O bate-papo com o documentarista e pesquisador Fernando Tivane é uma ponte para entrarmos em sintonia com aqueles sujeitos que fabulam e realizam relações econômicas criativas no sul de Moçambique. Passados 40 anos do processo de libertação nacional liderado por Samora Machel, e refluído o fervor revolucionário de outrora, talvez os critérios atuais para a construção da autonomia econômica e do bem-estar popular estejam sendo cultivados longe do aparelho de Estado, mas nem por isso em convergência com o capital.
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Há pouco mais de um ano, estávamos em Maputo, a capital de Moçambique. Neste mês de agosto, em pleno inverno do Sul do Brasil, buscamos abrigo na memória daqueles dias mais amenos, às margens do Índico, quando o importante era andar por aí, com muito tempo livre, em busca de novos encontros. À época, nossos anfitriões sugeriam que percorrêssemos os mercados de rua da cidade, onde abundavam as frutas e as verduras frescas. Também recomendavam que visitássemos as lojas de roupas e tecidos da Baixa, nas quais a vestimenta moçambicana desfilava, heterogênea e colorida, de vitrine em vitrine. Nesse mesmo bairro, os anoiteceres cor de laranja anunciavam noites festivas, povoadas de encontros alegres e dançantes. Maputo estava aí para ser palmilhada. Só havia uma exceção: o Mercado Estrela. “Não é um lugar para turistas”, diziam. Mas nós queríamos tanger o underground maputense e nenhum alerta podia nos demover dessa ideia. Tentando escapar do clichê do turista amedrontado, incorremos no clichê do turista incauto. Mas às vezes – só às vezes – a reprodução de um estereótipo pode dar lugar a situações criadoras e instigantes.
Tudo estava à venda no Mercado Estrela: relógios, telefones celulares, aparelhos eletrônicos, peças de automóveis, comida, bebidas, roupas. Observando a profusão de mercadorias, lembrávamos das advertências de nossos anfitriões: “cuidado com as coisas vendidas no Estrela, são roubadas aqui ou na África do Sul”. Os regateios e ofertas disparados pelos vendedores adensavam o zum-zum-zum do ambiente. Quanto a nós, procurávamos manter aquele semblante impávido que supúnhamos ser o dos bons negociadores. Foi em meio ao teatro clandestino e barulhento do comércio feirante que vimos irromper um personagem inesperado. O cara era alto, tinha dreads, usava uma camisa colorida de corte elegante e driblava com maestria o assédio dos vendedores. Em pleno mercado Estrela, longe do circuito turístico tradicional e a milhares de quilômetros da terra natal, ocorreu o impensável: encontramos alguém conhecido. Era Fernando Tivane, antropólogo moçambicano de quem fôramos colegas no Brasil. Aos poucos, as circunstâncias desse encontro “casual” ficaram mais claras. Fernando estava iniciando uma pesquisa sobre os circuitos do comércio informal na cidade de Maputo. E agora que o tínhamos diante de nós, poderíamos, quem sabe, entender um pouco melhor aquela intensidade comercial que pulsava misteriosamente sob nosso olhar desinformado. Marcamos, ali mesmo, um novo encontro.
Voltamos a nos reunir com Fernando em uma das sedes do Instituto Superior de Artes e Cultura, localizada na Matola, cidade da região metropolitana de Maputo. Enquanto destampávamos uma sequência significativa de garrafas na cantina do campus (era de praxe aproveitar o ótimo preço da cerveja praticado nos subúrbios), fomos conhecendo os cenários e personagens que povoam as reflexões do nosso entrevistado. Nas análises tecidas por ele, entrevemos o movimento de vidas individuais e de estratégias coletivas que definem a “informalidade” como um espaço onde a valorização do capital se conjuga, tensamente, com a realização das esperanças e das apostas de um povo. O bate-papo com o documentarista e pesquisador Fernando Tivane é uma ponte para entrarmos em sintonia com aqueles sujeitos que fabulam e realizam relações econômicas criativas no sul de Moçambique. Passados 40 anos do processo de libertação nacional liderado por Samora Machel, e refluído o fervor revolucionário de outrora, talvez os critérios atuais para a construção da autonomia econômica e do bem-estar popular estejam sendo cultivados longe do aparelho de Estado, mas nem por isso em convergência com o capital.
