em cada caso, procuraram justificar o mal necessário que alguns sujeitos devem padecer em nome do progresso de toda a sociedade.
Em seu horizonte emancipatório, muitos dos expoentes da comunidade de argumentação modernidade-colonialidade afirmam a necessidade de atuar para além das marcações hierarquizantes que se acoplam umas às outras em favor da manutenção do diagrama de poder moderno-colonial. Desafiar a modernidade-colonialidade é transgredir seus regimes de funcionalização da diferença e afirmar novas formas de viver juntos. A preocupação analítica de quem busca alternativas ao diagrama colonial de poder consiste em acompanhar o que as pessoas estão fazendo para deixarem de ser o que “são” ou deveriam ser num domínio funcional já existente. É necessário estar epistemologicamente preparado para acolher a possibilidade de emergência do novo no mundo. Um novo que tensiona as localizações vigentes e, por isso mesmo, evidencia aos olhos de todos a infinita arbitrariedade dessas localizações. Talvez um dispositivo teórico que responda a esse desafio deva partir das fronteiras, dos limites, nutrindo-se daqueles enunciados excessivos que sinalizam o nonsense, a inconsistência da distribuição vigente dos lugares e das funções.
De modo geral, as ciências sociais têm muita dificuldade de assumir essa tarefa de pensar para além do lugar, porque seu programa reflexivo costuma partir das clivagens sociais já existentes e associar a elas tudo o que as pessoas dizem ou fazem. Nesse sentido, elas – as ciências sociais – não desafiam a colonialidade do saber porque encapsulam as manifestações da diferença em nichos muito estreitos. Assim, as mulheres fazem política de gênero, os índios políticas territoriais, os negros políticas raciais e os trabalhadores, política sindical. As políticas são sempre setoriais. Não excedem, portanto, o segmento de população no qual verificam-se. Não anunciam possibilidades que valem para todos, mesmo quando, eventualmente, as mulheres, os negros, os índios e os trabalhadores pretendam afirmar, diante de toda a sociedade, e independentemente da sua fixação setorial, que qualquer um pode ser qualquer outra coisa mais além daquilo que supostamente é. Essa dificuldade epistemológica das ciências sociais não pode ser superada apenas com a adoção de novas teorias. Já existem muitas teorias que nos permitem pensar para além do lugar, pensar a transgressão das clivagens que nos condenam ao mal-estar necessário em nome de um projeto civilizatório que nunca discutimos em sua totalidade.
Além da inovação teórica, é necessário, antes de qualquer coisa, suspender o disciplinamento, suspender a reprodução das disciplinas acadêmicas, suspender aqueles mecanismos que obstruem a enunciação do novo. Suspender o disciplinamento não é outra coisa senão nos darmos a nós mesmos uma chance de “parar para pensar”: pensar com os demais sobre seus mal-estares e enunciar, juntos com os demais, a possibilidade de outra vida radicalmente nova, radicalmente diferente, que vai se desenvolvendo de forma concomitante à proliferação de categorias capazes de enunciá-la e à multiplicação de entusiastas dessas categorias, isto é, de pessoas dispostas a tomá-las como signo do que Deleuze em algum momento chamou “um povo por vir”.
Suspender o disciplinamento exige conhecê-lo, nomeá-lo, analisá-lo. Esse tipo de análise nos dá a medida do que não queremos ser. Mas a analítica dos lugares[1], isto é, a definição de onde nós não queremos estar, precisa vir acompanhada de uma dialética da emancipação. Esta última é propulsada por palavras que anunciam outras possibilidades de ser, em tensão com o que está dado.
A nossa intuição é que o processo de reprodução da disciplina passa por lutas institucionais concretas, por combates específicos que assumirão formas diferentes em cada instituição. Entretanto, apesar da heterogeneidade de sua manifestação, esse confronto com o processo de disciplinamento talvez se beneficiasse, de modo geral, de um afastamento resoluto dos sujeitos antagonistas em relação à pretensão disciplinar de pensar as coisas no registro do que está dado. Deslocar as inquietações teóricas pessoais em direção a uma pesquisa que se desenvolva no registro do possível é, imediatamente, dar as costas para as rotinas disciplinares de conhecimento. Se, no campo da construção de enunciados políticos informados pelas teorias decoloniais, o que está em jogo é transcender as localizações que funcionalizam os sujeitos no marco de um diagrama de poder, então uma pesquisa social que se comprometa com a desestabilização dessas hierarquias funcionais deve estar preparada para acolher, tanto do ponto de vista teórico como epistemológico, aqueles enunciados que apontam para a superação do lugar social atualmente ocupado por quem vive relações de subalternidade.
