Por Rafael Saldanha
Imagem: Artur Cook (https://arturcook.blogspot.com/)
Somente na medida em que “as pessoas” não são tomadas como outros — visto que são como nós, singulares, autônomos, livres — é que a promessa da antropologia de um “encontro sensível com o/a outro/a” seria realizável. Mas se isso for o caso, não estaríamos dizendo que a antropologia é um dos caminhos pelos quais nos permitimos aspirar à ideia do comunismo?
Antes de torná-lo público, enviamos o livro Pensamentos Excessivos a alguns amigos e tentamos convencê-los a compartilhar conosco alguns comentários a fim de estimular outros leitores a tomarem contato com a obra. Reações como as que nos enviou o companheiro Rafael, do Rio de Janeiro, bem poderiam se transformar em prólogos do livro: são perspectivas que extraem novas sínteses do argumento do Máquina Crísica, uma vez que o situam, com agudez e sensibilidade, no devir de outras hipóteses, conceitos e militâncias. Ao redimensionar o alcance e as possíveis consequências daquilo que propomos no livro, tais reações nos dão o caminho para buscar outras formas de autoenunciação para ampliar nossas interlocuções e alianças.
Compartilharmos, abaixo, os comentários do Rafael.
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A primeira impressão que tive ao entrar em contato com o coletivo Máquina Crísica (em 2013, 2014?) foi de um ar meio deslocado na cena intelectual da antropologia. O que é que esse blog, de jovens pós-graduandos (próximos de mim, geracionalmente), esperava ao construir umas polêmicas com ~grandes figuras do campo? Naquele momento em que uma certa corrente da antropologia nacional começava a dar frutos em campos fora de seus limites disciplinares, me parecia extremamente preguiçoso entrar em polêmicas institucionais quando poderíamos lidar com as nossas divergências por meio de críticas que, na falta de palavra melhor, tivessem um objetivo construtivo. Não nego que inicialmente li esse impulso crítico como um desejo de “ganhar um espaço no campo”. Um movimento nada dissemelhante às pessoas que fazem na internet, criticando perfis com alto engajamento para poder inflar seu próprio perfil. Essa impressão inicial acabou ficando por isso mesmo. Algumas contingências, após esse contato inicial, fizeram com que a antropologia fosse aos poucos saindo do meu campo de interesses. Com isso também, qualquer possibilidade de acompanhar esses supostos polemistas também foi diminuindo.
Alguns anos depois (nesse borrão que chamamos de 2020 e 2021) acabei esbarrando com uma das integrantes desse coletivo e após inúmeras trocas, comecei a voltar a frequentar esse pequeno sítio que reunia o trabalho desse grupo. Já bem mudado, com outros interesses e questões, lembro de passar algumas semanas fuçando posts (antigos e novos), descobrindo alguns nomes que não conhecia, me reconhecendo em determinados pontos de vista e até discordando em alguns pontos capitais. De alguma forma, por mais que tenha aos poucos entendido que o jogo que jogavam era outro — e muito próximo de um tipo de jogo de “crítica da razão institucional” que começaria a jogar a partir de 2015 — ainda havia momentos em que lamentava a relutância desses amigos de assumirem qualquer postura conciliatória. Ainda que concordasse com suas críticas e com as inconsistências entre prática e teoria que apontavam em seu campo (e que eu identificava no meu), ainda não conseguia entender porque eles simplesmente não conseguiam criticar a base material produtora de conceitos sem abrir mão de se aproveitar qualquer ganho analítico que poderia advir do uso desses conceitos.
Essa impressão de uma “resistência” deles (ou minha resistência com a Máquina Crísica), porém, demorou menos tempo para se desfazer do que a impressão polemista do primeiro contato. Descontando elementos contingentes de meu percurso, cabe tentar entender o que é que acho que agora entendo sobre eles que antes não conseguia enxergar. A mudança na minha percepção tem a ver com dois princípios que tomam emprestado do antropólogo Sylvain Lazarus e que parecem de alguma forma dar todo o sentido para esse empreendimento e que até bem recentemente ainda me escapava (e também cuja compreensão conceitual dependeu também do contato com os textos dos membros desse grupo). Trata-se da ideia (que funciona como axioma) de que 1) “as pessoas pensam” e que 2) “o pensamento é relação do real”. Acredito que sejam esses dois postulados que ao mesmo tempo explicam a esquisitice desse grupo (seu caráter lateral, seu ar de polemista) e também seu maior valor. O que está implicado nessa conjunção é simples de entender mas difícil de explicar. Lazarus defende que se o outro (enquanto qualquer “pessoa”) pensa, e um pensamento é sempre algo que implica a relação que esse outro (essa pessoa) tem com a sua realidade, então qualquer tipo de análise, representação, recodificação do pensamento de um outro com intuito de melhor explicar tanto esse outro como sua situação, acaba inevitavelmente realizando uma operação que nega a autonomia desse outro de pensar. Esse pensamento de Lazarus (e retomado pelo Máquina Crísica) explicita de alguma forma uma série de contradições da antropologia, de suas práticas e de suas promessas, que precisam ser explicitadas para evitar o risco de querermos pensar o pensamento do outro. O problema que aparece é que se por um lado a antropologia aparece como uma promessa de “dar voz ao outro”, “apresentar o ponto de vista do outro”, “deixar o outro pensar” (ou qualquer variante do tipo), as suas formas de realização sempre se deram ou pela exportação de categorias e conceitos nativos ao antropólogo (em suas variantes eurocêntricas, colonialistas, imperialistas etc) ou pela importação das categorias do outro que implicam numa revisão da gramática do antropólogo (algo que vemos nas versões mais recentes e críticas da antropologia). Isso não parece um problema simples de resolver. Alguém poderia sugerir que basta literalmente “dar voz ao outro”. Ou seja, que o antropólogo se cale e com isso apenas deixe o outro falar. Ainda que isso seja necessário, que isso seja fundamental, o que essa solução faria seria anular a antropologia enquanto esse espaço de contato entre dois grupos com linguagens, gramáticas, filosofias a princípio incompatíveis. Assim, parece que esse impasse não apenas é difícil de resolver, como também parece um efeito da própria promessa da antropologia. Assim, a síntese de Lazarus pode ser lida menos como uma posição marginal, e mais como uma explicitação clara das contradições que constituem o campo da antropologia (como uma espécie de promessa que não pode ser resolvida, sustentada abertamente sem o risco de gerar paradoxos ou frustrações). O problema — e talvez esse seja o desafio para a antropologia — é que esse impasse não parece ser solúvel de um ponto de vista estritamente científico. A impressão que dá é que expôr as coisas dessa forma torna inevitável perceber as implicações políticas embutidas na promessa da antropologia. O que fazer diante disso?