Máquina Crísica: o teu documentário, intitulado “O nascer de um ritmo” (2016), aborda diversas expressões musicais disseminadas entre setores da juventude moçambicana. Essas expressões confluíram no Pandza, que é cantado em changana [um dos idiomas falados no sul de Moçambique], tematiza dramas e situações recorrentes na vida dos jovens de Maputo e incorpora ritmos mais transnacionalizados, como o rap. Esse documentário tinha uma “pegada” mais no estilo Appadurai: se situava na confluência entre paisagens rítmicas “globais” e atualizações “locais” muito potentes.
Fernando Tivane: O Arjun Appadurai fala de fluxos culturais, de indigenização dos fluxos globais e da produção da localidade. Ele se pergunta como os fluxos globais são nativizados. Então, a questão a partir da qual eu abordava o Pandza era esta: a criação de uma nova localidade a partir de fluxos globais. Para negar esta ideia de que com a globalização todo mundo vai pensar de forma igual, as culturas vão se homogeneizar. Estes fluxos globais adquirem outras formas localmente. Eles são singularizados no meio artístico local.
MC: Pelo visto, a tua preocupação com os fluxos continua muito atual, mas agora parece se tratar de fluxos “locais” de dinheiro que vão sendo canalizados em vários circuitos, alguns deles dominados por instituições financeiras transnacionais e outros pautados por estratégias locais que se relacionam com a produção de certos estilos de vida, de certas concepções singulares de bem-estar, etc. Conta para a gente um pouco mais sobre esses novos interesses de pesquisa.
FT: Minha dissertação abordou o seguinte problema: em Moçambique, há um banco estrangeiro muito grande (cujo capital majoritário é português) que se apresenta, no discurso publicitário, como um banco local. Sua publicidade é: “eu sou daqui”. Então, eu indaguei na pesquisa: como um banco destes consegue performar uma localidade, isto é, dizer que é daqui? Eles fazem isso incorporando alguns elementos locais, aspectos tradicionais “moçambicanos” e baseando-se em alguns preceitos locais. Assim, vão se afiançando como um banco “daqui”. Por exemplo, quando vão inaugurar uma agência eles convidam os régulos (chefes tradicionais) para fazer kupalha, um ritual de evocação dos espíritos e dos antepassados para que protejam aquela agência do banco, para que o negócio flua. Isto atrai a simpatia da comunidade local.
Depois desta pesquisa inicial, outra coisa me chamou atenção. Nos bairros de Maputo, existe uma coisa chamada “banca”: uma tábua feita de madeira onde as senhoras vendem seus produtos. Mas o objetivo destas senhoras não é acumular dinheiro. Elas querem ver os filhos na escola, estão preocupadas com a reprodução doméstica: alimentar os filhos no dia seguinte, comprar uniformes e cadernos para que possam ir à escola. O negócio delas nunca cresce. Não aumenta a escala e o volume de produtos ou de dinheiro que elas movimentam. Elas não compram mais produtos para vender; vendem sempre a mesma quantidade. Numa banca, tu encontras sempre a mesma senhora. Tu a vês todos os dias vendendo as mesmas coisas. Daqui a um mês, ela vai estar a vender basicamente os mesmos produtos. Como eu disse, ela nunca passa para outra escala. Então, isso me chamou atenção. Eu fui percebendo que havia muitas pessoas que estudaram comigo cujas famílias faziam isso. Percebi que era uma prática bastante comum.
Minha intenção, na pesquisa que estou a desenvolver agora, é aprender como isso funciona. Trata-se de uma economia que vê as pessoas em primeiro lugar. Não está preocupada com o lucro crescente.
A maioria das mulheres que vendem nas “bancas” não tem outro trabalho, essa é sua fonte de renda. Trabalham para ajudar o marido ou porque não têm marido e precisam cuidar dos filhos sozinhas. Além disso, há outro fenômeno. Por exemplo, eu sou assalariado. Vou trabalhando e a cada final de mês, tenho meu pagamento. Mas quando eu não tenho dinheiro, vou a essa senhora da banca e ela me empresta. Fico endividado com ela; em alguns dias ou no final do mês, eu pago. Na verdade, elas movem muito dinheiro. Não tem juros, mas tenho uma obrigação moral de devolver o que ela me emprestou e, claro, de comprar verduras com ela!
Ela tem uma poupança, mas nunca aumenta a quantidade de produtos que compra para revender. Então, meu objetivo é descobrir quais os critérios delas e como funciona essa dinâmica.
A maioria dessas bancas vende produtos alimentícios. Elas compram nos mercados atacadistas ou nos supermercados. Muitos produtos vêm da África do Sul (tomate, repolho, cebola). Então, quando o dólar ou o RAND (moeda sul-africana) sobem, os preços sobem, mesmo o dos produtos locais. E todos sabem quando o metical (moeda moçambicana) se desvaloriza.