Subjacente a esta proposta está a premissa de que as pessoas podem pensar além da ordem e de que os pensamentos não são sempre situados do ponto de vista sociológico, ou seja, eles nem sempre refletem uma condição social já conhecida. O pensamento pode subsidiar a enunciação de uma condição social por vir; pode mobilizar categorias que nomeiam algo inexistente. As pessoas pensam para além do seu lugar social, para além das segmentações que as disciplinas científico-sociais são capazes de mapear. Se as pessoas estão em condições de pensar além da ordem que as situa, é porque seu pensamento não é plenamente localizado e pode informar o vislumbre de uma possibilidade de existência que tensiona o lugar e os modos de vida que estão dados. As pessoas sentem-pensam que podem devir algo distinto e este sentimento prolonga-se no que o GEAC denomina um pensamento do possível, ou um pensamento do excesso. Os enunciados derivados desse pensamento falam sobre a perda de um lugar: enunciam uma separação diante do que está dado ou do que foi determinado como consistente e necessário através de certo regime de saber-poder.
Ultimamente nós viemos lendo um antropólogo chamado Sylvain Lazarus. Entre os antropólogos contemporâneos, é Lazarus que parece dialogar mais intensamente com aquelas inclinações teóricas que o GEAC vem cultivando desde 2011. Lazarus propõe que a intelectualidade das pessoas nunca é derivação ou reflexo de algo já estabelecido por outra intelectualidade, seja qual for ela: científica, burocrática, sociológica, estatística. As pessoas sempre pensam mais além de sua localização porque o pensamento, em si mesmo, é ramificação do real, é uma sensibilidade propriamente humana em relação à inevitável abertura do mundo para outros campos de possíveis. O pensamento não reflete o que as pessoas são. Ele está sempre transbordando as posicionalidades dadas. A função do pensamento não consiste, portanto, em representar objetos. Pensar não tem nada a ver com representar, mas sim com empreender um movimento instituinte que coloca o mundo tal como ele é face a face com a sua abertura própria e inapelável. Daí que Lazarus goste de dizer que o pensamento é relação do real. E o real é aquilo que excede as objetificações existentes. Partindo dessa premissa, Lazarus propõe que comecemos a pesquisa social diretamente no campo aberto pela subjetivação de uma conjuntura e que continuemos ali até o final.
A ideia é começar a pesquisa se perguntando pelo que as pessoas pensam na conjuntura e não pelo que as pessoas pensam e fazem num contexto construído a partir das nossas disciplinas. Assim, quem atua no mundo não o faz, por exemplo, enquanto um indígena, enquanto o portador de um pensamento que possui, desde sempre, uma matriz lógica coerente e estável. A proposta do Lazarus é pensar a partir do enunciado dos sujeitos para frente, estudando que tipo de mundo esses enunciados prescrevem e que tipo de composições coletivas eles habilitam. Pensar do enunciado para frente significa pensar no registro do possível, pensar além da conjuntura. Neste sentido, poderíamos dizer que, no tocante à pesquisa social, estamos confrontados com duas alternativas: pensar a partir do estado das situações – ou seja, a partir daquilo que já as determina –, ou pensar a partir dos processos intelectivos através dos quais as pessoas se lançam mais além de seu contexto. O primeiro caminho – pensar a partir do estado das situações, das categorias pré-estabelecidas para a segmentação do socius e para a codificação da diferença – leva à ciência social descritiva, à etnografia, ao pensamento do que é, do que está. O segundo caminho – o registro do possível – nos leva a acompanhar o pensamento prescritivo das pessoas: o que as pessoas afirmam que pode ser. O primeiro caminho – descritivo – apreende o tempo presente tendo em vista o existente, ao passo que o outro caminho – possível – sustenta que a partir do seu próprio campo de intelecção, do seu próprio pensamento, as pessoas nos dão acesso a um possível objetivo que desafia as localizações sociais estabelecidas.
