Geral Marx e nós(otros)

O desafio de Marx à razão antropológica. Máquina Crísica entrevista Lucas Parreira Álvares e Matheus Almeida

Ainda hoje, Marx permanece um desconhecido no que se refere às suas ideias e concepções fundamentais. Desconhecido não somente pelo grande público, pela população em geral, mas também por muitos estudantes e professores das Ciências Sociais que, ao dispensarem um estudo rigoroso e exaustivo das suas obras, passaram a retroalimentar e reproduzir toda espécie de chavão, distorção e obscurantismo sobre as ideias do pensador alemão.

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No contexto de uma XIII Reunião de Antropologia do Mercosul relativamente esvaziada, sob a chuva torrencial da manhã de 23 de julho, eles realizaram a proeza de lotar a sala de aula que fora destinada à realização do minicurso intitulado “Introdução aos Cadernos Etnológicos de Karl Marx”. Apesar de só contarem com uma fração do tempo inicialmente solicitado à organização do evento, Lucas Parreira Álvares e Matheus Almeida conseguiram, de qualquer forma, deixar clara sua mensagem alentadora: já se foi a época em que um punhado de recriminações fáceis, repetidas ad nauseam, eram suficientes para interditar o programa teórico de Marx nos monótonos domínios da antropologia disciplinar. Para nós, ficou evidente que as chaves interpretativas apresentadas naquela ocasião constituem uma arma potente no combate aos dogmas anti-marxistas que – travestidos de críticas ao eurocentrismo e ao colonialismo – terminaram se institucionalizando na antropologia brasileira.

Os chamados Cadernos Etnológicos consistem em anotações realizadas por Marx nos seus últimos anos de vida. Nelas, o mais influente pensador do século XIX se debruça sobre os trabalhos de um conjunto de autores que abordaram diversos aspectos relacionados à estrutura de certas formações sociais não europeias. Editadas em 1972 pelo antropólogo Lawrence Krader, estas anotações foram complementadas, numa edição boliviana, com os estudos de Marx sobre a obra de Maksim Kovalevski, sociólogo russo que se ocupou das formas camponesas de propriedade comunal da terra. É partir de tais documentos que Lucas e Matheus vêm empreendendo seu cuidadoso esforço interpretativo. Ambos tiveram contato com os Cadernos Etnológicos no “contexto de inquietações e pesquisas autodidatas” que realizaram “sobre a relação entre marxismo e antropologia desde os meados da graduação”. Este trabalho prossegue até os dias de hoje, revelando-nos um Marx que explora novas fontes de evidência empírica e passa a “compreender mais profundamente a multilinearidade da história que precede o capitalismo”; história que “avança em múltiplos e diversos horizontes até que o percurso de um deles, o desenvolvimento capitalista, viesse a submeter os demais trajetos históricos a seus interesses, descaracterizando-os, subordinando-os e impondo-lhes seu próprio destino”.

“Há mais de 130 anos – refletem nossos companheiros – Marx já havia mostrado um caminho que ainda hoje falhamos em não atingir”. Avançar no caminho vislumbrado por Marx talvez seja tarefa irrealizável nos domínios dessa “ciência parcelar que denominamos ‘Antropologia’”. Sendo assim, a exploração de outros itinerários de pesquisa exigiria uma ruptura: há que “opor o pensamento marxista àquilo que se constituiu enquanto ‘razão antropológica’”. Neste sentido, conviria recusar quaisquer pressupostos arbitrários e dogmáticos à hora de “compreender a realidade”, amparando-se, em vez disso, em “pressupostos reais, partindo de indivíduos reais, de suas condições materiais de vida, sejam essas dadas ou produzidas pela própria ação humana sobre a natureza”. Em poucas palavras, a questão é pesquisar a práxis humana através das categorias que a configuram ou redefinem, sem jamais convertê-la em objeto de trabalho para o discurso auto-referencial das “ciências parcelares”. Só assim a atividade investigativa pode retornar ao mundo, acompanhando e enunciando as múltiplas linhas de contradição que tensionam a realidade existente e anunciam sua eventual superação.