Também estou, em paralelo, fazendo um documentário sobre isso, em coprodução com Segone Cossa, antropólogo moçambicano que hoje reside no Brasil. No documentário, eu estou a seguir uma senhora que vende alface. É impressionante como as pessoas são criativas para elidir o controle do Estado sobre suas atividades. O Estado vai perseguindo essas pessoas, expulsando das ruas. Então, o que elas fazem? Pegam um saco plástico, metem o que vendem dentro dele e vão circulando como se estivessem comprando alguma coisa. Se tu passas por ela, elas dizem: “tenho couve, tenho couve!”. Tiram do plástico, mostram, pesam ali mesmo e vendem para ti. Se a polícia se aproxima, devolvem tudo à bolsa e vão embora. É isto que pretendo mostrar no documentário: como lidam com o Estado.
Elas não vão atrás do Estado para pedir recursos ou ajuda para criar os filhos. Elas têm essas economias para viver e criá-los. Mas o Estado as persegue, porque quer formalizar a atividade para cobrar impostos. No entanto, as pessoas geralmente não compram em mercados formais, em supermercados. Quando chegas no teu bairro, desces do bus e já estás caminhando pela rua: as senhoras estão ali. Tu compras as coisas que precisas e vais para casa. A noite é a hora em que mais há movimento nas feiras e mercados de rua.
MC: Tu percebes que começa a surgir alguma organização ou articulação entre elas, redes de solidariedade por parte destas pessoas para defender seus interesses? Como elas enfrentam as ameaças e afirmam a dignidade das iniciativas econômicas que estão realizando?
FT: Não há algo institucionalizado. Mas elas têm essa rede de solidariedade entre elas. No seguinte sentido: “ah, eu te reconheço como uma pessoa que trabalha aqui, que faz o teu negócio aqui”. Quando chega a polícia para persegui-las, elas já têm um lugar onde deixar seus produtos, um esconderijo. Elas correm, escondem as mercadorias e voltam para xingar a polícia. Dizem aos oficiais: “hei, porque você está aqui? Eu quero vender. Vá embora”. E o policial diz: “Ah, eu não posso sair daqui porque o Estado me mandou estar aqui”. Eles ficam a conversar e, em alguns instantes, estarão a se perseguir e fugir um do outro.
É bem interessante a forma como elas burlam a vigilância da polícia. Tu estás a passar e alguém diz: “Estou a vender tomates!”. Mas ela não tem tomates em lugar nenhum. Tu perguntas: “o tomate, onde está?”. Então, ela diz: “vem para cá”, te leva para a esquina e vende os tomates. Tudo à revelia da polícia.
MC: Qual a dimensão desse mercado informal? Quantas pessoas se dedicam a estas pequenas vendas? Dá para notar que é muito presente pela cidade…
FT: Nos estudos da Faculdade de Economia e outros lugares, eles te dirão o seguinte dado: 90% ou 80% da economia moçambicana é informal. A minha pergunta é: por que lutam para formalizar a economia ao invés acompanhar a lógica dessas informalidades e, a partir daí, criar outras normatividades? Se o Estado quer arrecadar impostos, por que forçar o informal a entrar na sua lógica?
Mercados e Estado pós-socialista
MC: Geralmente, em diversos âmbitos, como o do ordenamento urbano, por exemplo, quanto mais rígida a normatização, mais informalidade há. São fenômenos que estão ligados. Por outro lado, onde as normas são menos estritas, há menos informalidade.
FT: Nós éramos um Estado socialista. Então, você vê as pessoas dizendo: “eu vou pagar imposto para quê!?” Meu avô, por exemplo, morreu sem pagar impostos. Ele discutia com a pessoa que ia lá cobrar e não pagava. Quando ele morreu, nós passamos a pagar. As pessoas não estão a ver o Estado, veem a pessoa que vai cobrar e dizem: “eu não vou dar dinheiro ao fulano!” Durante o socialismo, tínhamos as cooperativas. As pessoas ficavam horas na fila e recebiam o abastecimento. Não pagavam nada. As coisas eram assim. Então, hoje, as pessoas não querem pagar ao Estado. Outro exemplo. A terra, inclusive nas cidades, é propriedade do Estado. Tu tens o uso e aproveitamento da terra, mas não podes tê-la como propriedade. Foi uma das coisas que Samora Machel fez depois da independência: nacionalizar e estatizar a propriedade da terra. Então, se tu queres construir uma casa num terreno, tu vais requerer ao Estado. Para construir no terreno, vais pagar umas taxas ao Estado e fazer os documentos. Mas se um dia ele quiser que passe ali um viaduto, vai destruir tua casa. Vai te indenizar segundo os parâmetros dele, embora às vezes aconteçam manifestações populares contra isso.