As pessoas que se envolvem em qualquer processo de luta coletiva, as pessoas que vivem as situações de dominação ou exploração necessárias à reprodução dos grandes aparatos institucionais de nosso tempo, encaram sua localização social como algo não necessário, como algo superável. E, mais do que isso, elas eventualmente produzem enunciados para afirmar a objetiva possibilidade de transcendência desses lugares. Mas é impossível captar esses enunciados no quadro das ciências sociais descritivas. Se quisermos nos subtrair à máquina textual moribunda dessas ciências sociais, então talvez o abandono da pretensão descritiva seja uma necessidade. Escrever nunca foi sinônimo de descrever, assim como estudar a intelectualidade alheia nunca foi sinônimo de mapear “representações”. Vocês “descrevem” o pensamento de Foucault quando, por exemplo, mobilizam as categorias analíticas desse filósofo para pensar determinadas dinâmicas sociais? Ou, ao contrário, vocês se inscrevem nesse pensamento, fazendo dele um uso singular? Não poderíamos fazer o mesmo com as formas de intelecção que encontramos em nossos lugares de pesquisa? Não seria possível pensar no pensamento das pessoas, instalando-se nesse pensamento como quem se instala num devir? De modo geral, quem professa as disciplinas acadêmicas responderia negativamente a esta última pergunta. Pensar disciplinarmente é pensar objetos dados. E que objetos são esses? Bom, eles mudam de acordo com a época, mas estão sempre definidos pelas categorias que circulam nos mercados editoriais da disciplina enquanto codificações legítimas da diferença e das modalidades possíveis de ação humana.
Gostaríamos de concluir esta intervenção com uma síntese provisória, como qualquer síntese: indisciplinar-se seria, de algum modo, permanecer aberto à intuição de que o mundo, tal como nós o conhecemos, suporta transformações radicais. Não reformas, não transformações residuais, não ressignificações, mas sim rupturas violentas, radicais, redefinidoras do nexo social. O mundo não se resume apenas aos processos de mediação que já conhecemos. Indisciplinar-se é permanecer aberto à intuição da ruptura, à perda das conexões, à perda do sentido, à apresentação da radical inconsistência dos lugares que nós ocupamos hoje em dia. A obsessão de um indisciplinado é buscar as rupturas em todos os lugares, é saber que elas estão aí, latentes nas configurações atuais do poder e evidentes quando, parafraseando Michel de Certeau, algo se desacomoda no cotidiano e surge uma brecha que separa o representado das suas representações, os membros de uma sociedade e as modalidades concretas de sua associação. Nesta brecha, onde eventualmente as pessoas tomam a palavra mais além da capacidade expressiva dos aparelhos de poder, é possível exercer a crítica radical e imanente das estruturas, indicando aquilo que irremediavelmente lhes falta, a saber: a adesão e a participação dos submetidos.
Discussão
Silvia: Estas intervenções vêm ao encontro do que está sendo proposto na semana acadêmica. Elas remetem o debate para outro lugar. O que acontece anualmente nas semanas acadêmicas é um esforço de ir além do espaço da sala de aula e transbordar as disciplinas. Eu penso que o transbordamento das disciplinas enquanto um ato político dos estudantes é uma inquietação que se coloca para nós. Isto ficou claro em 2016, com as ocupações da universidade, e também em 2014, quando eu ainda não estava aqui, no início da implementação das cotas. Ali, houve um enfrentamento político por parte dos estudantes. No curso de ciências sociais, apesar de o diretório de estudantes ser um aparelho institucional, ele tem sido capaz de colocar a posição dos estudantes enquanto uma posição política. Sempre houve manifestações políticas indisciplinadas da parte dos estudantes. Mas eu também penso que acontecem abafamentos. Ao mesmo tempo em que esse corpo se posiciona, e ele não é homogêneo, ele também é abafado. É abafado por essas estruturas institucionais e pela percepção de que o corpo estudantil vai passar. Tem uma pergunta que eu queria fazer sobre “abandonar a descrição”. Enquanto vocês falavam, eu reparei que alguns professores se olhavam entre si meio espantados: “como assim, abandonar a descrição, gente?!” Ela parece tão fundamental… Vocês poderiam nos contar um pouco mais sobre o que seria essa proposta de abandonar a descrição.
Fátima: Eu me senti provocada quando vocês falaram dos espaços de formação fora da sala de aula, que transbordam a sala de aula. Vocês trouxeram a greve como um espaço de formação desse tipo. Eu queria retomar algumas coisas que aconteceram em 2016 aqui na UFFS. Houve todo um processo de mobilização naquele momento. A minha pergunta seria, então, o que fazer quando o curso de ciências sociais não consegue incorporar esses discursos que surgem em momentos de mobilização. A gente discursa, analisa, estuda, mas quando chega a hora do tudo ou nada, nós preferimos voltar às aulas, furar a greve. Então, o que fazer dos nossos discursos, das análises que surgem em situações de enfrentamento, quando, mesmo quando elas surgem, parece que nós não conseguimos avançar nas lutas que se colocam.
Rafael: Meu comentário tem a ver com o que foi dito aqui e tem relação, também, com a luta de 2016, a ocupação. A gente sabe que o corpo docente tem um papel fundamental dentro da universidade, mas numa situação de ocupação, quem está na linha de frente? São os estudantes e especialmente as mulheres, os negros, os LGBTs. A ocupação chamou os professores para o debate e depois de todo o processo, das aulas públicas, etc., os estudantes foram colocados de lado. Depois, quando houve a discussão sobre aderir ou não à greve geral, ficou decidido que nós não iríamos tomar essa decisão.
