Marx e nós(otros)

Mais além da antropologia pós-estruturalista do desenvolvimento, de volta à teoria marxista da dependência

Por Alex Martins Moraes

Uma versão deste artigo foi publicada em Marx e o Marxismo.

Os estudantes brasileiros de antropologia e áreas afins costumam entrar em contato com o debate acadêmico sobre desenvolvimento através de algumas obras canônicas enraizadas no pós-estruturalismo anglo-saxão de matriz foucaultiana. Surgidas nos anos noventa, logo após a queda do Muro de Berlim, estas obras caricaturizam a reflexão marxista e negligenciam completamente uma de suas expressões mais inventivas: a teoria marxista da dependência (TMD). Neste artigo, argumento que a relativa postergação da TMD acaba negando aos estudantes de graduação e pós-graduação em ciências sociais – e especialmente em antropologia – um sugestivo instrumental teórico que poderia ressoar criativamente em suas inclinações críticas. Na contramão desta tendência, proponho-me a reabilitar certas intuições da TMD que transcendem o terreno da economia política e convidam a um debate aprofundado sobre as condições de possibilidade de uma crítica imanente das estruturas de poder e dominação instauradas pelo desenvolvimento capitalista.

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Introdução

Quem decide abordar a teoria marxista da dependência (TMD) em diálogo com as obras basilares da antropologia do desenvolvimento de matriz pós-estruturalista, torna-se testemunha de um autêntico desencontro. Mais além de analogias pontuais, não parece haver solução de continuidade entre ambos os enfoques. No entanto, o diagnóstico das diferenças que os distanciam surge como tarefa necessária e teoricamente produtiva, principalmente nos tempos atuais, quando muitos começam a dar-se conta de que talvez tenhamos perdido um patrimônio intelectual importante na esteira da burocratização acadêmica e da internacionalização das ciências sociais brasileiras.

Em meados dos anos 90, quando alguns dos mais notórios antropólogos pós-estruturalistas do desenvolvimento fizeram sua entrada triunfal nos currículos de graduação e pós-graduação Brasil afora, a teoria marxista da dependência encontrava-se academicamente invisibilizada. De fato, a TMD nunca gozou de espaço privilegiado nas universidades brasileiras. Num primeiro momento, tal ausência pode ser atribuída à perseguição imposta pela ditadura aos seus principais expoentes. Mais tarde, a hegemonia intelectual dos neodesenvolvimentistas[1] viria a decretar a obsolescência da crítica marxista em favor de uma renovada aposta nas potencialidades redistributivas do capitalismo nacional. A queda do Muro de Berlim, em 1989, somou-se ao conjunto de evidências que testificavam a inviabilidade histórica do socialismo e referendavam a inelutabilidade do desenvolvimento capitalista como único horizonte disponível à realização material dos povos. Neste cenário pouco favorável ao pensamento radical, as análises pós-estruturalistas do desenvolvimento chegaram a representar uma possibilidade de voltar a ensaiar certa interpretação crítica daquelas ações desenvolvimentistas que, recorrendo ao incremento do poder burocrático e à ativação de dispositivos de mercado, ambicionavam mitigar a miséria do Terceiro Mundo.

Ainda que James Ferguson e Arturo Escobar, dois dos representantes mais notáveis da crítica pós-estruturalista do desenvolvimento[2], tenham procurado acertar as contas com o “neomarxismo”, seria difícil afirmar que tiveram sucesso nesta empreitada. Como veremos ao longo do artigo, nem Escobar nem Ferguson mencionaram, em suas respectivas revisões bibliográficas, as contribuições teóricas fundamentais de Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, três nomes iniludíveis em qualquer exegese que procure dar conta da original contribuição do pensamento crítico dos anos 1960 e 1970 à problemática do desenvolvimento. Cada época produz seus próprios regimes de lembrança e esquecimento; regimes cujos efeitos são difíceis de contornar até mesmo para os pensadores mais obstinados. Em meio ao burburinho de vozes que, à direita e à esquerda do espectro ideológico, enunciavam a falência do marxismo, é compreensível que os acadêmicos do mainstream estadunidense sentissem-se autorizados a fazer um uso meramente caricatural de sua herança teórica. O marxismo, então em ruínas, não representou um interlocutor autêntico para Escobar e Ferguson. Suas escassas menções a ele serviram apenas para ilustrar a insuficiência teórica da qual padecia, de modo que fosse possível justificar a necessidade de superá-lo com abordagens mais sutis e complexas das relações de poder no mundo contemporâneo.

É evidente que os livros desses dois autores não poderiam servir de referência para quem deseja ponderar sobre a real pertinência das teorias marxistas da dependência no concernente à análise crítica do desenvolvimento. Entretanto, é exatamente isto que vem ocorrendo desde os anos 1990: em determinadas áreas do conhecimento, as obras de Escobar e Ferguson tornaram-se, ao lado de tantas outras do mesmo estilo, uma espécie de salvo-conduto para pensar de forma “inovadora” sobre os problemas da atualidade, fazendo caso omisso dos esforços intelectuais pretéritos, especialmente os empreendidos no campo do marxismo. Talvez o esquecimento de certas tradições teóricas não tenha tido maiores consequências para o pensamento social estadunidense, que, há várias décadas, encontra-se quase totalmente subsumido ao imperativo de reproduzir-se a si mesmo em reciprocidade com as exigências de uma academia produtivista e ensimesmada. Contudo, passar por alto as intuições da TMD no contexto brasileiro e latino-americano significa negar aos estudantes de graduação e pós-graduação em ciências sociais – e especificamente em antropologia – um sugestivo instrumental teórico que poderia ressoar criativamente nas inclinações críticas e no inconformismo político que costuma conduzi-los às salas de aula do ensino superior.

Neste trabalho, parto da premissa de que entre a TMD e a crítica pós-estruturalista do desenvolvimento não houve senão desencontros. Mesmo quando os representantes mais visíveis desta segunda tradição acreditaram estar interpelando criticamente os postulados da primeira, eles erraram de alvo e terminaram dialogando com espantalhos. Já aqueles autores que, hoje em dia, dão continuidade ao programa da TMD, parecem pouco interessados em analisar detidamente o que propõem algumas das obras-chave da antropologia do desenvolvimento de orientação pós-estruturalista. Frequentemente, a categoria “pós-modernos” – tão imprecisa, diga-se de passagem, quanto “teorias da dependência” – termina sendo utilizada para obstruir a priori um debate autêntico com os paradigmas não marxistas. Isto dificulta a pluralização do próprio marxismo nos mais variados contextos de pesquisa social e debilita, por conseguinte, sua posição na batalha de ideias colocada na universidade. Assim, apesar do “recomeço” do materialismo dialético na filosofia[3] e da reemergência de Marx no campo da economia, da história e de certos estudos culturais[4], o marxismo continua estranhamente ausente dos debates antropológicos e de áreas afins. Como resultado desta ausência, gerações de estudantes que escolhem aprofundar-se na pesquisa qualitativa e na análise localizada dos processos coletivos acabam privados de ferramentas conceituais que lhes permitiriam operar um balanço crítico das tendências culturalistas, pós-estruturalistas e, mais recentemente, “neomaterialistas” em torno das quais se organiza o consenso teórico de suas disciplinas[5].

