Por Juliana Mesomo
Nas aulas de Introdução à Antropologia nos dizem: “aposte na sua sensibilidade, no seu olhar atento, nas intuições, nas conversas e vínculos com as pessoas”. Como diria Belchior: na antropologia, nosso delírio é a experiência com coisas reais. Num certo momento, contudo, é preciso regular e pôr freios nesse mergulho no mundo, tão criativo e potente. Por que isso acontece?
* * *
Quando um professor diz: “Isso é coisa de graduação”, referindo-se a sua forma “ingênua” de elaborar um problema ou a sua atuação política, não se sinta envergonhado pela sua atitude. Se você não tem atitudes de gente de graduação provavelmente já se tornou dócil o suficiente para perder sua autonomia de pensamento e seus vínculos apaixonados com o mundo real. Explico.
“Menina, vem trabalhar comigo, você é ótima”
Quando entramos na graduação, os professores costumam estar bastante atentos à criatividade e ao vigor com que os jovens estudantes criam questões sobre o mundo e a vida. Convidam-nos para participar de grupos de pesquisa e parcerias, principalmente se já tivermos certo domínio, “de berço” ou por esforço, da escrita acadêmica. Obviamente que estes convites passam pelo crivo de concepções classistas e racistas sobre o que é um “pesquisador em potencial”, mas muitos estudantes apesar disso e outros por conta disso conseguem chegar a conquistar a atenção de algum professor. Chegando à pós-graduação, no entanto, a criatividade dos primeiros anos parece encontrar escassos lugares para florescer e um esforço combativo muito grande é exigido para tornar dizível neste espaço o que queremos dizer. Apesar do esforço, chega-se ao final do doutorado, ou mesmo antes, com a desgraçada e mortífera sensação de perda de si, da criatividade e da força afirmativa. Vamos aderindo a uma agenda de pesquisa que parece não contemplar exatamente nossas inquietações e experiências. Nas aulas de Introdução à Antropologia nos dizem: “aposte na sua sensibilidade, no seu olhar atento, nas intuições, nas conversas e vínculos com as pessoas”. Como diria Belchior: na antropologia, nosso delírio é a experiência com coisas reais. Num certo momento, no entanto, é preciso regular e pôr freios nesse mergulho no mundo, tão criativo e potente. Por que isso acontece?
Há três formas de responder a pergunta. A primeira diz respeito à consciência de classe predominante nas academias antropológicas e à identificação de classe. Embora a voz, ou o ponto de vista da academia antropológica não seja de classe trabalhadora, a presença sim o é, e cada vez mais. A identificação com um ethos e uma consciência que não são as nossas, nos faz perder as referências. Utilizo aqui um argumento semelhante ao do texto “A voz das Ciências Sociais é masculina?”, que indica que, apesar da presença feminina ser preponderante nos cursos em ciências humanas, a “voz”, ou seja, os autores e referenciais mais citados e, por conseguinte, o modus operandi de definição de problemas, análises e conclusões, é masculino. Da mesma forma, para quem é de origem social vinculada às classes trabalhadoras pode causar-lhe certa confusão identificar-se com uma consciência e um ethos burgueses. David Graeber, por exemplo, indica que, nos Estados Unidos, a classe trabalhadora veio sendo deslocada nas universidades e nos cursos de Ciências Humanas por uma classe emergente a qual denominou professional-managerial class – uma espécie de classe média que ocupa postos de gestão e burocracia no Estado neoliberal, na gestão social e nas empresas e cuja relação com a classe proprietária não é de antagonismo, mas de admiração. A presença cada vez mais importante dessa classe nas universidades – aliada ao declínio das condições de vida da classe trabalhadora nos EUA e das suas possibilidades de acesso ao Ensino Superior — foi crucial para uma verdadeira torção nos currículos dos cursos de Ciências Humanas, cuja formação se encaminhou paulatinamente a adaptar-se à consciência burocratizada e formalista desta “classe gerencial profissional”, e para o deslocamento de teorias e posturas ligadas à classe trabalhadora dentro das Universidades.