Lucas: Meu nome é Lucas, eu sou da etnia Xukuru-Kariri, uma etnia de Alagoas. Sou da Aldeia Maracanã, embora eu tenha me afastado da aldeia presencialmente porque eu vim para cá estudar filosofia. Só que o curso de filosofia… a minha pesquisa do TCC tem mais a ver com a questão da descolonização epistemológica através da sabedoria ancestral. O que nós vemos de antropologia na aldeia e o que chega aqui na universidade parece, muitas vezes, o conhecimento de um professor que não é indígena, que vai estudar um autor que não é indígena. Muitas vezes esse autor que não é indígena vai estudar outro autor que não é indígena em busca de conhecimentos muito afastados… a gente vê que, às vezes, o indígena que chega na universidade vem com essa questão de antropologia como se fosse estudar à margem da nossa sociedade, enfim. Então, parece que sempre que se vai falar de mobilização indígena, se está falando às margens do que seria a preocupação da antropologia com o ser humano. De certa forma, nestas abordagens, o indígena se encontra nas margens do modelo de “ser humano” universal. Ele não está no centro, não pode ser o “universal”. E parece que não se encontra na questão indígena algo para falar da descolonização epistemológica. Queria que vocês falassem um pouco sobre as condições práticas de possibilidade de trazer determinados autores, de valorizar esse novo na antropologia. Sabe, na aldeia tem isso de “lá vem os antropólogos”. Eles vão lá orbitar a aldeia, fazem anotações e nunca mais aparecem para nada. Depois esse conhecimento é passado e traspassado através de não indígenas.
Eduardo: Fiquei pensando sobre uma questão que é importante para o GEAC que são os dispositivos da militância intelectual. Essa militância que as disciplinas nos exigem, para termos um futuro disciplinar, usar determinados conceitos, né? Acho legal essa ideia de vocês sobre codificar a experiência através de conceitos da moda, de vivenciar uma experiência e codificar isso sobre alguns conceitos específicos que estão ligados com todo aquele dispositivo de reprodução da disciplina, financiamento, etc. Fiquei pensando sobre isso tudo. O que seria uma atitude de dissimular esses conceitos? Como essa dissimulação poderia acontecer? Já não no sentido de como isso acontece, mas sim de quais são as perguntas para dissimular os conceitos? Com quem fazer isso? Eu, na relação com outras pessoas? Qual é a dimensão da experiência do encontro etnográfico – se é possível falar de encontro etnográfico – que nos permite figurar as coisas no registro do possível? Um pouco do que entendi do que vocês falaram, sobre abandonar a descrição, talvez seja no sentido de um registro do dado. Porque abandonar esse registro do dado seria abrir o registro do possível. Bom, e nesse esforço onde se situa a dimensão do encontro etnográfico?
Paulo: Queria colocar uma questão que diz respeito a como se representa a antropologia que é criticada: a antropologia disciplinar, que é a antropologia que tem uma representação pública. Por outro lado, queria chamar a atenção sobre esses processos de estabilização dos possíveis vividos em momentos de crise ou na experimentação da crítica. A minha pergunta é especificamente a respeito da categoria tempo. Como a questão do tempo entra nessa equação complexa para pensar possibilidades que não estejam sujeitas a esse processo de estabilização? Se, por um lado, as teorias sociais de uma forma geral, pensando as ciências sociais para além do curso, pensando a economia, pensando a história, a psicologia, etc., têm o efeito de estabilizar o dado, que em algum momento também é o desconhecido, então como a gente trabalha com essa perspectiva de constante desestabilização, ou de pensar o possível? Me sinto confuso em relação à oposição entre dado e possível. Mas, talvez, pelo que entendi o possível é o possível utópico, é o possível que está além do dado. Enfim, como essa perspectiva de desestabilização do disciplinamento sobrevive à ação do tempo, da categoria tempo?