Nesta intervenção, proponho-me a oferecer uma pequena contribuição para mudar o cenário acima delineado. Meu objetivo é promover um desencontro autêntico entre duas razões críticas: a chamada antropologia pós-estruturalista do desenvolvimento e a teoria marxista da dependência. Tal procedimento pretende reabilitar certas intuições teóricas da TMD que transcendem o terreno da economia política e soam promissoras para a atualização de um debate mais geral sobre a natureza e as condições de possibilidade da crítica social empiricamente fundamentada. Nos primeiros três tópicos, examino, respectivamente, as propostas teóricas centrais da TMD, de Arturo Escobar e de James Ferguson. Ao revisar os argumentos destes dois últimos autores, procuro medir suas proximidades e distâncias em relação às proposições e os resultados analíticos alcançados pela TMD. Este exercício é aprofundado no quarto e último tópico, onde sinalizo aquele que, para mim, constitui o desencontro fundamental e definitivo entre as abordagens revisadas ao longo do texto, a saber: sua discrepância no tocante às condições teórico-metodológicas mais apropriadas para exercer a crítica dos regimes vigentes de poder e dominação. Como veremos, enquanto os pós-estruturalistas restringem-se a pensar as relações entre pesquisa e transformação social em termos relativamente tradicionais – algo surpreendente, dado o caráter pretensamente inovador de seu enfoque –, os marxistas heterodoxos da década de 1970 pareciam aventurar-se num caminho mais atrevido e promissor, que colocava sua prática investigativa em sintonia com os enunciados políticos mais radicais disponíveis na turbulenta segunda metade do século XX.

1. Teoria marxista da dependência

A teoria marxista da dependência foi resultado de um longo debate no seio do marxismo latino-americano, que, motivado sem dúvidas pela Revolução Cubana, procurou colocar em questão as teses endogenistas propagadas por certo marxismo ortodoxo. Grosso modo, a perspectiva endogenista tendia a analisar as relações de produção vigentes sem correlacioná-las com a participação da América Latina no mercado mundial. Estas teses aplicavam ao contexto latino-americano um suposto modelo geral de desenvolvimento das forças produtivas que, baseado numa perspectiva evolucionista, postulava a necessidade de se franquear etapas econômicas pré-determinadas até alcançar as condições de possibilidade para a superação do modo capitalista de produção. A Revolução Cubana, que dera início à construção do socialismo num dos territórios menos industrializados do continente, desafiava os pressupostos endogenistas e convidada a uma reflexão mais acurada sobre os processos que atualizavam a possibilidade revolucionária no seio do capitalismo latino-americano.

Os trabalhos de André Gunder Frank constituíram um esforço notável no sentido de definir as duradouras consequências estruturais decorrentes da incorporação dos territórios latino-americanos ao mercado mundial capitalista inaugurado com a colonização europeia. Para Gunder Frank, desde a conquista ibérica no século XV, a América Latina passara a integrar o polo dominado do sistema mundial em vias de conformação, estando seu desenvolvimento posterior amplamente determinado por essa condição geopolítica. De acordo com Gunder Frank, “a expansão econômica e política da Europa desde o século XV encerrou os países hoje subdesenvolvidos numa só corrente histórica mundial, o que fez aumentar, simultaneamente, o atual desenvolvimento de alguns países e o subdesenvolvimento de outros” (Gunder Frank, 1971, p. 38)[6]. A definição do sistema internacional – ou sistema mundial – como unidade de análise privilegiada para mapear a gestação e a particular configuração das formações econômicas latino-americanas foi uma coordenada metodológica que a TMD absorveria anos mais tarde.

Jaime Osorio (2016) considera as intuições de André Gunder Frank como o momento de trânsito da dependência[7] em direção ao marxismo; trânsito que será completamente operado por Ruy Mauro Marini em Dialética da dependência. Da mesma forma que Frank, Marini propôs-se a mapear a singularidade dos processos econômicos latino-americanos tendo em vista sua inserção no circuito mundial de trocas capitalista. Contudo, a teoria de Marini esforçava-se por delimitar a especificidade contemporânea da dependência latino-americana, definindo com maior precisão as modalidades de dominação e exploração que a diferenciavam da época colonial. Neste esforço, Marini irá propor uma série de categorias para explicar como o capitalismo periférico, além de ser totalmente desenvolvido, baseia-se numa forma muito específica de articulação entre dependência externa e superexploração interna. Segundo Marini, enquanto os centros do sistema tendem, ao longo do desenvolvimento do modo de produção, a incrementar a composição técnica do capital e deslocar-se progressivamente para a mais-valia relativa (aumento da produtividade do trabalho através de investimentos em tecnologia), as periferias recorrem à superexploração do trabalho para assegurar suas taxas de lucro, uma vez que estão impossibilitadas de intervir na fixação internacional dos preços dos seus produtos. Tal tendência mantém-se constante mesmo em meio a transformações eventuais nos padrões de acumulação do capital nos países dependentes.

Uma das teses básicas de Dialética da dependência afirma que, no marco do intercâmbio internacional desigual, tendo em vista o decréscimo dos preços das matérias primas, as classes proprietárias dos países desfavorecidos incrementam a exploração do trabalho para ampliar a quota de mais-valia. “As nações desfavorecidas pelo intercâmbio desigual – escreve Marini – não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre o preço e o valor de suas mercadorias (o que implicaria um esforço redobrado por aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas sim compensar a perda de ingressos […] recorrendo a uma maior exploração do trabalhador” (2008 [1973], p. 19). Como as economias dependentes não podem resolver a perda de lucro no plano internacional, elas procuram mitigá-la internamente, no plano da produção, através do aumento da mais-valia (i.e., do tempo de trabalho não remunerado), o que redunda num incremento da exploração do trabalho vivo. A consequência deste processo é a fixação do preço da força de trabalho por debaixo do seu valor, isto é, abaixo do valor necessário para sua reprodução num momento histórico dado. É possível dizer, então, que para contra-arrestar a depreciação de suas mercadorias no mercado externo, os capitalistas dependentes apropriam-se “de parte do fundo de consumo dos trabalhadores para convertê-lo em fundo de apropriação do capital (através do pagamento de salários inferiores ao valor da força de trabalho) ou do fundo de vida (por prolongamentos da jornada de trabalho ou da sua intensidade, reduzindo a vida do trabalhador)” (Osorio, 2016, p. 143)[8].

As primeiras críticas de peso à proposta de Marini deram o tom do que seriam as recriminações mais recorrentes endereçadas ao marxismo a partir dos anos 1960 (cf. Osorio,op. cit.). O argumento esboçado inicialmente em Dialética da dependência foi taxado de economicista por autores como Fernando Henrique Cardoso e José Serra (1978), que, já naquela época, apostavam na capacidade econômica da burguesia brasileira para superar paulatinamente as carências materiais originadas pela situação de dependência. Que isto ocorresse à custa do que Marini denominava “subimperialismo”, ou que o incremento da capacidade de consumo da população não significasse, necessariamente, o fim da superexploração eram preocupações alheias ao enfoque político-teórico de Cardoso e Serra no final dos anos 1970.

Longe de qualquer economicismo, a TMD procurou evitar a dissociação entre processos econômicos e processos políticos, declinando, assim, do voluntarismo que marcou – e ainda marca – as posturas neodesenvolvimentistas. Para a TMD, não existe política legítima por fora das lutas sociais, de modo que a formulação de alternativas a uma ordem diagnosticada como insustentável precisaria ser buscada nas tensões recorrentes que esta mesma ordem gera entre os sujeitos e coletividades nela implicados. Se a dependência é “uma forma particular de reprodução do capital sustentada na superexploração” (Osorio, 2016, p. 169), então a construção de uma alternativa autêntica a dito estado de coisas deveria incluir a afirmação política de tudo o que a superexploração nega, ou seja, da dignidade de homens e mulheres cujas vidas tornam-se objeto de arbítrio para os cálculos do capital.