Boa parte dos esforços contemporâneos de aproximação ao trabalho de Marx a partir de sua relação/tensão com o cânone da disciplina antropológica provém de iniciativas intelectuais autônomas, geralmente protagonizadas por estudantes. Estas iniciativas se prolongam em espaços irreverentes de discussão, que guardam cuidadosa distância no tocante à fé e aos dogmas do mundo disciplinar. Trata-se de “zonas de dissidência” nas quais vão surgindo descobertas, análises e argumentos que abrem novos horizontes de encontro com o marxismo e com a obra de Marx, em sintonia com as preocupações teórico-metodológicas e políticas de quem se dedica à pesquisa social em diversos cenários da vida coletiva.

No ambiente de debate proporcionado pelas “zonas de dissidência”, o fundamental é reconstruir formas de cooperação político-teórica que, na academia produtivista, tendem a ser esmagadas pela atomização das áreas de pesquisa e pelo acirramento da competitividade entre “pares”. Buscar um camarada com quem cooperar não implica apenas ouvi-lo, mas também interpelá-lo e deixar-se interpelar por ele a partir de inquietações que prefiguram o surgimento de alianças e espaços mentais compartilhados. Neste processo, o que passa a importar é o cultivo de interações baseadas no exame cuidadoso do que propõem nossos interlocutores, preconizando, sempre, a clareza do argumento e sua necessária avaliação no relativo às apostas militantes que nos mobilizam. Foi sob estas condições que procuramos tecer nosso diálogo com Lucas e Matheus. A presente entrevista não se deu, portanto, na atmosfera amena e distraída das confrarias acadêmicas, mas sim sob o clima intenso do encontro político. Aqui, o que nos motiva é a partilha de novos critérios para subsidiar, ampliar e enriquecer as “zonas de dissidência” que atualmente habitamos.

Máquina Crísica – GEAC: Subjacente à interpretação que vocês fazem dos “Cadernos Etnológicos” de Marx, nós intuímos uma vontade de desarmar algumas pré-noções bastante específicas sobre a obra marxiana. Concretamente, parece que vocês procuram confrontar certos pré-conceitos que, no contexto da antropologia disciplinar, costumam ser utilizados para impugnar o programa teórico de Marx. Assim, por exemplo, podemos ouvi-los questionar a insinuação de que Marx teria pouca familiaridade com a análise das formações sociais não europeias. Neste mesmo sentido, vocês também afastam a acusação de eurocentrismo que a crítica fácil faz pesar sobre Marx. Queríamos que nos contassem um pouco sobre as disputas teórico-políticas que os mobilizam neste momento. Que política é inerente à sua interpretação dos Cadernos Etnológicos?

Lucas Parreira Álvares e Matheus Almeida: Tal como Lawrence Krader foi provocado por um marxista, o filósofo alemão Karl Korsch, a utilizar sua condição de antropólogo para empreitar o trabalho de edição e publicação de textos que ele nomeou como “Cadernos Etnológicos” de Karl Marx, nós, enquanto marxistas e antropólogos, também fomos instigados, a partir de inquietações que surgiram em nosso próprio percurso de pesquisa e formação, a contribuir na divulgação e debate destes Cadernos de Marx no Brasil.

Tivemos contato com os chamados “Cadernos Etnológicos” de Karl Marx no contexto dessas inquietações e pesquisas autodidatas que realizamos sobre a relação entre marxismo e antropologia desde os meados de nossos cursos de graduação. Nesta obra, Krader torna públicas as anotações de Marx sobre quatro autores que desenvolveram trabalhos que dialogavam com temáticas entendidas como “etnológicas”, por assim dizer, mesmo que a maioria desses autores não possam ser tratados, a rigor, como “etnólogos”. São eles: Lewis Morgan, Henry Maine, John Lubbock e John Budd Phear. Diante da semelhança quanto à espécie textual, acrescentamos também ao nosso minicurso as anotações de Marx à obra de outro autor: Maksim Kovalevski. Em conjunto, tais Cadernos apresentam um Marx que se confronta com diversas formações sociais comunais não europeias. Colocar em evidência esses textos de Marx desafia o antigo “espantalho” criado em seu nome, a saber: de que Marx teria sido um evolucionista social ou mesmo um teórico eurocêntrico.

No entanto, para a surpresa de muitos, esta não foi a primeira vez que Marx pesquisou ou mesmo tratou de formações sociais não europeias. Nos anos 1850, Marx já havia lido sobre a história da conquista do Peru e do México através da obra de William Hickling Prescott e sobre a história da colonização europeia através de autores como Edward Gibbon Wakefield, Herman Merivale e William Howitt. Vários deles, inclusive, foram criticados por Marx em O Capital. No entanto, os cadernos com as anotações de Marx a respeito desses autores ainda se encontram no Instituto de História Social de Amsterdã, juntamente com os originais dos “Cadernos Etnológicos”, e até hoje (2019) não foram publicados em nenhum idioma.