Fábio: Queria agradecer a fala de vocês. Muitos conceitos, muita teoria. Particularmente, para mim foi difícil reter tudo o que vocês trouxeram, mas eu gostaria, de qualquer forma, de pensar algumas questões. Primeiro, eu gostei muito da noção de mal-estar nas formas de produzir conhecimento. Eu tenho lido muita psicanálise nos últimos tempos para entender o que está acontecendo no Brasil e acho que é dali que têm vindo as melhores respostas. Melhores do que as oferecidas por nós historiadores, por nós antropólogos. O mal-estar é uma clareira e a partir dessa clareira é possível você se reorientar. Se eu bem entendi, vocês estão mobilizando a categoria de dispositivo em sintonia com o pensamento do Foucault e do próprio Agamben. Se vocês estão pensando o dispositivo nessa chave analítica, não existe possibilidade de produção de subjetividade, de produção de sujeitos, sem a junção entre o ser meramente vivente, ou biológico, e os dispositivos. A grande beleza do texto do Agamben é que ele vai além de Foucault. Não são as instituições que nos capturam. O celular, a caneta e quiçá a própria linguagem também fazem isso. Se isso é verdade, não há possibilidade de se produzir conhecimento fora das capturas disciplinares. Claro, nossa tarefa teórica é sempre colocar em perspectiva os modos de produzir conhecimento. Mas, enfim, minha primeira questão seria esta: há possibilidade de se produzir algo fora da captura dos dispositivos? A minha resposta é um categórico “não”. Bom, tem uma segunda camada na minha questão. Não consigo pensar a produção de conhecimento no Brasil do mesmo modo que – para falar de lugares que eu conheço – na Argentina ou na França. O espaço da universidade no Brasil é um espaço muito mais privilegiado no sentido de que, se existe ainda um lugar no Brasil em que se exerce a liberdade, esse lugar é a universidade. Gostem vocês ou não. Gostemos nós ou não. Nós podemos estar aqui de maneira franca, cotidiana, nas tensões, nas lutas. Podemos exercer isso de uma maneira livre, no sentido de uma liberdade interior a um contrato social. No espaço universitário brasileiro se dá a possibilidade de um espaço público efetivo. Trata-se de uma arena de lutas conceituais. Aí, a belicosidade por si mesma não é outra coisa senão uma réplica dos fascismos ordinários que assombram a própria universidade.
Daniel: Nessa cartografia dos processos disciplinares que vocês fazem eu vi muito da minha história. Eu ainda sofro porque sou mal adaptado à instituição, inclusive à esse lugar de professor, por incrível que pareça. Rodando gente, avaliando, matando o tempo de os outros falarem enquanto eu falo sozinho. Mas eu estou mal adaptado nisso e tenho muito mal-estar. Também tenho toda uma trajetória de ter sido podado em uma série de coisas. Eu fiz meu TCC sobre história em quadrinhos. Era uma coisa que eu gostava, sobre a qual as outras pessoas não falavam e que eu valorizava. Então um professor aceitou me orientar num trabalho sobre essa temática. Dois momentos interessantes da minha relação com ele foram os seguintes: numa oportunidade, eu estava tendo uma ideia sobre o código de Fibonacci, que é um instrumento para pensar questões de arte, de música, tudo… Eu achei que poderia usar isso para abordar a organização do pensamento. E meu orientador me disse “não, não pode”. Me podou. E agora, fazendo aula de coral, falando com meu professor de música, eu mencionei a ideia que eu tinha tido e ele disse “olha, pelo que eu vejo dentro da filosofia da linguagem da música e da filosofia das linguagens matemáticas eu acho perfeitamente possível o que tu estás pensando”. Eu passei vinte anos completamente oprimido porque um professor me disse que eu não poderia pensar desse jeito. Depois, em outra oportunidade, meu orientador e eu estávamos discutindo a questão do TCC e era um contexto de greve. Então uma menina se aproximou e disse “pô, Daniel, porque que tu não estás lá na assembleia e tal” e o meu orientador respondeu: “porque ele está cuidando do futuro dele”. Então começa ali… E outras coisas me vêm à mente. Por que, por exemplo, eu acabei estudando religiões afro? Ser negro estudando temas de negro. A alteridade dentro do próprio campo. Negro pode falar de negro, mulher pode falar de mulher. Enfim, eu concordo com essa defesa da liberdade, da busca de outros possíveis. Mas isso parece algo para nós, que estamos dentro da academia, pensarmos. Não sei se fora da academia as pessoas vão pensar desse jeito, embora tenham as suas vivências desses pensamentos também. Eu conheço gente muito simples que é super filósofo e sabe um monte de coisa. Ao mesmo tempo, isso me remete ao vídeo do You Tube, do Deleuze, explicando a diferença entre esquerda e direita. Então ele diz, numa entrevista a uma jornalista: o pensamento da direita é assim: “eu penso em mim, aí penso na minha família, penso