O problema é que o Estado diz: a terra é do Estado moçambicano, não se vende. Mas quem tem o uso e aproveitamento da terra naquele espaço onde você quer construir, vai te cobrar. Os municípios e os trabalhadores dos municípios estão endinheirados por causa da terra. Então, mesmo a terra não sendo vendível, há um mercado de terras, há comércio. Se eu tenho o uso e aproveitamento de um terreno eu posso vender. Onde eu estou construindo minha casa, por exemplo, eu comprei de alguém. Tem pessoas que têm o uso e aproveitamento da terra de um espaço enorme e elas vendem. Isso é o que move a economia da cidade de Maputo, este mercado de terras. Tanto que há jovens que querem ser corretores imobiliários, que trabalham para vender terra.
MC: Tu falaste das mulheres que se esforçam para conseguir os recursos para sustentar as famílias. Elas conseguem juntar bastante dinheiro, até para emprestar aos vizinhos e clientes. Tu falaste dessa economia que, segundo os especialistas, é 90% informal. Há uma série de atores econômicos aí – as senhoras das bancas, os jovens corretores imobiliários no mercado de terras que transformam a terra em mercadoria e são um setor empresarial não reconhecido. Todos são atores da economia informal de Moçambique que parecem ainda não ter uma expressão política, uma organização que projete no espaço público os interesses que emergem dessa situação. Tu sentes que isso pode vir a acontecer? Pode ocorrer uma politização dessas condições e segmentações econômicas que a informalidade engendra?
FT: A partir de 1987, Moçambique entra para a economia de mercado. Uma pessoa que queria se dedicar aos negócios, no tempo de Samora Machel, era vista como traidora, um xiconhoca. Ser um capitalista naquela altura era desaprovado. Mas muita gente foi acumulando bens e capital à revelia disso. Quando era descoberto, tinha uma penalização. Agora, as informalidades não estão politizadas no sentido de ir reclamar à esfera pública. Mas eu acredito que estejam politizadas no sentido de embater-se com o Estado. Quando o Estado quer alguma coisa, você estabelece uma resistência para mostrar “eu existo, eu quero funcionar aqui. Não do jeito como tu queres que eu faça isso”. E essas pessoas movimentam grandes quantias de dinheiro. As pessoas que trabalham no comércio informal movem um dinheiro que não é controlado pelo sistema financeiro moçambicano. Imaginem só: os bancos emprestam dinheiro para os agiotas. Um agiota vai pegar o dinheiro do banco e te emprestar. Depois, tu devolves o dinheiro para ele, que devolve uma parte para o banco. Significa que eles estão a reconhecer que este mercado existe. E movimenta grandes valores.
Por exemplo, se tu queres comprar dólares, euros ou Rands, no banco tens que mostrar o passaporte, o visto, a passagem de avião. É um processo burocrático, mas se tu fores para o circuito informal, ninguém vai te exigir nada.
MC: Um mecanismo que reconhece e explora esses fluxos monetários informais é este sistema das contas vinculadas aos celulares, da empresa M-Pesa.
FT: Sim. Essas vendedoras de rua têm conta nesta empresa telefônica, tu podes pagá-las pelo M-Pesa[1]. E elas não guardam dinheiro no banco. Elas fazem uma coisa que se chama “xitiki”, que é uma poupança rotativa feita por um grupo de pessoas, geralmente amigas, parentes, vizinhos e colegas de trabalho que estipulam certo valor monetário a ser contribuído num período de tempo acordado. Quer dizer, funciona assim: nós três juntamos dinheiro, certa quantia que nós definimos, e um de nós recebe esse montante. Amanhã ou depois é minha vez de receber dinheiro. Vão juntar e entregar a mim. Por exemplo, elegemos 50 meticais por dia. Então eu posso comprar alguma coisa que eu não poderia comprar se contasse apenas com meu dinheiro. Eu ia levar muito tempo para comprar isso ou iria gastar o dinheiro com comida. Pode ser um carro, por exemplo. Neste caso, deverão ser mais pessoas. Em cinco pessoas, cada um dá 10 mil meticais e eu posso comprar o carro. Então, no próximo “xitiki”, eu tenho que dar 10 mil, e assim por diante até fechar as cinco pessoas. Então, as mulheres e os homens que trabalham nos mercados de rua fazem isso todos os dias. Até podem não conseguir vender um pouco mais, mas tem que conseguir aquele dinheiro que tu contribuis diariamente no “xitiki”. Tu podes dizer também: eu não quero dinheiro, preciso de um fogão elétrico, talheres, louça. Levam o dinheiro, compram o fogão equivalente àquele valor e entregam a ti. Assim as famílias conseguem consumir. E fazem festa, vão lá dançar quando recebem o “xitiki”. No fundo, é também uma forma de socializar.