Sensível aos antagonismos do seu tempo, o pensamento desenvolvido pelos teóricos marxistas da dependência não parecia apontar diretamente à transformação da realidade, mas sim à geração das condições intelectuais necessárias para um engajamento crítico com os pontos nevrálgicos da própria realidade; engajamento que, em segunda instância e no seio de novas composições políticas, poderia chegar a tornar-se transformador. A TMD furtou-se, portanto, de fazer recomendações detalhadas em matéria de políticas de desenvolvimento. Em vez disso, apostou na abertura de novos horizontes imaginativos através da irrupção política da subjetividade popular no influxo da ação revolucionária. Vânia Bambirra dava testemunho desse ânimo ao afirmar, em diálogo com Theotônio dos Santos, que “uma vez com o poder nas mãos […], o proletariado latino-americano – ele, e não os intelectuais – saberá colocar na ordem no dia uma problemática radicalmente nova” (Bambirra, 1978, p. 58). A TMD não fez, jamais, nenhuma concessão a respeito da necessidade revolucionária e não poderia ter sido diferente, porque a revolução era o conceito-chave que definia sua concepção singular da relação entre política e economia. A única política capaz de confrontar e desfazer as determinações econômicas de natureza capitalista era a política revolucionária, isto é, a irrupção violenta, vital, transversal e afirmativa de tudo o que as abstrações econômicas tendiam a suprimir concretamente.

2. Crítica pós-estruturalista do desenvolvimento

Minha estratégia de apresentação do argumento pós-estruturalista de Arturo Escobar e James Ferguson será algo distinta da empregada no tópico anterior. Como as obras destes autores sucedem cronologicamente as teorias da dependência e procuram, em certa medida, reagir ao debate marxista sobre desenvolvimento, será possível realçar, ao longo da exposição subsequente, a postura nelas adotada em relação ao marxismo. Este procedimento permitir-me-á estabelecer algumas coordenadas para, no terceiro tópico, avaliar em que medida a crítica dos pós-estruturalistas ao enfoque marxista é pertinente e quais seriam suas eventuais insuficiências.

Na década de noventa, alguns estudos antropológicos influenciados pelo pós-estruturalismo de matriz foucaultiana concentraram seus esforços reflexivos em, por um lado, exotizar a categoria discursiva “desenvolvimento” e, por outro lado, criticar determinados projetos e políticas de desenvolvimento colocando ênfase em seus efeitos localizados de poder. O livro de Escobar intitulado La invención del Tercer Mundo: construcción y deconstrucción del desarrollo[9] é um exemplo emblemático do primeiro esforço, ao passo que The anti-politics machine, redigido por James Ferguson, é um bom exemplo do segundo. Em linhas gerais, ambos os autores pretendiam contribuir para a dissolução da aura de neutralidade política que envolvia o “desenvolvimento”, de forma que fosse possível traçar suas consequências enquanto regime discursivo ancorado em instituições sociais concretas cuja operatória beneficiaria, em cada lugar e momento, estratégias específicas de exercício do poder. Começarei revisando o trabalho de Escobar para, em seguida, ocupar-me do livro de Ferguson.

2.1 Escobar: a invenção do Terceiro Mundo

La invención del Tercer Mundo é uma análise intensamente documentada dos fundamentos da noção de desenvolvimento e das suas implicações geopolíticas. Nela, o desenvolvimento é apresentado, fundamentalmente, como um regime de representação que abrange práticas institucionais orientadas à circunscrição de lugares de poder a partir dos quais alguns sujeitos estariam em condições de enunciar legitimamente o presente e o futuro da sociedade, bem como os procedimentos necessários para transitar de um ao outro. A consolidação dessa hierarquia amparou-se em modos de conhecer e reestruturar a realidade social que encontravam seus parâmetros e objetivos nos sistemas produtivos, nas formas de intercâmbio e nos estilos de vida característicos do chamado Primeiro Mundo. Este quadro conduz Escobar a entender que

“O desenvolvimento supõe uma teleologia na medida em que propõe que os ‘nativos’ serão reformados cedo ou tarde. Entretanto, ao mesmo tempo, ele reproduz sem cessar a separação entre os reformadores e os reformados, mantendo vida a premissa do Terceiro Mundo como diferente e inferior, e de sua população como possuidora de uma humanidade limitada em relação ao europeu culto” (Escobar, 2007 [1995], p. 100).

Arturo Escobar afirma que seu enfoque teórico está em continuidade com outras razões críticas que vicejaram no continente latino-americano, como a pedagogia do oprimido, a teologia da libertação, a sociologia de Orlando Fals Borda e a própria “teoria da dependência”, mencionada no singular e exemplificada com uma citação da versão estadunidense de Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Cardoso e Faletto. Nutrindo-se de abordagens precedentes, Escobar argumenta que a análise crítica do discurso do desenvolvimento permitiria não só reconhecer os processos de dominação associados à prática desenvolvimentista, mas também explorar com mais produtividade que as primeiras análises marxistas suas condições de possibilidade e efeitos penetrantes de poder. Apesar de ter proporcionado critérios reveladores para visualizar como as pessoas e a natureza são convertidas em objeto de trabalho e incremento da produção do capital, o “materialismo histórico”, segundo Escobar, teria dificuldades em “evidenciar a mediação do discurso na forma moderna do capital” (Escobar, 2007, p. 341). Segundo Escobar, a acumulação ampliada do capital exige a crescente normalização dos discursos e das culturas, gerando resistências que, por sua vez, poderiam significar uma espécie de ponto de partida para reorientar ideologicamente o curso das situações.

Ao longo de seu livro mais conhecido, Escobar esforça-se por demonstrar que a oposição entre desenvolvimento e subdesenvolvimento está ancorada num relato ocidental que organiza e hierarquiza a diversidade do mundo, definindo um conjunto de alteridades problemáticas que, desde o final dos anos quarenta, viriam a se tornar objeto privilegiado de intervenção e reforma. Sendo assim, a expansão do discurso do desenvolvimento só poderia ser compreendida em referência a um sistema-mundo no qual o Ocidente impõe seu domínio sobre o Terceiro Mundo. Temos, aqui, um ponto de convergência com o enfoque marxista, para o qual os países dependentes só se tornaram suscetíveis ao arbítrio político-econômico dos Estados centrais em razão da subjugação material de que foram objeto no momento de sua integração à economia mundial.

Contudo, a proposta teórica de La invención del Tercer Mundo faz apenas um uso bastante livre e residual dos conceitos que inspiraram a reflexão marxista sobre dependência. De modo geral, Escobar demonstra pouca familiaridade com o espaço intelectual inaugurado pelas múltiplas teorias da dependência, ora apresentando-as como “radicalização da teoria da CEPAL”, ora reconhecendo que elas expressavam uma “prática discursiva distinta” por utilizarem, no caso das abordagens marxistas, conceitos como “capital” e “lucro”. Chamativamente, o autor sugere, numa passagem bastante confusa, que “as teorias marxistas e neomarxistas do desenvolvimento só alcançaram significativa visibilidade na década de 1960, por meio das teorias da dependência, do capitalismo periférico e do intercâmbio desigual”. Neste ponto, além de atribuir estatuto de “teoria” ao que, na verdade, são conceitos bastante polifônicos, Escobar não cita nenhum dos artífices da teoria marxista da dependência propriamente dita – que, a propósito, não data da década de 1960, mas sim de inícios e meados da década de 1970. Sua impressão geral sobre as “teorias marxistas e neomarxistas” é que elas constituíram um desafio aos esquemas teóricos dominantes, “ainda que não tenham representado uma alternativa ao desenvolvimento”, limitando-se a conformar uma visão diferente dele (ibidem, p. 146).