na minha rua, penso na minha cidade, penso no mundo e depois eu penso nos japoneses. O pensamento de esquerda é ao contrário: eu penso nos japoneses, aí penso nos africanos, penso no meu país, penso na minha cidade, penso na minha rua, penso na minha casa, penso em mim”. Então a jornalista diz para ele: “mas os japoneses não são comunistas, os japoneses não são de esquerda”. Então todo esse devir, toda essa diferença que o Deleuze está transbordando ela já mata ali, na hora: “não, os japoneses não são isso que tu estás falando”. E o Deleuze fica parado: “não entendeu o que eu estou dizendo”. Mas, de certa forma, apesar de valorizar toda essa crítica que vocês fazem, tem um lugar em que ela me parece um pouco vazia. Reconhecer estes dispositivos e tentar desafiá-los para tentar ter mais liberdade dentro deles, beleza. Mas eu penso que deve haver um ponto mínimo de pensamento que precisa ser compartilhado para, em cima disso, nós podermos ousar. Aqui eu queria fazer uma defesa da descrição. Até descrever o que os outros prescrevem como futuro é uma descrição. Ou, como vocês fizeram: descreveram os processos institucionais que nos mantêm reféns. Talvez, isso sim, fugir do que é dado como forma possível de descrever. É necessário buscar descrever essas outras formas, essas margens… Mas não necessariamente para a academia. Eu tenho um problema: eu sou anarquista e se eu for falar sobre os movimentos anarquistas, eu tenho medo de estar informando a polícia. Bom, e só mais um elemento em relação a isso. O Paulo falou da questão do tempo. O que está desestabilizado de repente se estabiliza. Eu já fui estudante, agora sou professor. Estou professando pedagogias. Embora eu queira que os alunos tenham liberdade de pensamento eu preciso reforçar algumas categorias para que, a partir daí, o pessoal possa fazer o que quiser. Bom, depois surgiram algumas críticas aqui, dos estudantes. Gente, aqui todo mundo é refém. Aqui, nenhum professor está rodando ou não está dando bolsa porque quer. É um sistema que está para além de nós. É difícil. E eu acho que vários de nós, tanto estudantes como professores, estão tentando trabalhar uma sabotagem desse sistema em vários momentos, nos seus interstícios, no jeitinho. Mas tem um ponto em que existe um poder superior oprimindo a todos nós. Então eu acho meio difícil ficar tensionando entre nós mesmos. Tem que ver, talvez pela discussão, talvez pelo exercício desse pensamento mais livre, quais são esses pontos de fuga que a gente pode trabalhar juntos.
GEAC: Bom, foram ditas muitas coisas. Levando em conta o horário, não vai ser possível abordar tudo com calma, como seria o ideal. Que bom que vamos estar aqui amanhã, participando de outras atividades da semana acadêmica. Assim, nós podemos continuar discutindo nos corredores todas essas questões que vocês trouxeram. Enfim, ouvindo os estudantes, uma coisa ficou clara: em 2016 aconteceu algo que talvez valesse a pena repensar no registro do possível. Como pensar uma política passada no registro do possível, depois que tudo se normalizou? Esta reflexão dialoga com a pergunta do Paulo. Qual o estatuto desse possível que já está saturado, que perdeu vigência? Talvez nós devêssemos fazer uma des-historização radical do possível. O possível não faz parte da história. Agora me ocorre uma frase do Alain Badiou que diz assim: “existe uma história do Estado, mas não existe uma história da política”. As políticas emancipatórias não encaixam bem numa narrativa baseada no encadeamento de causas e efeitos lógicos que nos explicam porque as coisas acabaram sendo como são agora. O estado atual das coisas não tem outra necessidade senão a sua própria. As políticas emancipatórias foram interrupções desse processo que sedimenta a nossa contemporaneidade; foram aquilo que teve que se perder para que a nossa vida atual fosse o que ela é. O que sobra das antigas políticas emancipatórias são palavras e prescrições. Nós nunca temos como saber exatamente o que aconteceu em outra época, mas a persistência incômoda dessas palavras e prescrições na superfície do tempo presente sinaliza que algo aconteceu. O que houve aqui na UFFS em 2016? Quais foram as palavras e prescrições que surgiram naquele momento e que continuam repercutindo até agora, depois que tudo parece ter terminado? Talvez 2016 tenha sido uma sequência da política. Esta é outra questão. Eu estou convencido – e esta não é uma posição necessariamente compartilhada por todo o GEAC – de que nem sempre há política. Por exemplo: quando tem esfera pública, não tem política. A esfera pública é a administração e o choque das diferenças e dos interesses sob a égide de um Estado, de um processo de institucionalização ou de um contrato social. A gente tem que fugir da esfera pública para fazer política. Fugir das segmentaridades definidas na esfera pública – onde os conflitos