No caso do Brasil, a democratização recente do Ensino Superior e o fato de as classes trabalhadoras persistirem bravamente em alguns espaços universitários (com destaque para o caso da História e a “historiografia dos de baixo”, a Educação, o Serviço Social, a Saúde Coletiva e alguns espaços da Sociologia) conflita com a insistência na meritocracia e a recente conversão da Universidade pública em uma prestadora de serviços em algumas áreas. Mais especificamente, segundo Carlos Coutinho (1979), a partir dos anos 1960, a complexificação do mercado de trabalho e a criação de um “exército cultural de reserva”, que se expressa no amplo desemprego ou subemprego de intelectuais e pesquisadores, cria diferenciações salariais extremadas entre as diferentes categorias de intelectuais. “Assim é que ao lado de uma minoria tecnocrática privilegiada, vai se ampliando um setor da intelectualidade para o qual a cooptação [pelos interesses das classes dominantes] perde completamente sua razão de ser”, e parte dos intelectuais podem se identificar diretamente com os interesses das classes trabalhadoras do país. Este impulso, no entanto, conflita com os resquícios de uma Universidade pública ainda elitizada e com o recente encaminhamento neoliberal da organização universitária. (Sobre luta de classes na antropologia e na universidade, ver também: “O/A antropólogo/a como produtor/a ou a luta de classes nas antropologias e um exemplo de colonização epistêmica” e “Antropologia liberal versus antropologia da libertação”).
A segunda forma de responder a pergunta sobre o porquê da perda de autonomia ao longo das nossas trajetórias institucionais passa por explorar os efeitos do produtivismo sobre a criação de pesquisas e a reflexão, elemento este mais presente nos dias atuais e que atinge também os professores universitários. Na época em que nossos professores se formaram, no entanto, o apelo produtivista não era tão importante na estruturação do ambiente de formação. O produtivismo tende a subsumir tanto a qualidade dos vínculos estabelecidos entre pesquisador e interlocutor quanto o conteúdo das pesquisas (seu valor de uso) à quantidade de publicações e lattes points (seu valor de troca) contidos, potencialmente, nos resultados escritos do trabalho investigativo. Este movimento de realização do valor de troca potencial de qualquer esforço intelectual tende a bloquear a mobilização de outros valores de uso decorrentes do nosso labor. O critério de atribuição de valor de troca ao conhecimento produzido através da pesquisa acadêmica é a sua publicabilidade. Ou seja, o valor total de uma pesquisa equivale ao seu valor potencial no mercado editorial e nos circuitos acadêmicos de avaliação — o que exclui uma série de impactos sociais, existenciais e políticos que uma pesquisa pode ter. No fim das contas, o valor de uma pesquisa no mercado das publicações acaba colonizando inclusive nossos vínculos com interlocutores, já que todo engajamento possível não deve pôr em cheque a capacidade de publicarmos em revistas indexadas os resultados das pesquisas. (Para um debate sobre a conversão das pesquisas em valores de troca no mercado editorial acadêmico, ver as intervenções do Coletivo Indocentia e do próprio GEAC).