“Uso” não capitalista do dinheiro?
MC: Então o único que não está sabendo aproveitar tanto essa dinamicidade econômica que a informalidade em Moçambique suscita é o Estado. As empresas telefônicas aproveitam, as pessoas desenvolvem meios para ter um fundo de empréstimo. E o Estado parece estar em outra relação, que talvez passe mais pela burocracia, que fomenta o suborno. Mas este último favorece alguns indivíduos e grupos. Não o Estado como um todo.
FT: Já no doutorado eu quero estudar a economia moral doméstica. Eu estou perseguindo como as pessoas se relacionam com o dinheiro ou como o dinheiro se relaciona com elas. Como o dinheiro constitui esses sujeitos também. Tem muitas músicas que falam de dinheiro: agora que tens dinheiro, viraste outra pessoa, o semblante muda, o aspecto físico muda. O dinheiro também te conforma.
MC: Também a atitude, porque para preservar o dinheiro tens que ter outra moral, outra subjetividade. Não podes sair pagando cerveja para todo mundo, como estamos fazendo aqui, se não o dinheiro não rende.
FT: Tem uma coisa muito interessante. No lugar de onde eu vim, as pessoas não estão muito interessadas em acumular dinheiro. Elas têm o dinheiro e convidam aos demais para festejar, para beber. Então os amigos olham e dizem: olha como ela é uma boa pessoa. Reconhecem-te como uma pessoa generosa, amiga, simpática. Então, o dinheiro serve para reproduzir as relações sociais. Uma moral capitalista diria: “porque gastou tanto dinheiro com isso? Isso é um gasto! Aquele dinheiro serviria para tal e tal”. Mas a pessoa está contente porque foi reconhecida entre os que ela preza e pode reproduzir essas relações.
MC: No Uruguai, durante o trabalho de campo para o doutorado do Alex, aconteceu o seguinte: as pessoas tinham sido beneficiadas por uma política de estado de distribuição de terras para cortadores de cana-de-açúcar. Estes sujeitos recebiam as terras e algum financiamento, além de dispor dos lucros derivados da cana que eles produziam. Só que eles pegavam esse lucro e, ao invés de comprar um trator de última linha, equipamentos agrícolas, etc., compravam um trator mais barato, meio velho. E o que sobrava eles emprestavam para familiares, compravam coisas que estavam precisando em casa, um carro confortável para ir trabalhar, usavam o dinheiro para ajudar os filhos. Então, o dinheiro reproduzia laços familiares e compromissos que as pessoas têm entre si, que constituem a segurança existencial delas. E a reprodução do capital ficava, obviamente, em segundo plano.
FT: A poupança funciona assim para essas pessoas. Ela não serve para expandir o negócio ou algo que vai lhe dar muito dinheiro. Ela vai para as relações familiares, sociais, etc. Porque ali estão as pessoas com quem poderás contar mais tarde.
MC: São processos que aparecem tanto na América Latina como na África. Claro que respondem a estratégias ou necessidades específicas, mas sua lógica é comparável. E é importante a dimensão material destes processos também. Por exemplo, no caso do Uruguai, era requerido daquelas pessoas que tivessem um pensamento de investidor capitalista: que elas buscassem aumentar os lucros, se tornassem produtivas e competitivas, que acumulassem dinheiro para mais tarde reinvestir. Mas as coisas não se davam exatamente assim. Do ponto de vista do objetivo de lucro e produtividade, elas “desperdiçavam” o dinheiro que ganhavam através da atividade agrícola. No médio prazo, elas ficavam endividadas. Aqui em Moçambique é um pouco diferente porque não há endividamento. No caso da senhora da banca, se ela nutrisse pretensões empresariais, ela acumularia dinheiro, compraria um local comercial melhor para fazer uma fruteira e acabaria falindo as demais bancas. Ia monopolizar o comércio numa quadra ou rua. Isto tornaria inviável a convivência entre diversas bancas, impedindo que um número expressivo de pessoas acessasse recursos próprios para a reprodução doméstica.