são dirimidos democraticamente – para fazer política. E não deveríamos ter medo da chantagem que nos coloca à beira do fascismo por não nos portarmos como bons democratas. Não ser “democrata”, ou seja, não aderir às formas estabelecidas de resolução da conflitividade social existente, não quer dizer não ser generoso, não propor um espaço muito mais inclusivo para o desenvolvimento das formas de existência. Não precisamos ser reféns da ameaça de perdermos o estatuto de “democratas”. Essa é sempre a ameaça dirigida aqualquer pensamento radical: “vocês vão descambar para o totalitarismo. Lembrem de Stalin”. Bueno, mas voltemos às preocupações dos estudantes. Eles se perguntavam sobre o que fazer com todas essas demandas de 2016 que parecem esquecidas, que não foram absorvidas, que parecem ter ficado de lado. Talvez seja bom que elas não tenham sido absorvidas. Quem sabe isto indica que elas alcançaram um radicalismo autêntico, impossível de ser digerido institucionalmente. Neste caso, a pergunta seria: essas apostas pendentes podem continuar informando a construção de outros espaços de elaboração política entre os estudantes? Elas podem seguir informando uma política? Que política se pode fazer com aquilo que a instituição não digeriu? A instituição não é o único lugar onde a nossa política se dirime. Mas isso não significa que não estejamos dispostos a disputar a instituição. Acumula-se força em outros lugares e ataca-se a instituição sistematicamente, até que ela sofra transformações radicais.
Alguém usou um conceito muito interessante durante a sequência de perguntas. Não sei se a pessoa está aqui ainda. O conceito era “dissimular”. Pareceu muito sugestivo e estávamos querendo roubá-lo. Ah! Está ali a pessoa… conta mais para a gente sobre esse conceito.
Eduardo: Eu tenho que dissimular o dissimular… (risos) Acho que, para mim, é como algo que não existe ainda, que a gente não sabe muito bem o que é. A gente precisa experimentar alguma coisa que não sabe o que é, para tentar enganar a armação dos dispositivos. Eu fiquei pensando que, de alguma forma, a gente lê as coisas, ou vê coisas, entende coisas, sabe sobre coisas e é difícil des-saber sobre elas. Então, eu acho que dissimulá-las parece ser uma atitude para experimentar outros possíveis. Não sei.
GEAC: Vamos continuar pensando juntos esse conceito. Acho que tem várias estratégias que podem ser comunicadas através dele. Enfim, outro companheiro falava sobre trazer o pensamento de outros coletivos para dentro da universidade de maneira fidedigna, respeitando sua singularidade, sem grandes mediações. A minha resposta talvez seja um pouco banal e não esteja à altura da inquietação colocada. Teríamos que ver qual o valor estratégico de trazer esses enunciados para dentro da universidade e averiguar em que política esses enunciados poderiam participar. Cabe perguntar se quem desenvolve esses pensamentos está interessado em sua inclusão na universidade. Eu retornaria a pergunta para ti: por que tu consideras importante a inclusão de certos enunciados nos espaços universitários de aprendizagem? Qual é a tua política quanto a isso?
Bom, queria me deter um pouco no comentário que identificava nos dispositivos o único lugar possível para a subjetivação. É interessante pensar que a política não tem um conteúdo a priori. A política não é uma esfera que contém um conjunto discreto de problemáticas. Seria melhor pensá-la como uma tomada de atitude em relação a determinado processo de institucionalização ou à construção de um plano de realidade em determinado dispositivo. A política tensiona essas configurações da realidade a partir de uma força própria. Então a política pode estabelecer prescrições que não são imanentes à normativa vigente, ainda que sempre esteja relacionada a um estado de coisas dado. A política não surge em outro lugar senão em tensão com o dado. Daí que ela seja da ordem do possível.
O que o GEAC sempre vai enaltecer é a criação conceitual. É preciso criar conceitos sobre certas experiências, conflitos e mal-estares e ir refinando esses conceitos pouco a pouco. Esse trabalho deve se dar à distância do policiamento disciplinar e dos investimentos genealogizantes que dizem que, para mobilizar alguma palavras tu tens, antes, que pagar pedágio para duzentos autores. Voltando ao nosso conceito de mecanismos disciplinares, em primeiro lugar é importante reconhecer que não existe um lado de fora a priori. Só se pode transcender os mecanismos disciplinares no marco de um processo dialético cujo ponto de partida aparece, momentaneamente, nas situações de disrupção política. Ali é possível prefigurar o que seria outra normativa que ainda não está instaurada. É interessante reter essas prescrições e fazê-las frutificar em outros lugares, enquanto elas ainda não configuram a norma dos grandes agenciamentos coletivos.