Para repensar o desenvolvimento a partir de outra perspectiva econômica, Arturo Escobar propõe que evitemos a formulação “de alternativas no nível macro e abstrato” (ibidem, p. 372) e coloquemos em evidência a pluralidade dos modelos econômicos locais atualmente existentes, admitindo que, apesar de sua subordinação à axiomática capitalista, eles poderiam ser portadores de novas lógicas produtivas e distributivas. Não obstante, a efetiva realização dessas lógicas alternativas precisaria passar pela interrupção dos processos de “inscrição” através dos quais as construções locais são traduzidas para uma forma textual e organizadas segundo o esquema discursivo de instituições não locais, que, por sua vez, transformam a realidade das pessoas de carne e osso em formas conceituais estandardizadas. A interrupção das dinâmicas de “inscrição” dependeria do fortalecimento material e semiótico das economias subalternas de bens e de discursos, que devem ser tomadas como ponto de partida para a definição dos objetos e das inclinações filosóficas de novas perspectivas teóricas situadas mais além do desenvolvimento: “precisamos levar em conta – constata Escobar – que é através do reordenamento das visibilidades e dos enunciados que as configurações de poder transformam-se” (ibidem, p. 321).

2.2 Ferguson: a máquina antipolítica

A perspectiva de Escobar coincide em vários aspectos com a de Ferguson, para quem, “assim como ‘civilização’ no século XIX, ‘desenvolvimento’ é o termo que descreve não só um valor, mas também um marco interpretativo e problemático através do qual conhecemos as regiões empobrecidas do mundo” (Ferguson, 1994:13). The Anti-Politics Machine (1994[1990]) analisa um projeto de desenvolvimento rural dos anos 1980 destinado a tornar mais eficiente a produção camponesa de gado numa longínqua região de Lesotho chamada Thaba-Tseka. Segundo Ferguson, a indústria do desenvolvimento, amparada por poderosas agências financiadoras – entre as quais se destaca o Banco Mundial –, produz consequências locais que não se resumem apenas à expansão do capitalismo ou à subordinação dos modos de vida das populações rurais. Para concebermos com clareza que consequências são estas, o autor propõe que deixemos de lado a pergunta sobre se os projetos de desenvolvimento cumprem ou não seus objetivos declarados e, em vez disso, analisemos o que eles fazem concretamente, ou seja, que funções desempenham num lugar determinado.

O projeto de desenvolvimento analisado por Ferguson ambicionava a modernização da criação de gado na região de Thaba-Tseka através do oferecimento de assessoria técnica aos pequenos produtores e da construção de uma infraestrutura logística – estradas, mercados, etc. – que permitisse a exportação de produtos ou sua comercialização no mercado interno. Estas metas partiam do pressuposto de que Lesotho era o país menos desenvolvido do mundo e de que sua matriz produtiva reproduzia padrões ancestrais de organização do trabalho e manejo da terra. Ferguson contradiz estas premissas situando Lesotho no seu contexto regional e demonstrando que a principal fonte de renda da população alvo do “Thaba-Tseka Project” era o trabalho assalariado nas minas do vizinho território sul-africano, e não a atividade pecuária, que jogava um papel subsidiário na economia local.

A compra e a criação de animais eram custeadas com o dinheiro proveniente do trabalho assalariado na África do Sul e o gado representava uma espécie de reserva econômica sob controle masculino, que poderia complementar a renda das famílias quando as circunstâncias assim o exigissem. A criação de gado não constituía, portanto, a base de uma economia camponesa, mas sim um fundo estratégico para enfrentar a eventual escassez de postos de trabalho, a aposentadoria e o desemprego. O desconhecimento destas práticas econômicas por parte das agências financiadoras fez com que as obras proporcionadas pelo projeto de desenvolvimento não surtissem o efeito inicialmente esperado. A construção de estradas, por exemplo, não dinamizou a exportação ou a venda interna de gado, mas, pelo contrário, facilitou e incrementou sua importação e subsequente retenção como parte do patrimônio das famílias de trabalhadores. Entretanto, os efeitos inesperados do desenvolvimento também se multiplicaram noutras instâncias, respondendo, desta vez, aos interesses do próprio governo de Lesotho, que haviam sido amplamente ignorados na formulação do projeto de intervenção do Banco Mundial.

Ferguson propõe que as medidas desenvolvimentistas multiplicam “efeitos secundários” (side effects) que excedem a capacidade de previsão das agências planificadoras – neste caso, o Banco Mundial e seus parceiros locais. Tais efeitos estariam refletidos tanto na despolitização dos grandes debates públicos como na estatalização e na governamentalização da vida social – ambas tendências evidenciadas pelo incremento das estruturas logísticas e administrativas de um estado oligárquico e burocratizado. Nesta circunstâncias, Ferguson afirma que o desenvolvimento assume o aspecto de uma verdadeira maquia anti-política, fazendo com que decisões essencialmente políticas soem como decisões técnicas para problemas técnicos. Esta dinâmica funcionaria em benefício da reprodução das estruturas institucionais da própria indústria do desenvolvimento, em sinergia com a manutenção das relações desiguais de poder observadas nos respectivos lugares de intervenção. Em suas palavras:

“o projeto [de desenvolvimento] não transformou as modalidades de cultivar a terra e criar animais, mas proporcionou a construção de uma estrada entre [a região de Thaba-Tseka, território alvo da intervenção] e a capital do país. Não houve ‘descentralização’ e ‘participação popular’, mas se estabeleceu uma nova administração distrital que deu ao governo de Lesotho uma presença, mais forte do que nunca, na área afetada pelo projeto” (Ferguson, 1994, p. 252).

O argumento de The Anti-Politics Machine propõe-se a suprir e corrigir as insuficiências do que seu autor denomina crítica “neomarxista” do desenvolvimento. Esta última, segundo Ferguson, postularia que, sendo o capitalismo uma força reacionária que obstaculiza o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo, qualquer projeto de desenvolvimento inscrito em sua lógica consistiria numa empreitada fundamentalmente contraditória e, portanto, suscetível de ser denunciada como manobra sub-reptícia do “imperialismo”. Superar este tipo de teoria conspiratória, sempre pronta a atribuir intencionalidade aos processos observados recorrendo a entidades fantasmagóricas, implicaria mapear um conjunto de interações anônimas que somente a posteriori acaba tendo “algum tipo de coerência retrospectiva” (ibidem, p. 275). Ferguson sugere que, em vez de rotular uma estrutura com o nome daqueles a cujos interesses ela serve – por exemplo, os “capitalistas” –, seria mais produtivo depreender o sentido da estrutura através da análise das diferentes etapas do processo que a atualiza. No caso de Lesotho, isto implicou analisar o desenvolvimento rural como uma instituição social sustentada por interesses político-econômicos historicamente específicos e não como o desdobramento coerente do interesse de um ou vários atores (por exemplo, o Banco Mundial, o capital, o imperialismo). É interessante notar que, neste particular, Ferguson aproxima-se inadvertidamente da TMD. Esta última, como vimos, critica o voluntarismo político desenvolvimentista argumentando que a reprodução da dependência é contra intencional e atualiza-se estruturalmente por meio de articulações entre grupos de poder nem sempre convergentes do ponto de vista dos seus interesses político-econômicos imediatos e declarados. O conceito de “superexploração” exemplifica bem o fenômeno, já que faz alusão a uma conseqüência estrutural da dependência cuja própria manifestação contradiz até mesmo o que se poderia esperar a priori do desenvolvimento capitalista “normal” – no qual se supõe que a força de trabalho não é vendida por um preço inferior ao seu valor. Neste sentido, a superexploração é um efeito propriamente sistêmico do capitalismo dependente, que não responde a nenhuma decisão individualizada ou plano conspiratório.