FT: Claro, ia acabar monopolizando e “matando” as outras. Talvez contrataria as demais para trabalhar para si.
MC: Tem algo muito objetivo nesta questão: o dinheiro também age em ti. Não só no sentido da pessoa. Por mais que o dinheiro não te mude subjetivamente, ele pode incidir decisivamente na tua viabilidade econômica, na tua existência. Por exemplo, no Uruguai as pessoas utilizavam o dinheiro de uma forma que era objetivamente incompatível com a manutenção desse fluxo monetário que chegava até elas. Porque se tu recebes terras e não investes num trator como manda o figurino capitalista, se tu preferes reter esse dinheiro para uma festinha, para intensificar e melhorar tuas relações com os demais ou para elevar teu bem-estar, o que acontece? Pois bem, acontece o seguinte: o trator velho que compraste rapidamente terá um problema, vai baixar tua produção, vais receber cada vez menos de “lucro final”, até que teu empreendimento se torne inviável. Tu vais te endividar e, em algum momento, vais perder a terra. Tem um uso (ou usos) diferenciado(s) do dinheiro que, às vezes, conflita com a lógica da acumulação, mas tu pagas um preço por não usar o dinheiro de forma coerente com o que seria a lógica da acumulação capitalista. No médio prazo, as pessoas acabam pagando esse preço. A lógica capitalista é uma lógica anônima que aniquila materialmente as pessoas sem que elas tenham a quem se reportar para dizer “veja bem, tu poderias considerar esses outros usos ou interpretações do dinheiro para desenvolver políticas públicas mais amigáveis com as apostas econômicas populares”. Em poucas palavras, quando o dinheiro que passa pelas tuas mãos é, também, “capital” ele exige um uso específico para continuar existindo como tal. Todos os demais usos devem estar condicionados por esse uso primordial.
FT: Temos aqui um artista plástico que ganhou alguns prêmios e muito dinheiro. Ele literalmente comeu o dinheiro com a família e os amigos. Fez uma casa para o pai, emprestou à família, fez festas. O tio dele brincava com ele: “teu dinheiro pode acabar hoje, mas eu comi esse dinheiro, estou muito feliz por isso, eu senti o teu dinheiro”. Então, depois as pessoas lhe condenaram: tu gastaste todo teu dinheiro, devias ter investido, guardado, etc. Mas a lógica não era essa.
MC: Isso é interessante, porque abre uma hipótese nova. No final das contas, talvez as pessoas não estejam tão preocupadas com a perspectiva da falência, da destruição de um capital potencial. Afinal, podem perder a terra, como no Uruguai, mas nesse meio tempo já fizeram tantas outras coisas, já comeram o dinheiro – para usar a expressão do tio do artista –, ficaram contentes, ajudaram a família. Souberam viver de outra forma. Valeu a experiência e a vida continua. O capitalismo as prejudica, mas elas também desobedecem constantemente seus mandatos.
Quanto à proposta de flexibilizar a regulação e seguir a lógica da informalidade, muitos diriam: “ah, isso é neoliberalismo”. Mas, na realidade, a lógica com que as pessoas estão operando – neste caso, as senhoras das bancas – tem pouco a ver com a acumulação que um capitalista gostaria de impor como lógica econômica ao Estado. Não se trata de uma opção entre regulação estatal ou “livre mercado”. É uma dinâmica emergente, que não corresponde nem à lógica burocrática do Estado, nem à lógica do capital.
Também tem a questão de “quem disse que elas querem viver dessa atividade para o resto da vida?”. Porque aí tu regularizas e prendes a pessoa àquela atividade. Neste ponto, a informalidade também é mais flexível e se adapta aos projetos pessoais. Quem disse que era isso que eu queria fazer para sempre?
Nota
[1]M-Pesa é um serviço bancário por celular criado no Quênia, onde já movimenta 11% do PIB nacional. O sistema permite que as pessoas operem com o dinheiro gerado pelo comércio informal (inclusive por transações “ilegais”), absorvendo um volume financeiro que os bancos tradicionais não podem incorporar, dados os entraves impostos às pessoas com baixo poder aquisitivo para a abertura de contas correntes. A expansão do M-Pesa inaugurou um território de valorização financeira até então inédito, capturando os rendimentos econômicos de enormes contingentes da população, antes excluídos do sistema bancário mais convencional.
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