Voltando à questão do tempo. O Daniel falou de uma greve que ocorreu em 2002. Agora sabemos que houve essa greve. Podemos fazer toda uma constelação desses momentos que foram estabilizados ou esquecidos, abandonados ou traídos, de modo que eles reforcem nossa percepção atual sobre o que é possível, sobre a verdade dessas rupturas.
Sobre a questão do pensamento indígena e da descolonização epistemológica: é muito importante essa pergunta porque, na minha opinião, a antropologia entra na matriz de produção discursiva sobre essas populações outras, aparecendo como uma mediadora autorizada do diálogo com os outros. Sempre que vai haver algum contato político com coletivos indígenas, a primeira coisa que nos vem à cabeça é: “chamem o antropólogo”, porque ele é o mediador autorizado dessa alteridade. Só que muitos conceitos da antropologia – e isso não tem a ver só com a antropologia, mas também com os modos de governo destinados a essas populações – vão remeter os enunciados, e inclusive as filosofias indígenas, a uma série de marcadores étnicos, a uma exclusividade étnica. Não se trata, na lógica disciplinar antropológica, de algo que pode ser universalizado para outras pessoas. É uma questão indígena, do pensamento indígena. E muitas vezes isso acaba ofuscando a atualidade desse pensamento, seu caráter de razão política colocada em antagonismos sociais onde se jogam enunciados que valem para toda a sociedade. As próprias noções antropológicas que procuram dar conta do pensamento indígena, mesmo as que parecem avançadas, radicais, etc., não se furtam à negação da atualidade do pensamento indígena. Recordemos os argumentos de Clastres, por exemplo. A sociedade ameríndia está contra o Estado porque sempre esteve contra o Estado. É uma dinâmica estrutural constante e transhistórica que está na sociedade indígena e pode ser verificada pelos antropólogos. Estar contra o Estado não consiste numa enunciação atual, referida a antagonismos presentes que fazem proliferar possíveis racionais, destinados a amplos exercícios de convencimento e composição política. Eduardo Viveiros de Castro tenta fazer uma coisa um pouco diferente. Ele apresenta as especulações indígenas como algo que corresponde, potencialmente, a todos nós. Contudo, simultaneamente, ele incorre em antropologizações, ao enfatizar a categoria de “pensamento indígena”, sendo que nos lugares onde tal pensamento é cultivado devem existir tensões, conflitos, perspectivas divergentes entre os próprios indígenas sobre o alcance e o conteúdo das intelecções formuladas no contexto dos coletivos aos quais pertencem.
Retornando da selva à universidade. Alguém questionou, em sua fala, uma tendência de certos estudantes a praticarem a belicosidade pela belicosidade na interação com seus mestres. Do nosso ponto de vista, a experiência estudantil no espaço universitário possui uma vocação para a crítica radical que deve ser acompanhada com atenção. O mal-estar dos professores e o mal-estar dos estudantes não é o mesmo, porque sua posição na hierarquia universitária difere. Romper com o lugar destinado ao estudante não implica as mesmas expectativas e prescrições associadas à ruptura com o lugar de docente, de modo que não convém subsumir todos os mal-estares em um mesmo “nós”. No entanto, apesar de haver mal estares irredutíveis, isso não significa que as alianças sejam impossíveis. Para que estas convergências possam ocorrer, em primeiro lugar é fundamental aceitar que a belicosidade estudantil tem fundamentos e que estes fundamentos são colocados pelos próprios estudantes no curso de lutas específicas. Claro que a universidade brasileira é interessante e proporciona espaços autênticos de debate político-intelectual. O conflito que emerge é fruto dessas possibilidades de expressão. E quando a crítica aparece, não adianta dizer que “poderia ser pior”, que “queiramos ou não” a universidade é democrática. A politização dos mal estares não obedece a essa lógica ou, para utilizar uma categoria sindical, a essa “pauta mínima”. Ela desafia, justamente, a retórica do “mal necessário”.
Notas
[1] Nesta intervenção o GEAC apresentou, sumariamente, os principais mecanismos de disciplinamento que assegurariam a produção de subjetividades antropológicas funcionalmente sintonizadas com a reprodução da própria disciplina. Dado que esta lista de mecanismos já foi exposta em diversas intervenções realizadas pelo coletivo, decidimos não transcrevê-la nesta postagem. Uma apresentação sistemática dos mecanismos de disciplinamento cartografados pelo GEAC em diálogo com estudantes de antropologia do Brasil e de outros países sul-americanos pode ser lida no primeiro tópico de um artigo intitulado “Suspender o disciplinamento, redimir a promessa da antropologia”.
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