A terceira resposta à pergunta inicialmente colocada é mais complicada de entender, pois ela chama a atenção sobre problemas de difícil resolução que constituem, eles próprios, uma vantagem e ao mesmo tempo uma desvantagem da antropologia enquanto disciplina. A identificação com o ponto de vista antropológico depende da inscrição de quem o reivindica numa espécie de posição mediadora evanescente. Situados nesta posição, estaríamos em condições de exorcizar nossos preconceitos e “limitações do olhar” — o famoso “senso comum” que trazemos conosco – para operar, quase sem ser vistos, a tradução recíproca entre diferentes lógicas de pensamento ou sistemas simbólicos. Este ponto de vista neutro, no entanto, encaixa-se melhor àqueles seres que têm a possibilidade de se desmarcar socialmente — homens, brancos e de classe não trabalhadora. Ora, é verdade que o ponto de vista científico antropológico permite que uma pessoa racista, por exemplo, reacomode seu olhar em direção a outras formas culturais, ao respeito à diversidade, à abertura para o Outro, etc. Mas quem é esta consciência abstrata que pode vigiar-se epistemologicamente, que pode desfazer-se de suas marcações enquanto sujeito social, que pode, de maneira liberal, mudar seu ponto de vista sem mudar de lugar socialmente? O ponto de vista da Antropologia não tem conteúdo específico — faz tempo que a disciplina não é habitada apenas por homens brancos europeus . Ele é, portanto, uma forma cuja consistência e continuidade necessita expurgar de si qualquer conteúdo. Os conteúdos históricos e localizados são incorporados de forma subalterna no seu próprio corpus teórico, mediante a “diversidade” de pontos de vista descritos como “objetos” nas etnografias. Esta identificação com o ponto de vista da Antropologia é sempre mediada com relação a um significante maior, o qual não é nem homem, nem mulher; nem negro nem branco nem índio; nem proletário nem burguês; talvez nem criança nem adulto: uma espécie de consciência universal desmarcada. No entanto, esta “forma”, a qual todos podem eventualmente preencher com sua presença localizada, não é tão vazia quanto parece. Ela foi socialmente produzida, ou seja, é determinada por relações sociais. Aqui cabe perguntar: qual é a cor, a classe e o gênero de quem pode dizer-se livre de pré-noções (que são, na verdade, noções tornadas “pré” em relação à disciplina)? O ponto de vista da antropologia é masculinizado –, sua fala é pública e quase sempre visa a “democracia”, o “entendimento”, o “diálogo” –, tem o ethos liberal, conciliador e cordial de um burguês e o pacifismo que é privilégio da branquitude. É desejável, então, que as pré-noções de uma pessoa racista desapareçam no seio do ponto de vista antropológico. Mas e no caso de pré-noções ligadas a posições anti-racistas, feministas, proletárias? Como isso é assimilado pelo olho da disciplina?
Eis o truque da Antropologia: somente um sujeito des-identificado pode se identificar de forma transparente e imediata com seus interlocutores. Do contrário, seriam pessoas concretas interagindo com pessoas concretas (racistas versus anti-racistas; burgueses contra proletários; feministas brancas e feministas negras, dialogando ou acirrando seus pontos de vista) como acontece no mundo real. Aqui, a Antropologia é como o Estado Burguês na teoria marxista de Louis Althusser: pretende figurar uma diversidade, um pluralismo mediado por esse “sujeito vazio” (masculinizado, mas que não é a masculinidade real e atual, por exemplo), como se representasse todos os interesses ao não representar nenhum a priori. Para isso é preciso negar no dia-a-dia a pluralidade concreta dos pontos de vista e das antropologias existentes, principalmente daquelas praticadas pelos estudantes. Para isso, nós precisamos nos des-identificar das nossas experiências e inquietações, enfim, da nossa posição de sujeito. Somos convocados a nos tornar uma tábula rasa para poder nos identificar em seguida com o ponto de vista antropológico. A esta aprendizagem – ou disciplinamento – escolhi denominar “dessubjetivação”.
O que quero desdobrar aqui é o seguinte argumento: onde a Antropologia com A maiúsculo se desdobra como gramática, assistimos a configuração de uma forma ideológica semelhante, por exemplo, à forma Estado, que mistifica as relações de classe ao apregoar a possibilidade de mediá-las. Não há antropologias negras, feministas e operárias de um lado, e antropologias racistas, burguesas e masculinistas de outro. Há uma única Antropologia que abarca todos esses pontos de vistas, sincrônica e diacronicamente – disfarçando e eventualmente combatendo seu lado racista, burguês e masculinista. Operando em nome de “todos” em abstrato, as instituições antropológicas negam a ação de cada um e respaldam a dominação real de uma classe e de um tipo de sujeito (branco, homem, etc). Em que lugar, além do Estado “democrático” de direito e da Antropologia, um racista pode dialogar pacificamente com um anti-racista, um burguês com um proletário, a partir de uma linguagem comum como se não existisse desigualdade, conflito e dominação? Extraordinária invenção. Para falar sobre o índio, sobre as mulheres brancas e negras, sobre as classes populares é preciso negá-los na sua corporeidade, materialidade e voz própria dentro dos espaços da disciplina e, assim, emular um diálogo de salão.