Desde que começou seu trabalho como escritor em diversos jornais no final dos anos 1840, Marx passou a não só pesquisar, como também publicar sobre diversos países não europeus. A respeito da China, publicou 18 artigos de jornais desde 1850. Sobre a Índia, 33 artigos, somando a sua produção com a de Engels, desde 1853. Quanto à colonização inglesa na Irlanda, 19 artigos desde 1853. Sobre a América Latina, foram mais de 30 passagens (contando artigos de jornais e trechos de obras) desde 1853. Isto sem considerarmos os textos não publicados, como dezenas de cartas, prefácios e discursos em conferências que tratavam de países não europeus. O comunista alemão tratou ainda da Rússia, Birmânia, Indonésia, Polônia, Argélia, Estados Unidos, Pérsia, entre outras regiões, nas décadas de 1850 a 1870. Além destes textos dispersos, Marx também abordou diversas formações sociais não europeias em trechos de algumas de suas principais obras, como o Manifesto Comunista, A Ideologia Alemã, os Grundrisse e O Capital.

Inicialmente, Marx carregava uma série de elementos herdados de sua formação hegeliana. Na medida em que os anos passavam, ele abandonava e criticava cada vez mais estes elementos hegelianos, e desenvolvia, muitas vezes assimilando criticamente algumas das ideias do próprio Hegel, a sua concepção política e intelectual. Ou seja, como tudo o mais na obra de Marx, com o passar do tempo ele foi aprimorando suas concepções a respeito das populações colonizadas. De modo que, hoje, classificar o velho mouro como “eurocêntrico” ou como “um homem branco de seu tempo” é algo no mínimo equivocado. Certamente, pouquíssimos homens brancos de seu tempo sustentariam ou sustentaram as ideias de Marx.

O que nós queremos demonstrar com esse minicurso – e com atividades correlatas, como as desenvolvidas em torno da Revista Práxis Comunal – é que, ainda hoje, Marx permanece um desconhecido nas suas ideias e concepções fundamentais. E desconhecido não somente pelo grande público, pela população em geral, mas também por muitos estudantes e professores das Ciências Sociais que dispensaram um estudo rigoroso e exaustivo das obras de Marx, e passaram a retroalimentar e reproduzir toda espécie de chavão, distorção e obscurantismo sobre as ideias do pensador alemão.

Pretendemos confrontar certos pré-conceitos em relação à obra de Marx não só na Antropologia (amplamente anti-marxista no Brasil nos dias atuais), mas também em um conjunto de tendências políticas e ideologias que se desenvolveram em reação ao marxismo; uma reação quase sempre deformadora e superficial, diga-se de passagem, mas nem por isso menos capilar em determinados movimentos sociais e ambientes universitários.

Como marxistas e antropólogos, sabemos que não existe neutralidade de ideias, que a ascensão e o declínio de uma hegemonia intelectual têm a ver não apenas com a comprovação ou refutação de suas ideias, mas também, e principalmente, com as lutas sociais e a conjuntura de cada momento histórico, que tornam determinadas ideias mais difundidas ou, pelo contrário, mais periféricas em determinadas épocas. Neste sentido, a colocação de Paul Mattick segundo a qual nada comprova mais peremptoriamente o caráter revolucionário do marxismo do que a dificuldade de permanecer marxista em períodos não revolucionários, explica bastante a compulsão anti-marxista dos tempos em que vivemos.

O nosso minicurso, assim como futuras atividades que venhamos a desenvolver sobre os chamados “Cadernos Etnológicos” de Marx, certamente representam uma luta social aliada a uma dedicação intelectual de muito risco, porque pretende furar um bloqueio, uma cortina ideológica institucionalmente respaldada e frequentemente dogmática. Reconhecer que entendemos essa atividade como parte de uma luta não quer dizer que abrimos mão do rigor teórico indispensavelmente exigido. Pelo contrário, se não somos guiados por uma neutralidade e objetividade positivistas, nem por um relativismo filosófico-antropológico, temos como guia o compromisso com a verdade e, portanto, a aversão a quaisquer dogmatismos ou concessões a modismos acadêmicos e diplomacias domesticadoras do pensamento de Marx.