Não podemos, contudo, censurar Ferguson por ignorar a especificidade da teoria marxista da dependência. Sua revisão dos enfoques “neomarxistas” foi intencionalmente limitada, dado que já partia do pressuposto de que estes últimos, de forma geral, tendiam a ignorar a produção “não – e contra – intencional” das estruturas de poder (ibidem, p.18). Além disso, interessavam ao autor, especialmente, os efeitos não-econômicos do desenvolvimento – ainda que seja difícil avaliar até que ponto a extensão de um aparato administrativo estatal não guarda relações com a “economia”. Este interesse levou-o a estabelecer um recorte analítico específico, que procurava evidenciar, simultaneamente, os discursos e as conseqüências decorrentes de certo arranjo institucional para, num segundo momento, inferir deles uma espécie de “coerência retrospectiva” (ibidem, p. 275). Sendo assim, é possível afirmar que sua crítica generalizante ao “neomarxismo” não afeta a TMD, cujas categorias explicativas destinam-se menos à análise institucional do que ao estudo dos efeitos estruturais da articulação entre dependência externa e exploração interna no capitalismo periférico. Contudo, a TMD possui uma preocupação teórico-política de fundo, que, devidamente contextualizada, ajudaria abordagens como a de Ferguson a não caírem no beco sem saída daquelas análises estruturais que são incapazes de sinalizar as inconsistências imanentes – ou, no vocabulário leninista da TMD, o “elo frágil” inerente – à reprodução da própria estrutura. Esta preocupação teórico-política com as inconsistências imanentes aos regimes de poder e dominação poderia, também, resultar interessante para dar mais concretude à já citada intuição de Escobar segundo a qual “é através do reordenamento das visibilidades e dos enunciados que as configurações de poder transformam-se”. No próximo tópico, procurarei evidenciar em que consiste essa preocupação propriamente marxista com as inconsistências e os pontos frágeis da estrutura, sinalizando sua relevância para a análise crítica do desenvolvimento.

3. (Des)encontro entre duas razões críticas

É possível dizer que, para a TMD, o desenvolvimento do capitalismo na América Latina possui um caráter excessivo, dada sua tendência de explorar ao máximo a força de trabalho sem gerar condições para a adequada reposição da mesma. Operando em outro plano de análise, Escobar e Ferguson também falam, cada um ao seu modo, de uma espécie de excesso característico da prática e do discurso do desenvolvimento. Escobar evidencia que a axiomática capitalista tende a precarizar o devir autônomo das alternativas econômicas localmente construídas ao funcionalizá-las de acordo com estratégias de desenvolvimento formuladas em outros lugares pelas agências planejadoras. Para Ferguson, as fantasias homogeneizantes e apolíticas do discurso do desenvolvimento respaldam práticas de intervenção que, fazendo caso omisso das reais condições de existência das populações, desencadeiam efeitos de poder inesperados – como a burocratização da vida coletiva –, cuja coerência estrutural pode ser retrospectivamente inferida através da pesquisa social. Em ambos os casos, trata-se de consequências “excessivas” da aparelhagem desenvolvimentista, posto que não costumam ser negociadas com as “populações alvo” sobre as quais incidem. Segundo Ferguson, as carências – pobreza, doença, fome – que servem de ponto de partida para os projetos e políticas de desenvolvimento são resultado de um desequilíbrio inicial de poder que as próprias intervenções desenvolvimentistas acabam atualizando, na medida em que representam e enunciam, de forma unívoca e estandardizada, suas causas e soluções (Ferguson, 1994, p. 279). A interrupção desta lógica de subordinação, detectada também por Escobar, dependeria da instalação de novos lugares de poder (cf. Escobar, 2007, p. 321) e poderia beneficiar-se, sempre que seus protagonistas assim o desejarem, das habilidades dos especialistas acadêmicos (cf. Ferguson, 1994, p. 286).

Assim como Escobar e Ferguson, a TMD identifica numa assimetria inicial de poder a condição básica para a exploração econômica, que é a dimensão da subalternidade que os teóricos marxistas da dependência decidiram enfatizar por razões que discutirei mais adiante. Nas palavras de Marini, “não é porque se cometeram abusos contra as nações não industriais que estas se tornaram economicamente débeis; é porque eram débeis que se abusou delas” (Marini, 2008, p.120). A subjugação material das populações americanas à época da conquista permitiu que o colonizador europeu desse início a um processo de dominação que foi sendo paulatinamente redefinido na esteira da expansão do sistema capitalista internacional (cf. Bambirra, 1978, pp. 49-ss; Frank, 1971, pp. 39-40). A partir do século XIX, no mesmo período em que declaravam sua independência jurídica, os países latino-americanos tornaram-se subsidiários de matérias-primas para a Inglaterra, fator que permitiu o incremento da mão de obra industrial mobilizada por esta última e a contenção do valor da sua força de trabalho fabril, determinada pelo baixo custo dos bens primários importados de ultramar. Foi então que se configurou a dependência propriamente dita. Em Dialética da dependência, Marini sistematiza todo o desenvolvimento ulterior da produção capitalista latino-americana, que, nascida para atender a demanda de matérias-primas das nações industrializadas, tenderá a não depender, para sua realização, da capacidade interna de consumo das classes trabalhadoras (Marini, 2008, p. 132). Uma das consequências desta dinâmica, como vimos no segundo tópico, é a superexploração da classe trabalhadora local: “como a circulação se separa da produção e se efetua, basicamente, no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não interfere na realização do produto […] abr[indo] passagem à compressão do consumo individual do operário e, portanto, à superexploração do trabalho” (ibidem, p. 134).

Mesmo que seja possível estabelecer alguma analogia entre as constatações alcançadas por pós-estruturalistas e marxistas, não podemos deixar de notar que os desdobramentos teórico-políticos de ambos os enfoques divergem em certos aspectos. Diante dos excessos do desenvolvimento e das assimetrias de poder nas quais estão fundamentados, os antropólogos pós-estruturalistas propõem alternativas políticas que consistem, por exemplo, no empoderamento dos atores locais (Escobar e Ferguson), na formulação de alternativas pontuais em vez de grandes esquemas abstratos (Escobar), na crítica dos modos ocidentais de conhecimento (Escobar), na colaboração com movimentos sociais que procuram questionar os efeitos da “máquina antipolítica” (Ferguson) e no ativismo “doméstico” em oposição às políticas imperialistas (Ferguson).

A TMD, por sua vez, seguindo uma tendência recorrente no pensamento marxista, investiu seus esforços em localizar os eixos de tensão em torno dos quais se organiza a conflitividade social decorrente da reprodução estrutural do capitalismo dependente. Este último, portanto, não foi apenas encarado como um padrão de acumulação particular, calcado em articulações sui generis entre o ciclo do capital e a exploração do trabalho, mas também como foco de contradições e conflitos, cuja enunciação poderia ter relevância para a configuração de uma subjetividade revolucionária. Vânia Bambirra sugere que o “marco teórico e conceitual” da TMD tem como implicação fundamental a definição do “caráter da revolução na América Latina como socialista” (Bambirra, 1978, pp. 103-104). Desde o início, os principais teóricos marxistas da dependência estiveram inscritos em articulações políticas que demandavam um tipo específico de conhecimento sobre as dinâmicas sociais do seu tempo. As análises desenvolvidas pelos artífices da TMD não estavam dirigidas, em última instância, a contemplar as agendas acadêmicas mais convencionais dos anos 1960 e 1970. Pelo contrário, elas significaram uma ruptura com o ambiente intelectual da época, principalmente porque repercutiram as inquietações das organizações políticas com as quais seus formuladores estavam comprometidos. A preocupação teórica com as origens e a especificidade da exploração do trabalho nos países latino-americanos não pode jamais ser interpretada como um capricho canônico do marxismo dependentista. Mais correto seria lê-la como necessidade intelectual iniludível para autores que procuravam entrar em sinergia e estabelecer relações construtivas com o movimento operário de sua época[10]. Quero sugerir que é justamente neste aspecto da TMD, à primeira vista, “datado” e característico de uma geração, que podemos encontrar uma orientação crítica singular para enfrentar certas limitações que identifico nos encaminhamentos teórico-políticos das análises pós-estruturalistas.