No entanto, isso não acontece exatamente contra nós, ou à nossa revelia. Ocorre com certo consentimento e iniciativa própria quando escolhemos nos des-identificar de nossas experiências, intuições, vínculos, noções, pensamentos, para nos identificar com o ponto de vista da Antropologia e, logo, com o de um terceiro, a saber, o interlocutor (ou “nativo”), já também ele depurado da sua vivacidade, pois só conseguimos interagir com estas pessoas como pesquisadores no máximo íntimos, no máximo amigos, no máximo porta-vozes, ou então identificado completamente com elas. Nós desejamos, em alguma medida, estar onde está o ponto de vista antropológico, pois ele é poderoso e fala com legitimidade às plateias de uma democracia liberal. O resultado da dessubjetivação, no entanto, é que, enquanto seres políticos e localizados que éramos ou que poderíamos ser, somos incapazes já de estabelecer relação com as pessoas.
“A dialética tu deixas para a reunião do partido”
A frase foi dita por uma professora de pós-graduação a um estudante durante os acirrados debates decorrentes da greve discente no Mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2011. Tanto para argumentar politicamente quanto teoricamente, a “dialética” não era tolerada pois era “coisa de partido”. No entanto, quando for preciso “estudá-la” ou pesquisá-la devidamente em alguma organização, poderá tornar-se objeto de especulação. Para ter um ponto de vista localizado não basta falar sobre gênero, nem aderir a determinadas teorias feministas, negras ou proletárias. É preciso pensar o lugar da universidade na nossa sociedade, as relações e conflitos entre as classes e a possibilidade de dialogar sobre nossas inquietações concretas dentro da sala de aula e mais além dela. É preciso recuperar “os não-ditos”, impedir que eles sejam circunscritos nos espaços da não elaboração, da não politização, da não teorização; impedir que eles só possam existir sob a forma docilizada de objetos de pesquisa (a classe trabalhadora, a raça, o gênero, a desigualdade de acesso ao Ensino Superior, etc.). A pesquisa docilizada nos leva a falar aos sujeitos enclassados, generizados, racializados – e, portanto, eventualmente a nós mesmxs – a partir de uma experiência cindida, desencarnada que, dizem os burocratas, só pode se inscrever no mundo acadêmico enquanto produtora de uma especulação destinada a produção de mais valor de troca (neste caso, hoje em dia, de boas publicações).
Alguém um dia me disse: “esses caras estudam relações de desigualdade e meritocracia na Universidade, mas são incapazes de reconhecê-las ocorrendo no próprio cotidiano”. Talvez a expressão não docilizada da pesquisa consista numa operacionalização imediata de sua problemática e dos seus resultados no campo de ação onde nos encontramos inseridos. Isto significaria, como já foi sugerido em outra publicação do blog do GEAC, converter a academia no campo [de batalha] que ela nunca deixou de ser. Para parafrasear um companheiro, é preciso fazer “eclodir” a raça, a classe e o gênero na disciplina, afirmando sua presença real, politizá-las e torná-las discurso, epistemologia, posição teórica.
Não nos tornamos nunca completamente esse ideal ponto de vista liberal, pluralista e vazio da Antropologia, mas somos assediados todo o tempo por sua pretensão universalista. O problema é bem mais dramático do que parece e começa muito cedo, quando começamos a abrir mão dos desejos sinceros, da paixão pelo vínculo com aqueles que conhecemos através das (ou antes de quaisquer) pesquisas, dos vínculos que nos construíram enquanto sujeitos ético-políticos e da politicidade da nossa presença no mundo – por exemplo, nossa presença em movimentos, partidos, coletivos, grupos e espaços formadores de um discurso sobre o mundo e de uma moralidade compartilhada. Nos dessubjetivamos ou nos desidentificamos do que fomos, somos e gostaríamos de ser para nos identificar com a subjetividade Antropológica e, por conseguinte, delegamos a ela o papel ético, político e até existencial, em alguns casos, que temos no mundo.