MC: No esforço interpretativo que vocês empreendem, quais critérios são utilizados para selecionar, entre as passagens “etnológicas” escritas por Marx, aquelas que seriam, digamos assim, mais “fiáveis” do ponto de vista do programa teórico geral desse autor? Em outras palavras, através de que coordenadas vocês realizam a prospecção dos manuscritos? Como separar insights circunstanciais por um lado e, por outro lado, teses que seriam mais coerentes com o acúmulo teórico do velho Marx? As reflexões que encontramos nesses cadernos “etnológicos” ressoam, todas elas, nas expressões mais exaustivas e sistemáticas do trabalho de Marx?

LPA & MA: Sempre que vamos abordar os “Cadernos Etnológicos” de Marx, temos aí dois desafios envolvidos: dimensionar a importância desses cadernos na obra e pensamento do velho mouro e esclarecer quais são as características dessas anotações, do ponto de vista de como elas se estruturam e de quais são os seus limites. Comecemos pelo último aspecto.

Marx, com os “Cadernos Etnológicos”, não escreve uma Crítica, mas sim uma espécie de “fichamento”, e nele tece algumas intervenções críticas às obras de quatro autores. Esses rascunhos, que não foram organizados sob uma forma expositiva, mas sob a forma de uma pesquisa de Marx – ou seja, não foram escritos para serem publicados do modo como estavam – preservam um caráter íntimo do pensamento do autor, pois, se por um lado tais anotações não foram desenvolvidas a contento para registrarem uma obra sistemática de Marx, por outro resguardaram o que ele pensava, sem filtros ou adornos, a respeito das ideias e dos autores resenhados.

Deste modo, não podemos equiparar os “Cadernos Etnológicos” de Marx a outras obras de revisão crítica sistematizada do autor, como a Crítica da filosofia do direito de Hegel ou a Contribuição para a crítica da economia política. Tais Cadernos, na verdade, poderiam ser mais bem pensados se os compararmos a uma obra também íntima, porém com estatuto teórico distinto, como o Diário de Campo de Bronislaw Malinowski. Claro, em seus “Cadernos Etnológicos” Marx não realizou nenhum trabalho de campo etnográfico para que pudesse exprimir, em um diário de campo, toda sua antipatia e discriminação – que eram recalcadas e ocultadas em sua obra principal – pelos “nativos”, assim como fez o antropólogo britânico. No entanto, como dissemos anteriormente, Marx pôde se manifestar livremente (inclusive recorrendo com relativa frequência a insultos) a respeito do que pensava das interpretações dos “gênios” burgueses, intelectuais e burocratas com quem estava dialogando.

Dito isto, e compreendida a natureza específica desses “fichamentos”, podemos observar quais são as formas de interação que Marx neles realiza. A maior parte das anotações de Marx nos “Cadernos Etnológicos” são transcrições, mais ou menos literais, do que os próprios autores por ele estudados escreveram. As intervenções que Marx realiza em meio a alguns trechos transcritos poderiam ser organizadas da seguinte forma: algumas são inserções de sinais gráficos [?] [!], que denotam ironias e questionamentos diante da frase adjacente à sinalização; outras são complementos textuais, onde Marx aponta quais são os sujeitos ausentes em frases incompletas dos autores em questão; algumas são interpelações corretivas ou discordantes com as interpretações dos autores; outras são remissões a referências externas às obras ou exemplos trazidos por Marx; há, ainda, as intervenções de caráter depreciativo, irônico ou duramente crítico aos autores das referidas obras.

Evidentemente, por mais que destacar as intervenções com sinais gráficos seja algo que mereça consideração – pois informam uma discordância sem formalidade por parte do autor –, demos destaque às passagens em que Marx realiza interpelações mais extensas ou expressivas, como nas respostas irônicas e críticas às demonstrações de valorações burguesas de seus “interlocutores” (sobretudo Lubbock, Maine e Phear). Ou seja, avaliamos o quanto uma determinada intervenção de Marx demarca o seu posicionamento a respeito do respectivo trecho (em alguns casos, a exaltação de Marx se torna extremamente nítida em sua forma de escrita) e, em seguida, identificamos que posicionamento é este que o velho mouro toma. No mais das vezes, Marx apenas transcreve as passagens selecionadas que dizem respeito ao material informativo que os autores trazem. Contudo, em algumas oportunidades, posiciona-se de forma severamente crítica perante estes autores. Por exemplo, um dos casos mais marcantes que ilustra esse conflito interpretativo é a crítica de Marx a Kovalevsky, Maine e Phear em suas teses de que teria havido feudalismo na Índia aos moldes europeus.