Alguns dos principais sistematizadores da teoria marxista da dependência – Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos – interpretaram o triunfo da revolução em Cuba como um desafio prático e teórico às teses reformistas, que concebiam as burguesias nacionais como um ator progressista habilitado para capitanear esforços industrializadores autônomos (ver tópico 2). A adoção da perspectiva revolucionária implicava o esforço intelectual de viabilizar conceitualmente um discurso transformador situado mais além do desenvolvimento capitalista. Ao afirmar que a contrapartida do desenvolvimento capitalista na América Latina é a superexploração do trabalho, os teóricos marxistas da dependência estavam, por assim dizer, “orbitando” um sujeito revolucionário potencial que colocaria em questão – a partir de sua própria busca pela dignidade – o absolutismo das categorias de reprodução do capital. Este movimento teórico reflete um estilo de pensamento para o qual o exercício da crítica consiste em buscar na própria situação examinada as tensões que poderiam redundar em sua transformação. Trata-se, portanto, de apresentar uma imagem dialética do desenvolvimento capitalista, na qual este aparece, simultaneamente, como civilização e barbárie. A constatação da barbárie manifesta na superexploração do trabalho transforma-se em porta de entrada para um aspecto da realidade que só pode ser radicalmente modificado se as categorias que o determinam (valor de troca, dinheiro, preços, lucro) forem deslocadas ou, pelo menos, relativizadas. Tal aspecto da realidade é justamente a existência do trabalho vivo, indissociável dos corpos dos sujeitos trabalhadores.

A imagem dialética da realidade de um momento histórico é a coordenada básica que permite aos teóricos marxistas da dependência postularem uma relação criativa com os movimentos políticos que tentavam questionar, na prática, a suposta necessidade da mobilização do trabalho segundo os padrões observados na América Latina. A constatação empírica da superexploração como uma constante do capitalismo dependente impunha um distanciamento crítico em relação às teses industrializadoras e convidava à problematização dos supostos “males necessários” do desenvolvimento capitalista na região. Em poucas palavras: abria outro horizonte de imaginação política no campo da teoria social. A abertura desse horizonte tinha a ver com o ambiente revolucionário da época, que facilitava o questionamento radical e impiedoso de tudo aquilo que, noutros momentos, talvez não aparecesse como objetivamente questionável aos olhos da maioria das pessoas.

Desde suas primeiras sistematizações, a TMD foi veículo de composição revolucionária. Seus lineamentos, portanto, não poderiam vir a ser úteis para a política transformadora porque nunca existiram enquanto expertise autônoma. Explico: no momento de sua emergência, em meio aos diálogos promovidos pela organização Política Operária, a TMD era já um instrumental de diálogo e articulação política a partir do qual certo grupo de intelectuais militantes pretendia entrar em interlocução com as lutas coletivas mais radicais do seu tempo. Deste modo, a TMD tornou-se parte dos agenciamentos coletivos que sustentavam, no influxo da Revolução Cubana, que as contradições do capitalismo poderiam ter desdobramentos afirmativos se enunciadas nos termos de outra razão política disponível no momento: o socialismo.

O triunfo da insurreição popular em Cuba expôs aos olhos de quem quisesse ver a possibilidade da revolução socialista no continente. Os esforços teóricos da TMD podem ser lidos como uma tentativa de reconstruir e preservar, no pensamento, as condições de existência do impulso revolucionário. Nas palavras de Marini, o desafio consistia em empreender “um esclarecimento dos interesses de classe da burguesia” e definir, “por oposição, o caráter eminentemente socialista dos interesses próprios das classes que se opõem a ela, basicamente os trabalhadores da cidade e do campo” (Marini, 1971 [1969], p. 121). Esta tarefa teórico-política e investigativa não poderia ignorar, contudo, que existe uma diferença incontornável entre a consciência possível – viabilizada pelo momento histórico e retida pela teoria – e a consciência real da sociedade. “Ambos os níveis de consciência” só podem encontrar seu ponto de convergência “na prática política” (ibidem). A “prática política” consiste, basicamente, no encontro criador entre as pessoas e na exploração das possibilidades de transformação subjetiva dele decorrentes através da atuação conjunta e contínua numa organização revolucionária.

Marini desenvolve a ideia de uma articulação dialética entre classe e vanguarda. Ele o faz preconizando a fusão entre estes dois segmentos, de modo que consigam exercer uma verdadeira autodeterminação recorrendo à mediação recíproca entre seus interesses e perspectivas. Neste enfoque, o lugar da teoria social crítica – e de quem pretende formulá-la – passa a ser, necessariamente, a organização política, e esta, por sua vez, precisa operar tanto o delineamento estratégico das tendências de desenvolvimento econômico como a explicitação e generalização, entre seus membros, das formas de luta que os setores sociais mais radicalizados dão a si mesmos. A coexistência, num mesmo espaço organizativo, entre produção teórica e experimentação social responde a constatação de que o desenvolvimento capitalista não leva, por si mesmo, à revolução (cf. Marini, 1971, p. 116). Por esta razão, o diagnóstico de suas características e tensões intrínsecas só faz sentido se conjugado à elaboração de prescrições políticas enraizadas em formas de luta já existentes – e não na aplicação mecânica de orientações formuladas por “sistematizadores de gabinete” (ibidem, p. 159).

A afirmação de uma possibilidade de mediação entre consciência possível e consciência real por meio da unificação paulatina entre vanguarda e classe converte a aposta política da TMD numa “comemoração” da revolução. Em referência ao processo cubano, Marini observa, no prólogo de Revolución Cubana, una reinterpretación, de Vânia Bambirra, que a comemoração das verdadeiras revoluções não consiste em atos rituais sacramentalizadores, mas sim numa “renovada tomada de posição dos seus conteúdos fundamentais, com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento revolucionário das massas e de convertê-los, cada vez mais, num patrimônio irrenunciável dos povos” (Marini, 1974, p. 16). Nesta passagem, Marini parece assumir a intuição de que certos “conteúdos fundamentais”, originados da ação política das coletividades humanas, podem ser retidos e atualizados em diferentes situações. Eles conformariam, então, uma espécie de reserva subjetiva comum, que, mediante sucessivas reinterpretações, poderia manter o horizonte imaginativo aberto pela “consciência possível” em tensão permanente com a “consciência real”.

A intuição de Marini dá-nos uma mostra do quanto a TMD soube cultivar aquilo que Walter Benjamin (2004) denominava “presença de espírito”, em referência ao ato de subtrair ao continuum da história certos “conteúdos” que podem ser instalados no presente, confrontando o desenvolvimento temporal do modo de produção com a presença desafiante daquilo que lhe escapa eternamente enquanto continuidade da descontinuidade. Feitas estas observações, proponho-me, agora, a elencar alguns desencontros fundamentais entre o enfoque pós-estruturalista sobre desenvolvimento e a orientação crítica de tipo dialético característica da TMD.

Considerações finais: mais além dos pós-estruturalismos, de volta à crítica marxista

O movimento analítico dos antropólogos pós-estruturalistas difere substancialmente das práticas reflexivas empreendidas pela TMD. Tal movimento percorre – e isto fica particularmente claro em Ferguson – um longo encadeamento de ações, discursos e atores, para terminar afirmando, no final das contas, a inelutabilidade dos efeitos atuais da estrutura. Como observa adequadamente Michael Selik, Ferguson “explica o aparato desenvolvimentista como uma máquina que não deixa de expandir repetidamente o controle burocrático através do projeto de desenvolvimento anti-político” (2009, s/p). A TMD, por sua vez, se bem reconhece os maquinismos anônimos do sistema – maquinismos que se reproduzem em escala ampliada através da mobilização não reflexiva das forças produtivas, por meio de categorias que parecem pensar por si mesmas –, também é capaz de indicar o tremendo excesso da estrutura por sobre a corporeidade viva de quem trabalha. Indica, portanto, existência de um campo de batalha onde se joga o futuro do desenvolvimento. Na América Latina dos anos 1970, esta corporeidade subsistia no seio dos arranjos produtivos do capitalismo dependente como condição de produção, mas nunca como condição definitiva da produção, sendo tendencialmente empurrada para a exterioridade do mercado consumidor interno. Não obstante, aquilo que as abstrações capitalistas mobilizavam no plano da produção para descartar, logo em seguida, no âmbito do consumo persistia enquanto ponto nevrálgico ou “elo frágil” potencial da máquina capitalista periférica.