Tente, por exemplo, elaborar em seus próprios termos um problema importante para você em uma sala de aula de pós-graduação. Se ele não for elaborado a partir da linguagem disciplinar, ele deve virar um “dado”, uma questão de vivência ou de experiência. Uma questão a ser analisada “de fora”. Se ele for um problema com pretensões de universalidade, deverá ser formulado na linguagem antropológica – não feminista, nem militante, nem muito apaixonada, nem demasiadamente banal. Tudo se passa como se apenas a universalidade antropológica e suas mornas paixões existissem. O ponto de vista localizado, ou a corpopolitica do conhecimento, sempre será deslocada ao lugar da vivência, do dado ou do conteúdo a ser analisado. Dificilmente torna-se ponto de partida para elaborar um problema universal, uma estrutura teórica ou uma proposição epistemológica ou metodológica que substitua ou modifique o ponto de vista Antropológico. Quando isso acontece, é facilmente jogado aos entulhos anedóticos, mas dificilmente merece um lugar na historiografia oficial da disciplina — o que resulta em que temos que sempre começar o trabalho a partir do zero. Assim, a vivência ou a experiência localizada e a enunciação de um problema geral dificilmente se encaixam, pois o ponto de vista materialmente informado não é valorizado senão como fonte de dados para análise. Em tese, a vivência e a experiência localizadas são o essencial da teoria antropológica, mas elas só podem ser mediadas – ou comunizadas – pelo texto e a partir do diálogo — quase nunca conflito ou ruptura — com os cânones disciplinares. O ponto de vista localizado transformado em teoria antropológica é raramente tolerado. Mas, isto não é o que Viveiros de Castro faz, tornar o ponto de vista localizado teoria antropológica? Não exatamente, pois ele já parte desta consciência universal antropológica desmarcada (a tríade Levi-Strauss, Sahlins e Clastres é seu ponto de partida) e desrespeita completamente seus leitores e interlocutores ao não esclarecer e não fazer a crítica necessária à estrutura de privilégios que o permite falar sobre o “pensamento selvagem”. (Sobre a necessidade de “nativizar” a experiência do próprio antropólogo para manter as fronteiras disciplinares bem policiadas, ver o debate desenvolvido por Tomás Guzmán e Alex Moraes aqui e aqui).
A identificação com o ponto de vista antropológico é mediada, ou seja, acontece sempre através da passagem por este significante maior. Quais são os exemplos de grandes antropólogos? Levi-Strauss, Margareth Mead e Marylin Strathern. Exemplos mais contemporâneos seriam Didier Fassin, Viveiros de Castro, Bruno Latour, João Biehl e Veena Das. Mas, por que as figuras destacadas permanecem sendo aparentemente xs grandes promotores do diálogo entre sujeitos diferentes, pessoas de certo bom senso reconhecido e capacidade admirável de desfazer “mal entendidos”? Salvo, talvez, Veena Das, todos são apresentados como portadores de uma polidez típica dos lordes e de uma capacidade de orquestrar debates entre gregos e troianos: são estes os atributos básicos do ethos que a Antropologia quer manter. Enquanto que os outros permanecem sendo os antropólogos negros, as antropólogas feministas muito radicalizadas, aqueles que propõem ações de ruptura porque não entenderam nada sobre a “boa política” de salão. Estes últimos, se quiserem ser ouvidos, também precisarão dialogar com esta grande consciência universal antropológica. Mas é claro que pessoas de classe trabalhadora, militantes, pessoas não brancas e mulheres, feministas ou não, têm dificuldade de se desmarcar, de ser menos urgentes nas suas demandas e mais conciliadoras. Elas são as pessoas que causam traumas na normalidade aparente, não as que buscam amenizar traumas. São as que negam a aparência democrática do diálogo, não as que silenciam o conflito em nome de uma “conversa” tranquila. Como exigir que sejamos lordes de salão? Justamente nós, pessoas cujas vidas se construíram sobre a irrupção no espaço público, a luta por direitos, as brigas estrondosas e a presença impactante?
O problema do ponto de vista: qual é o seu lugar?