Esclarecidas quais são as características e limitações dos “Cadernos Etnológicos”, podemos, então, tratar de qual é a importância dessas anotações no conjunto da obra de Marx. Se entendermos que o “velho Marx” (ou “Marx tardio”, ou “último Marx”) não é outro ser, mas tão somente o mesmo indivíduo que fora o chamado “jovem Marx”, obviamente em sua versão mais madura, já teremos meio caminho andado para compreendermos que não há nenhuma ruptura do velho mouro com o Marx anterior aos “Cadernos Etnológicos”, mas sim um desenvolvimento de suas concepções.

De fato, não houve nenhuma “revolução” do pensamento de Marx nos tais “Cadernos Etnológicos”, pois, a todo o momento, enquanto escrevia O Capital, por exemplo, Marx deixava claro que descrevia o processo da formação social da Europa, mas não da Europa como só mais um continente equivalente aos outros, e sim de uma Europa que se lança ao domínio do mundo. Não é a “Europa” propriamente dita quem o faz (o leste europeu, que também é Europa, não compõe esse movimento), mas sim o capitalismo, uma vez que foram as nações colonizadoras, no século XVI, e as nações industrializadas e imperialistas, no século XIX, que promoveram essa dominação europeia sobre o mundo. Porém, é impossível compreender essa dinâmica mundial alavancada pelo capitalismo europeu sem dimensionar como todo o restante do mundo é atingido neste processo. Por este motivo, Marx tratou, também, de vários contextos não europeus.

Marx foi expulso de vários países, viveu como refugiado, percorreu toda a Europa Ocidental e morreu como um apátrida – um indivíduo sem direito a nenhuma cidadania nacional – poucos meses após retornar de uma viagem a Argel, na África. Nas palavras do próprio Marx, “sou um cidadão do mundo e ajo onde me encontro”. O que queremos dizer é que, nem do ponto de vista de um possível apego ao seu local de origem e criação, nem do ponto de vista de suas ideias e perspectiva, Marx defendia a supremacia de “valores europeus” sobre o resto do mundo. Pelo contrário, era sempre crítico a estes valores quando expressavam os interesses de classe burgueses.

Do mesmo modo que Marx não era apologista da Europa, também não era apologista de seu tempo. Defendia que a classe operária, por ser revolucionária, carregava em si o futuro. A perspectiva do proletariado revolucionário possibilita a negação da manutenção do presente capitalista, da sociedade do capital. Trata-se de uma crítica radical e impiedosa. O capitalismo, longe de ser um “progresso humano”, representa, para Marx, um entrave para o fim da pré-história da humanidade.

Se os “Cadernos Etnológicos” não representam uma ruptura ou revolução no pensamento de Marx, permanece de pé a indagação sobre qual foi a ressonância destes Cadernos no conjunto do pensamento e da obra de nosso autor. O que os “Cadernos Etnológicos” possuem de “novidade”, por assim dizer, na obra de Marx, portanto, não é a abordagem inédita das formações sociais não europeias elencadas, mas a mudança das fontes e, com isso, o grau de aprofundamento do conhecimento sobre esses contextos, juntamente com o amadurecimento e o desenvolvimento das próprias concepções de Marx a respeito destas formações sociais em suas especificidades históricas, grupos sociais, modos de vida e formas de existência.

Diante dos “Cadernos Etnológicos”, vemos um Marx que, após ter compreendido como nenhum outro pensador o que é o capitalismo, intensifica suas pesquisas acerca de outros desenvolvimentos históricos pelo mundo, conhecendo outras formações sociais não somente pelo que elas passaram a ser na colisão com a expansão capitalista, mas também pelo que elas eram desde o período pré-colonial. Marx passa a compreender mais profundamente a multilinearidade da história que precede o capitalismo, que teria sido iniciada em um ponto original e avançado em múltiplos e diversos horizontes até que o percurso de um deles, o desenvolvimento capitalista, passasse a submeter os demais trajetos históricos a seus interesses, descaracterizando-os, subordinando-os e impondo o seu próprio destino. Parece-nos que há mais de 130 anos Marx já havia mostrado um caminho que ainda hoje falhamos em não atingir.