Quando James Ferguson declara que sua intenção de analisar a “produção estrutural não – e contra – intencional” decorre da necessidade de adotar uma postura analítica propriamente “antropológica” (Ferguson, 1994, p.18), ele está assentando a força motriz do seu pensamento na agenda investigativa da disciplina acadêmica à qual se filia. Em poucas palavras, seu compromisso é “antropológico”. Essa fidelidade ideológica com a própria disciplina acaba determinando que os resultados do seu trabalho, apesar de sugestivos, não vão mais além da definição dos efeitos estruturais de poder associados à prática do desenvolvimento. Assim, ficamos sabendo que a despolitização e a burocratização são consequências intrínsecas à reprodução da indústria do desenvolvimento em Lesotho e que ambas ocorrem em detrimento da capacidade de autoenunciação dos trabalhadores locais. No entanto, continuamos sem conhecer os limites reais – e não apenas formais – que seriam inerentes à despolitização e à burocratização. Não sabemos, por exemplo, o que ocorre com as pessoas cuja capacidade de decisão política é negada pela aparelhagem desenvolvimentista. Afinal, como elas reagem à multiplicação de inúmeros efeitos de poder que têm pouca ou nenhuma relação com suas supostas aspirações? Ao não registrar a conflitividade imanente à máquina antipolítica, a crítica fergusoniana torna-se exterior ao seu objeto e, no limite, reifica-o. A TMD, em contraste, apresenta uma imagem do seu objeto – o capitalismo dependente – saturada de conflitividades reais e definitivamente maculada pela “consciência possível” da revolução. Mais do que isso: esforça-se por insinuar os caminhos de uma crítica imanente à realidade da produção capitalista, sinalizando seu excesso objetivo sobre os corpos dos trabalhadores. É nestes corpos, tornados úteis à produção e inúteis ao consumo – e, por isso mesmo, precarizados –, que a promessa de abundância do capitalismo soa vazia e traiçoeira. Nas palavras de Jaime Osorio, o “salto teórico” proporcionado pelo enfoque marxista foi considerável porque “permiti[u] articular a particularidade do capitalismo dependente com uma formulação concreta em relação ao porquê da recorrente irrupção social dos explorados e oprimidos, evidenciando a condição de elo frágil da região [latino-americana]” (Osorio, 2016, p. 184). As irrupções sociais que desgarravam o tecido social latino-americano significaram, para a TMD, um convite à releitura do desenvolvimento capitalista regional, na qual importava enunciar seus pontos de tensão e fissura: sua inconsistência imanente. Voltarei em breve sobre esta questão.

A fidelidade ao jargão e ao cânone metodológico da antropologia também introduz consequências problemáticas no enfoque de Arturo Escobar, principalmente quando ele faz apologia das virtudes do “distanciamento” e da “exotização” sem discutir com maior profundidade epistemológica suas possibilidades e limites. “Precisamos antropologizar o Ocidente – diz Paul Rabinow, endossado por Escobar –: mostrar o quão exótica é a sua construção da realidade […]” (Rabinow, 1986 apud Escobar, 2007, p. 32). Diante desta tarefa, a análise de discurso seria uma ferramenta útil, na medida em que “cria a possibilidade de ‘nos mantermos desligados [do discurso do desenvolvimento], suspendendo sua proximidade, para analisar o contexto teórico e prático com que esteve associado’” (ibidem, p. 23). Apesar das declarações de intenção, nunca fica claro como, exatamente, operar a “exotização” e o “desligamento” e em que medida estas posturas poderiam nos conduzir a pensar “mais além do desenvolvimento”.

Certamente, o procedimento genealógico permite constatar a historicidade singular do discurso do desenvolvimento e sua especificidade como produto cultural do Ocidente. Por sua vez, o enfoque comparativo preconizado pela antropologia permite expor as múltiplas formas atualmente existentes de organização da vida social humana, tornando factível sustentar, ainda que seja no plano da teoria, sua eventual dignidade política. Finalmente, a análise de discurso conduz ao diagnóstico das premissas que orientam a mobilização de certas categorias no marco de uma dada estratégia de poder. Entretanto, estes procedimentos analíticos não garantem que estejamos realmente indo mais além do discurso e da prática do desenvolvimento e nem sequer concretizando sua efetiva exotização. A promessa de superação da “era do desenvolvimento” fica pendente no trabalho de Escobar e, a primeira vista, parece hercúlea. Contudo, se adotarmos o ponto de vista da imanência, o desenvolvimento – como qualquer regime de representação, poder e exploração –, em suas múltiplas expressões locais, está sempre em processo de esgotamento, independentemente da decisão dos antropólogos de “liberar o campo discursivo para que a tarefa de imaginar alternativas possa começar” (ibid., p. 37). As alternativas não batem na porta antes de entrar. Elas são extemporâneas. O próprio Escobar parece reconhecer en passant este fato nas conclusões de seu livro mais célebre: “o desenvolvimento é autodestrutivo […] está sendo desmontado pela ação social, ainda que continue destruindo as pessoas e a natureza” (ibid., p. 364).

Que as antropologias mainstream reivindiquem para si a tarefa de “exotizar o familiar e familiarizar o exótico” talvez nos diga menos sobre o que elas realmente fazem do que sobre sua vontade de demarcar certa especificidade metodológica num mercado acadêmico disciplinarista e vaidoso. Seja como for, para os não conversos ao dogma disciplinar, é difícil assimilar a ideia de que, mediante operações basicamente analíticas e desconstrutivas, alguém estaria em condições de se desligar das categorias de pensamento inerentes à formação social que pretende questionar. Não quero dizer que o estranhamento de nosso mundo seja impossível; gostaria, apenas, de sugerir que sua efetivação é uma tarefa prática árdua que não depende apenas de vontades individuais – por mais metódicas que sejam – e está condicionada, em certa medida, pelo azar das circunstâncias e pelo materialismo dos encontros. Louis Althusser oferece algumas asserções que ajudam a elucidar este ponto e merecem ser citadas um pouco mais extensamente:

“no final das contas, toda a verdadeira crítica é imanente e primeiro real e material antes de ser consciente […]. Se avançarmos na análise desta condição, encontraremos facilmente este princípio, fundamental para Marx, de que não é possível que nenhuma forma de consciência ideológica contenha nela mesma os meios para sair de si através de sua própria dialética interna. […] a consciência acessa o real não por seu próprio desenvolvimento interno, mas sim pela descoberta radical de ‘outro’ diferente de si mesma” (Althusser, 2004 [1965], p.118; grifos meus).