Muitos dirão: este cuidado com a localização “exagerada” do ponto de vista é apenas um cuidado com a reflexão científica. Estão certos? Sim e não. Sim, do ponto de vista das correntes epistemológicas que consideram que para chegar a um postulado científico/verdadeiro é preciso sempre praticar uma vigilância psicológica/epistemológica para que o indivíduo não subjetive demais sua análise e sua construção da pesquisa. Não, do ponto de vista daquelas correntes que consideram que o conhecimento sempre é fruto de uma localização no espectro das classes, da experiência de gênero e racial, etc. Esta localização não contamina o postulado ou a possibilidade de fazer pesquisas porque ela é um a priori, um pressuposto que já está desde sempre ali.
Nesta segunda postura, o autor deve se esforçar, então, por ser o mais fiel possível na explicitação das condições de possibilidade de sua fala, por um lado, e por outro, esforçar-se por elaborar de forma racional, demonstrativa, científica suas análises. As palavras “ciência” e “racional” não têm, aqui, conotação rígida. Elas fazem referência a algumas coordenadas de produção do conhecimento que permitiriam – inclusive a partir da evocação das determinações que o pesquisador identifica como condicionantes do seu ponto de vista – que os enunciados produzidos possam ser verificados, contestados ou usados como conclusões fidedignas por outras pessoas, mesmo que elas não compartilhem o mesmo ponto de vista do autor, em um determinado período histórico. É uma abordagem que inclui o ponto de vista material e corporal na formulação do conhecimento; e que não o toma como um mero dado da vida do pesquisador (que pode eventualmente ser “nativizado”), uma realidade com a qual “fatalmente” teremos que lidar, podando alguns excessos de subjetivismo e vínculos muito politizados.
Por outro lado, já que o ponto de vista de qualquer teoria é localizado, ela inclui os desejos de emancipação dos sujeitos e grupos que abrange na sua rede de diálogos-em-política. Outras propostas epistemológicas estabelecem que a objetividade mede-se pelo poder de transformação que um enunciado porta em direção a um mundo inclusivo onde todos possam ser ouvidos. Para aqueles aos quais “não se permite não ter um corpo e um ponto de vista finito” (Donna Haraway), o recurso a uma rede de diálogos-em-política e a conexão entre saberes parciais é fundamental. Nestas alianças entre corpos, saberes localizados, objetividades parciais, dissidências, etc., não é necessário, como nas disciplinas acadêmicas, “pagar pedágio” a uma linguagem única de tradução supostamente desmarcada e neutra — “uma linguagem imposta como pârametro de todas as traduções/conversões (…) quando há apenas uma equação (…) como acontece com o dinheiro no âmbito das trocas do capitalismo” (Donna Haraway). Também não precisamos, portanto, fingir que não ocupamos lugar algum, que não sofremos exclusões, que não nos importamos com as exclusões e que não portamos privilégios. (Para um debate sobre Donna Haraway e sua proposta de uma “ciência sucessora”, acesse aqui)
Que antropologia queremos praticar?
Para finalizar podemos abrir nossa proposta tipicamente geaquiana, cuja pretensão é entrar em diálogo com mais pessoas e coletivos. Pretendemos e propomos inverter a ordem de importância entre vidas, políticas e antropologias, para que não tenhamos que, ao recorrer ao farto e criativo manancial do pensamento antropológico, carregar o fardo tanto do produtivismo quanto do ponto de vista burguês e desmarcado da disciplina. Defendemos uma forma de viver onde as antropologias possam estar a serviço de nossos projetos políticos com os outros, para que não nos mortifiquem num ponto de vista estéril e comprometido apenas com sua própria reprodução. Para tanto, é preciso proceder à crítica desses mecanismos, para entender que o ponto de vista liberal, de que as pessoas mudam de opinião sem mudar de lugar socialmente, não é um lugar tão interessante — muito menos para trabalhadorxs, mulheres, negrxs e indígenas. A Antropologia e aqueles que ocupam este lugar adequadamente sempre irão mostrar seus pelos pubianos — há que duvidar de sua conversão, há que duvidar do espaço higienizado que a Antropologia oferece para o “diálogo” e para a pacificação dos conflitos. A mediação do ponto de vista desmarcado da Antropologia é falsa. A invisibilidade aparente do mediador evanescente é um efeito de relações de poder e dominação reais. Devemos, por um lado, desvendar e desconstruir sua falsa promessa e, por outro, saber resgatar dela somente o que potencializa nossa ação no mundo e nossos diálogos em política. De volta ao ponto de partida, podemos resgatar do espírito daqueles anos de estudantes de graduação a potência de uma antropologia viva.