MC: Nas anotações que Marx faz às obras dos analistas que trataram das “sociedades primitivas” na sua época (Morgan, Lubbock, etc.), vemos que ele dirige a eles uma série de críticas, principalmente no que se refere à interpretação dos dados recolhidos pelos pesquisadores e dos fatos por eles narrados. Existe uma divergência teórica que Marx expressa nessas notas, mas é provável, também, que existisse uma incompatibilidade política com estes autores por conta da sua interpretação burguesa do mundo. O próprio Engels também ironizou, num texto intitulado “Como a burguesia resolve a questão da moradia”, os “congressos de ciência social” referindo-se a eles como “congressos da baboseira”, provavelmente por abastecerem profusamente com suas categorias e deliberações o “modo burguês” de resolver os problemas sociais da época. No entanto, é bom lembrar que, no tempo de Marx e Engels, as disciplinas tais como as conhecemos hoje estavam apenas iniciando seu processo de institucionalização. Tendo isso em vista, a postura crítica de Marx diante destes intérpretes pode, em algum ponto, nos inspirar na tarefa atual de crítica à disciplina antropológica?

LPA & MA: Embora se tratem de campos distintos que possuem suas especificidades, as divergências teóricas de Marx em relação aos autores rascunhados implicam em divergências também políticas. As preocupações, intenções e mesmo os pontos de vista entre esses personagens são absolutamente distintos.

Nos rascunhos sobre Phear e Maine, Marx os critica pelas suas vinculações a regimes coloniais; nos rascunhos sobre John Lubbock, critica os “convencionalismos” desses autores; e, no geral, Marx se preocupa, a todo o momento, em criticar o modo como esses autores compreendem os povos pertencentes a formas sociais comunais, o que evidencia um distanciamento teórico. Encontramos um ótimo exemplo disso no momento em que Lubbock escreve que “o selvagem que adora um animal ou uma árvore não podia ver um absurdo na adoração de um homem”. Neste ponto, Marx o interpela com as seguintes palavras: “como se os ingleses civilizados não adorassem a rainha (!)”. Marx não critica nem faz juízo sobre a forma como aqueles povos compreendiam o mundo. Ao contrário, ele critica o procedimento dos teóricos que se propuserama compreender esses povos. Além disso, na passagem supracitada podemos notar uma crítica de Marx às distinções entre “selvagem” e “civilizado”, terminologias utilizadas por alguns desses autores. As distinções entre Marx e os personagens rascunhados podem ser observadas também em um exemplo exterior aos “Cadernos Etnológicos”, na única passagem em que Marx faz menção à figura de Lewis Morgan. Referimo-nos aos rascunhos à Vera Zasulitch, nos quais Marx não trata o pensador estadunidense com benevolência. Ao contrário, refere-se ao autor de Ancient Society como “um norte-americano nem um pouco suspeito de tendências revolucionárias”.

A pergunta de vocês traz uma passagem interessante de Engels sobre os “congressos da baboseira”, se referindo aos “congressos de ciência social”. O inusitado é que o próprio Engels, em uma carta endereçada a uma das filhas de Marx – Laura Lafargue – no ano de 1891, refere-se criticamente aos expoentes desse novo campo de conhecimento que surgia na segunda metade do século XIX e que se transformou nessa ciência parcelar que hoje denominamos “Antropologia”. Nessa correspondência, Engels enfatiza que, com o tempo, aumentou consideravelmente o seu desprezo contra a maioria desses autores, e afirmou que “não há ciência em que o conchavo e a camaradagem sejam mais dominantes e, como o cenário é pequeno, isso pode ser realizado internacionalmente e com sucesso”. O pressuposto evidente para o “conchavo” da produção etnológica da segunda metade do século XIX é a compreensão de que esse campo de conhecimento poderia se sustentar sozinho, algo que só se intensificou com o desenvolvimento da Antropologia como ciência e sua expansão nas universidades pelo mundo. O ápice dessa concepção pode ser notado em um texto recente de uma importante referência para diversos autores da Antropologia contemporânea, Bruno Latour, que indaga o seguinte: “Imagine um mundo despido de todas as descobertas antropológicas. Que deserto seria sem essa disciplina científica”[!].