Num registro marxista, a palavra “crítica” refere-se ao estranhamento possível das categorias que organizam um modo de vida e subsidiam sua reprodução. Este estranhamento deriva da vivência de um desajuste entre a realidade existente e a objetividade dos possíveis que se oferecem à consciência dos sujeitos sem, contudo, dispor necessariamente de meios para serem completamente realizados. Sob o capitalismo, o estranhamento possível é imanente às operações do capital – como também o são as contradições sistêmicas –, e seu momento privilegiado, para utilizar uma evocativa imagem de Jacques Rancière, ocorre quando “o mundo real vacila na aparência” e nos é dada a oportunidade fugaz de formular um juízo ao seu respeito com as palavras que encontramos a nosso alcance (Rancière, 2010 [1981], p. 47). Atenta a estes momentos, que irrompem vez que outra no devir histórico das coletividades humanas, a crítica marxista foi tornando-se, de fato, “a sabedoria acumulada das revoluções populares, da razão que elas engendram e da fixação e especificação do seu objeto” (Badiou, 1982, p. 16 apud Bosteels, 2007, p. 184). Em consonância com esta tradição, a TMD demonstrou enorme interesse pelas situações revolucionárias de sua época, especialmente pela Revolução Cubana, que, ao desafiar na prática as razões reformistas, parecia inscrever a conflitividade social latino-americana noutro horizonte de possibilidades: “a gestação da esquerda revolucionária brasileira e latino-americana […] não é, como se pretende, efeito da Revolução cubana, mas parte do mesmo processo que deu origem a ela” (Marini, 1992, p. 63).

Desde o início dos anos 1960, a Revolução Cubana tornara-se a experiência mais radical de “estranhamento” do capitalismo latino-americano. A razão desta revolução – o socialismo – fora percebida pela TMD como operadora potencial de uma síntese das resistências populares mais além dos quadros institucionais existentes. O socialismo era o ponto de partida das análises propostas pela TMD e constituía, simultaneamente, a superação prática das constatações alcançadas por essa corrente teórica. Explico: se poderia haver revolução socialista, era porque, em determinada época, certas capacidades humanas apareciam como irrealizáveis do ponto de vista da ordem social existente, denominada capitalismo. A coerção estrutural destas capacidades humanas – entre as quais incluía-se a possibilidade de afirmar o valor da própria vida independentemente do preço atribuído a ela nos cálculos do sistema – tornou-se objeto de pesquisa para a TMD. Por sua vez, a negação desta estrutura coerciva identificada por Marini e outros invocava o horizonte político anunciado pela “consciência possível” mais radical de seu tempo. Tratava-se de um horizonte no qual os próprios trabalhadores poderiam tornar-se protagonistas diretos da formulação de alternativas à subordinação de seus modos de vida, sem se submeterem a ditames pré-fabricados sobre desenvolvimento e industrialização. Depois da tomada de Havana, em 1959, era necessário reconhecer que a luta anti-imperialista, calcada na aliança com setores supostamente “progressistas” da burguesia local, havia sido concretamente ultrapassada pela perspectiva da autodeterminação popular, de modo que todas as formas de exploração tornavam-se, a partir de então, necessariamente discutíveis e possivelmente superáveis, sem qualquer reparo.

Finalizo este artigo sublinhando um aspecto muito particular da TMD que a aproxima de outras expressões do marxismo, ao passo que denota seu desencontro decisivo com as demais razões críticas apresentadas ao longo do texto. Os teóricos marxistas da dependência desenvolveram um procedimento crítico que conjugava descrição, análise e prescrição. A enunciação teoricamente informada daquilo que “é” estava orientada pelo vislumbre de como as coisas poderiam, objetivamente, ser diferentes do que são. Este procedimento crítico, ao mesmo tempo descritivo e prescritivo, era fruto da criativa relação estabelecida entre os teóricos marxistas da dependência e os movimentos políticos que tentavam questionar, na prática, a suposta necessidade de mobilização do trabalho segundo os padrões observados na América Latina. Não seria um exagero dizer, então, que a TMD respondeu teoricamente a uma objetividade política colocada pela onda revolucionária latino-americana da segunda metade do século XX. Referida objetividade política poderia ser sintetizada assim: aqueles cuja própria existência é negligenciada pelo devir histórico do modo de produção são capazes, não obstante, de impugná-lo de cabo a rabo, sem concessões. Nas décadas de 1960 e 1970, os nomes dessa impugnação eram “revolução” e “socialismo”. Hoje em dia, a retomada do impulso crítico materializado na TMD talvez passe por descrever e estranhar as realidades do poder à luz de enunciados políticos concretos[11]; enunciados que sinalizem, em cada situação, as inconsistências da ordem vigente e que nomeiem capacidades coletivas inéditas, radicalmente indóceis ao status quo.

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Notas

[1] Um dos expoentes do neodesenvolvimentismo no campo da teoria social brasileira foi Fernando Henrique Cardoso, que promoveu intensamente sua doutrina através do CEBRAP, com apoio financeiro da Fundação Ford (cf. Canedo, 2016).

[2]As diversas perspectivas associadas à análise pós-estruturalista do desenvolvimento foram condensadas no Diccionario del desarrollo. Una guía del conocimiento como poder, editado por Wolfgang Sachs (1996).

[3]As obras de Alain Badiou (2008 [2006]) e Slavoj Žižek (2016 [2014]) representam esforços filosóficos neste sentido. Ver, também, Bruno Bosteels (2007). Num texto recente (Moraes, 2018), reviso as contribuições destes e de outros autores no contexto de um comentário sobre a reemergência das “sensibilidades comunistas” tanto na filosofia como no terreno da pesquisa social.

[4]Marcello Musto (2015) compila uma série de ensaios que revelam as tendências atuais do “retorno a Marx” em diversos campos do pensamento filosófico e social. O livro organizado por Boron et alii (2006) também é elucidativo a respeito.

[5]Dito consenso teórico é tensionado por publicações antropológicas internacionais como Dialectical Anthropology e Critique of Anthropology, ambas disponíveis na internet. Contudo, na antropologia universitária brasileira, não são frequentes os exercícios de experimentação teórica informados pelo programa reflexivo de Karl Marx. O livro de Jean Tible (2013), intitulado Marx Selvagem, parece ser exceção à regra. Recentemente, um grupo de estudantes e pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais começou a impulsionar a revista Práxis Comunal, que tem como foco viabilizar publicações na perspectiva do pensamento marxista contemplando, preferencialmente, as áreas da antropologia, da arqueologia e da história. Finalmente, o Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC), do qual faço parte, propõe-se a “delirar a antropologia” através de uma apropriação singular do marxismo, engendrando espaços extrauniversitários de invenção teórica, pesquisa e autoformação. O GEAC difunde sua produção e suas atividades na seguinte página web: <http://www.antropologiacritica.wordpress.com/&gt;

[6]  Todas as citações foram traduzidas pelo autor.

[7] A noção de “dependência” foi adquirindo notável polifonia desde sua instalação na teoria social latino-americana através de alguns trabalhos-chave, elaborados por cientistas sociais que orbitavam a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), sediada em Santiago do Chile a partir de 1948. Neste contexto, habitado inicialmente por economistas como Celso Furtado e Juan Noyola e, mais tarde, por sociólogos como Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, foram se desenvolvendo contribuições originais para uma teoria do subdesenvolvimento da América Latina. Para uma revisão recente dos debates cepalinos, ver Osorio (2016) e Svampa (2016), especialmente os capítulos 2 e 3.

[8] Para uma interessante análise do antagonismo “capital-vida” inspirada pelas categorias da TMD, ver Osorio (2006).

[9]  Este livro foi originalmente publicado em inglês no ano de 1994 sob o título de Encountering Development: The Making and Unmaking of the Third World.

[10] Ribeiro e Fernandes (2017) analisam a produção dessa necessidade intelectual no decurso da trajetória biográfica de Ruy Mauro Marini.

[11] Procuro colocar em prática este tipo de procedimento, que denomino “crítica imanente”, num artigo recente (Moraes, 2017) sobre as experiências de trabalho, deslocamento e indocumentação de uma família de trabalhadores informais na fronteira brasileiro-uruguaia. Aprofundo a reflexão sobre as condições de possibilidade da crítica imanente em Moraes, 2018.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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