Textos consultados
Donna Haraway. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/1065_926_hARAWAY.pdf
Carlos Nelson Coutinho. “Cultura e Sociedade no Brasil” (1979) in: “Cultura e Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas”. Editora Expressão Popular: São Paulo, 2011.
David Graeber. “Anthropology and the rise of the professional-managerial class” http://www.haujournal.org/index.php/hau/article/view/hau4.3.007
Verônica Toste e Marcia Rangel Candido. “A voz das Ciências Sociais é masculina?” https://revistaescuta.wordpress.com/2016/03/24/a-voz-das-ciencias-sociais-e-masculina/
“Vivi muito tempo no mundo acadêmico. O mundo acadêmico é um lugar perigoso. Dá medo. Nietzsche muito cedo se sentiu incapaz de respirar o seu ar. Sobre o perigo de se viver na universidade ele fez uso de metáforas sinistras: “Eles se assentam frios na sombra fria: em tudo eles desejam ser apenas espectadores. Como aqueles que ficam nas ruas observando os passantes, eles esperam para observar os pensamentos que os outros pensam. […] Eles se vigiam uns aos outros com atenção e desconfiança. Férteis em espertezas mesquinhas, eles ficam tocaiados esperando os que andam com pés trôpegos: como aranhas eles esperam” (Assim falou Zaratustra FN II(II), p.655). Durante muitos anos, não tive coragem para dizer o que eu sabia. Por medo. As inquisições não são monopólios das igrejas e não se fazem só com lenha e fogo. É muito difícil viver numa universidade e continuar a cultivar os próprios pensamento. É muito mais seguro ficar moendo os pensamentos dos outros”.
Rubem Alves
Incrível a pertinência e atualidade dessas citações, de Rubem Alves e Nietzsche. Obrigado por compartilhar! Para devolver algo àqueles que nos provocam esse mal-estar, nada melhor que pensarmos sobre a sua mediocridade: porque a Universidade conseguiu ser assim?
Um abraço, obrigada pelo comentário 🙂
Juliana
Excelente teu texto, Juliana Messomo. Tu conseguíste ir fundo num tema muito delicado. Sem dúvida Vai inspirar alguns parágrafos como resposta! .
Oi Daniel! Que bom saber que repercutiu o texto, ficamos felizes! É fruto desses anos todos de debates do GEAC. Esperamos a resposta então, certamente vai nos mover 🙂
Obrigada pelo comentário. Grande abraço! Ju
Juliana, muito agradecido pela possibilidade de reflexão que teu texto trouxe. Incrível como o julgo acadêmico vai nos tirando a “essência humana”, nos diversos sentidos dessa expressão. Seu texto me fez lembrar porque sempre “esperneei” e como isso mantinha vivo em mim uma “chama de rebeldia” frente a esse cenário que você descreve. Perceba que escrevo no passado… Aos poucos, de forma lenta, silenciosa e solitária fui sucumbindo parcialmente a essa lógica. Descobrir pessoas “esperneando” traz uma força inenarrável e por isso compartilho esse comentário, para que saibas que teu texto ajudou (muito) a perceber o quanto docilizado e domesticado estou/estava. Seguimos “esperneando”!
Olá Thiago! Obrigada pelo comentário. Sem espernear acho que estamos fadados a reproduzir a disciplina pela disciplina… e inevitavelmente, assim, estaremos esvaziando nosso próprio trabalho, nossa própria vida. Sejamos seres políticos e sensíveis como todos são…
Como tentei mostrar no texto, acho que tem aí uma questão geracional também. Nos últimos anos a necessidade de produzir por produzir vem impactando desde muito cedo na nossa formação. Acho que, hoje em dia, é questão de sobrevivência espernear e fazer a crítica deste lugar de enunciação que convencionou-se chamar antropologia.
Ficamos felizes que o texto tenha ajudado. Quando quiseres compartilhar mais inquietações, angústias, ideias, fique à vontade. Certamente irá nos ajudar também. Um abraço! Juliana