A consequência imediata da institucionalização de uma ramificação do conhecimento (ou de sua “disciplinarização”) é a aparente sustentação própria de um saber específico. Há uma interessante passagem n’A Sagrada Família em que Marx afirma que “o mineralogista, cuja ciência limita-se ao fato de que todos os minerais na verdade são o mineral (…), vê o ‘mineral’ em qualquer mineral e sua ciência limita-se a repetir essa palavra tantas vezes quantas houver minerais reais”. A Antropologia, assim como qualquer outro domínio de conhecimento, não se distingue da “Minerologia” no que se refere aos pressupostos que a estabelecem enquanto uma ciência específica. Marx não foi um etnólogo (como gostaria Lawrence Krader) nem tampouco um antropólogo (como alegou Thomas Patterson), mas certamente foi um crítico da ramificação das Ciências Humanas e Sociais, o que inclui, consequentemente, a Antropologia. Considerando a realidade concreta como um todo coerente, elementos determinados estão em relação com outros elementos, constituindo, assim, correlações. Por esta razão, para o Marx d’A Ideologia Alemã, nós só conhecemos uma única ciência, a Ciência da História. Isso por uma razão simples: os pressupostos que informam a compreensão marxiana da realidade não são arbitrários e nem mesmo dogmáticos; são, ao contrário, pressupostos reais, partindo de indivíduos reais, de suas condições materiais de vida, sejam essas dadas ou, ao contrário, produzidas pela própria ação humana sobre a natureza.

Enquanto campos de conhecimentos parcelares, a Ciência Política surgiu e se desenvolveu a partir dos interesses da burguesia; o Direito, para assegurar as posses e propriedades das classes dominantes; as Ciências Contábeis derivaram do extinto “Cameralismo”, que estava a serviço da burocracia reinante; e a Antropologia, por mais que possa soar doloroso para alguns, surgiu e se desenvolveu a partir dos interesses coloniais (como atestam Khaterine Gough, Pierre Bonte, Gérard Leclerc, Talal Asad, Jean Copans, entre tantos outros). Diante desse cenário, não defendemos uma “Antropologia Marxista”, por assim dizer. Ao contrário, acreditamos que tal denominação constitui, na verdade, um oxímoro. Trata-se, portanto, de opormos o pensamento marxista àquilo que se constituiu enquanto “razão antropológica” que, por vezes, age como um ente exterior ao mundo.

MC: Imaginamos que o trabalho de interpretação dos cadernos etnológicos seja árduo, não só por eles estarem escritos em vários idiomas e não responderem a uma estrutura expositiva evidente, mas também pelo caráter eventualmente não sistemático das formulações elaboradas por Marx nestes documentos. E, de qualquer forma, é necessário lançar-se ao trabalho interpretativo. Mas que trabalho seria esse? Em que razão ele se inscreve? De quais pressupostos ele parte?  A questão que gostaríamos de debater é a seguinte: seria possível restringir-se a uma interpretação destes manuscritos? Ao fazer isso, não estaríamos recaindo na “razão antropológica” (para usar um termo proposto por Lucas num texto recente), propondo uma hermenêutica tal como Geertz projeta em “A interpretação das culturas”, onde pretende tomar a cultura como um “texto” que emana sentidos a serem decifrados pelo antropólogo? Parece-nos que a alternativa à hermenêutica seria interpelar estas notas “etnológicas” a partir dos problemas teóricos e políticos que nos inquietam no presente, sem deixar de levar em conta a especificidade do que Marx estava tentando fazer no seu momento. E vocês, o que pensam a respeito?

LPA & MA: Essa pergunta é espinhosa e é necessário que, de antemão, façamos algumas breves advertências: há distinções entre a interpretação de um determinado texto e a “Hermenêutica” originalmente concebida sob a órbita da Filosofia enquanto um ramo que investiga a teoria interpretativa. Nosso exercício de interpretação de um texto de Marx, por exemplo, não se circunscreve no âmbito da hermenêutica filosófica e muito menos no que foi chamado, sob o domínio da razão antropológica, de “antropologia hermenêutica” ou “antropologia interpretativa”. Assim, não é o trabalho de interpretação de um texto de Marx que se insere na razão antropológica. Ao contrário, a inscrição na razão antropológica ocorre, justamente, no momento em que há o estabelecimento de uma associação imediata do trabalho de interpretação à hermenêutica antropológica de Geertz. Acreditamos que o exercício de interpretação de um texto, por si só, não deveria ser automaticamente associado à hermenêutica de Geertz que, como bem apresentado na pergunta, propõe o entendimento da cultura como um “texto” que emana sentidos a serem decifrados pelo antropólogo (“o tradutor”). Em razão disso, o artigo mencionado na pergunta (trata-se de “Para uma crítica da razão antropológica [Parte I]”, publicado no primeiro número da Revista Práxis Comunal) não endossa a contradição entre o exercício interpretativo de Marx e a hermenêutica de Geertz, ao contrário, a confronta (o que será aprofundado na Parte II deste artigo, com publicação prevista para a segunda edição da Revista Práxis Comunal).