É na tentativa de ser fiel a esse impasse (ser o espaço de contato com o outro, mas evitar falar pelo outro) que o Máquina Crísica parece oferecer uma solução inusitada (ainda que esteja longe de esgotar o problema). Trata-se de um movimento que parece emergir (ao menos para mim, que olho de fora, que acompanho seus movimentos sem no entanto saber todos os detalhes da história) do próprio fato de que seu “mito de origem” é a própria contradição da antropologia se instanciando na pós-graduação em antropologia em ampliação no Brasil de Lula e Dilma. O que temos, como vemos, é um espaço que é fundado a partir de uma promessa (a promessa da “possibilidade de um encontro sensível com o/a outro/a”), mas que para realizá-la, precisa construir um corpo institucional que anula qualquer tipo de singularidade em suas partes. O conhecimento do outro (seja quem for, desde que seja um objeto de estudo), é feito à custo da construção de uma Máquina Azeitada, que precisa recalcar constantemente que mesmo dentro de suas fileiras, há “pessoas” que também “pensam”. Alunos, técnicos e outros tantos indivíduos invisibilizados para que a promessa de um campo possa ser realizada da maneira mais eficiente possível. Isso não é novidade em pós-graduações. Sabemos que a destituição da individualidade (e de seus desejos) é um componente constante da construção de campos de pesquisa. É normal que na cauda de um grande nome, há sempre uma série de contribuições que ou são mal-lembradas ou insuficientemente reconhecidas (algo que não é simplesmente uma questão de ego, visto que sabemos os impactos financeiros e materiais que certos reconhecimentos resultam).
O que parece haver de singular na antropologia (e que explique a crise específica do qual a Máquina Crísica se instaura) é que esse sacrifício parece pôr explicitamente os sujeitos pesquisadores diante de uma promessa que é simultaneamente negada a eles: a subjetividade do outro é preservada ao custo de se abrir mão da subjetividade daquela pessoa implicada na pesquisa. Mais uma vez, isso talvez não fosse um problema, se o campo acadêmico não fosse organizado de modo a sistematicamente negar a voz, a participação e qualquer tipo de capacidade de gerência aos discentes e técnicos envolvidos também na construção desses espaços. Sabemos como é feito: uns tem “estudo”, “tempo de casa”, “experiência”, “qualificações” (ou qualquer outro tipo de “mérito”) que justifica que o pensamento deles é mais adequado ou mais próprio em sua relação com o real. Assim, se as diretrizes são decididas por um tipo de voz (o que não implica uma homogeneidade total, mas simplesmente uma restrição do escopo das divergências, visto que a base material considerada é menor). O que vemos, portanto, é um confronto curioso em que o pensamento certas pessoas tem sua relação com o real sistematicamente negada. Os efeitos disso vemos na maneira como certos tipos de divergências são recebidas: infantilizações, polêmicas bobas, propostas irrelevantes aos campos, etc. O que resulta é que salvo aqueles que se adequam ao discurso dominante, as divergências que põe o campo em crise, que apontam seus limites, acabam sendo disciplinadas de alguma forma (e sabemos o que isso significa, sabemos as implicações materiais). Desse ponto de vista a origem do coletivo Máquina Crísica (e a elaboração de seus pensamentos excesSivos, indisciplinados) parece uma consequência inevitável (mas não a única) de acoplar a promessa da antropologia, com suas implicações políticas, a um aparato burocrático e estatal que busca reconduzir qualquer tipo de novidade a um mero interesse “científico”.
Passada essa reflexão, acredito que a Máquina Crísica, com suas polêmicas, seus pontos de vista heterodoxos, me parece antes ser apenas um coletivo que é terrivelmente fiel às promessas que o próprio campo da antropologia faz a si mesmo. É como se em sua estranheza eles revelassem o caráter insano, insustentável da promessa antropológica. O mal-estar que eles trazem, portanto, não é a de um simples polemista que busca destruir, ser contrário às forças estabelecidas pelo simples prazer de fazer troça (ou de ganhar algum espaço). O que parece vir junto com esse esforço (inconclusivo, contínuo e muitas vezes de difícil compreensão) é justamente percepção de que talvez a única forma de respeitar que “as pessoas pensam” e que seus pensamentos são “relação do real” é se juntando a elas, trocando com elas, se misturando a elas para que os pensamentos delas e os nossos se tornem de alguma forma aquilo que pensamos juntos. Somente na medida em que “as pessoas” não são tomadas como outros — visto que são como nós, singulares, autônomos, livres — é que a promessa da antropologia de um “encontro sensível com o/a outro/a” seria realizável. Mas se isso for o caso, não estaríamos dizendo que a antropologia é um dos caminhos pelos quais nos permitimos aspirar à ideia do comunismo?
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