À revelia dos pressupostos “interpretativos” de Geertz, acreditamos que os chamados “Cadernos Etnológicos” de Marx possuem uma objetividade. Isso significa que é possível notar determinações que estão presentes neles mesmos. Ao mesmo tempo, esse texto está inserido numa época histórica e, consequentemente, possui uma função, ainda que essa não se manifeste imediatamente como resolutiva. Apesar de suas especificidades, acreditamos que os “Cadernos Etnológicos” possuem certa autonomia, e é exatamente por possuir essa autonomia que eles conseguem apresentar determinações que atuam sobre a realidade.

Porém, essas determinações não “saltam aos olhos” imediatamente e nem são fáceis de serem compreendidas. Uma prova disso são as interpretações feitas por alguns entre aqueles – embora não sejam muitos – que se deram ao trabalho de investigar tais Cadernos. Partindo desses textos, Lawrence Krader afirma que é possível encontrar traços evolucionistas no pensamento de Marx; Marcello Musto, por outro lado, afirma que esses Cadernos configuram uma negação a qualquer associação de Marx com aspectos evolucionistas. Dois intérpretes, duas conclusões distintas e um mesmo texto investigado.

Além dos confrontos interpretativos, podemos suscitar outra discussão: o que pode ser extraído desses Cadernos? Jean Tible e Franklin Rosemont acreditam que, através dos “Cadernos Etnológicos”, Marx oferecia vislumbres da possibilidade de que os povos indígenas dessem suas contribuições à revolução socialista. Sem contrariar as intenções desses intérpretes, podemos nos questionar o seguinte: será que, de fato, essa conclusão pode ser referendada como uma interpretação que se atém às determinações objetivas presentes nesses Cadernos? Ou talvez se trate de extrair de um texto algo que, nele, não está plenamente expresso? Eis a necessidade de compreender que o exercício interpretativo não é apenas uma atividade “restritiva”; ao contrário, um rigoroso trabalho de interpretação de um texto pode dar certa inteligibilidade a algo que antes poderia aparecer de maneira obscura aos leitores.

Ernst Bloch dizia que o marxismo não permite que a práxis dê um passo sequer sem antes prestar homenagem à teoria. Não fosse assim, o marxismo não seria instrução para o agir concreto. Neste caso, o proletariado perderia sua melhor arma e o inimigo não teria necessidade de temer a realidade, de falsificá-la, de proibi-la. Tal teoria nada tem a ver com intelectualismo; atrás e diante de si, ela é tomada de posição, afeto pela coisa conhecida. O marxismo também é um campo em disputa, e isso se conforma justamente em função das distintas interpretações que foram realizadas sobre – e em nome de – Marx. O que sustentou o apelo tático decorrente da hegemonia stalinista, senão um suposto amparo interpretativo na obra de Marx? No entanto, o que foi a experiência stalinista, senão uma completa inversão da posição materialista de Marx? Como bem constata Lukács, mais do que uma interpretação equivocada ou uma aplicação descuidada do marxismo, o stalinismo foi, antes, uma “negação do marxismo”, travestida de interpretação.

Interpretamos Marx por aquilo que ele afirma, e não por aquilo que afirmam dele. E entendemos que as afirmações de Marx carregam palavras que são parte de um léxico específico, que possui historicidade relacionada ao pensamento e experiência do autor. Por sua vez, este léxico está relacionado ao contexto social e histórico em que Marx viveu. Deste modo, realizamos, com nossa interpretação de Marx, um procedimento que a Antropologia reivindica com insistência, apesar de poucas vezes ela própria realmente se submeter a fazê-lo. Referimo-nos ao procedimento que consiste em compreender um determinado fenômeno (pessoa, grupo, cultura, ou seja lá o que for) a partir de seus próprios termos, e não com os olhares, as pré-noções e o vocabulário do lugar e época do observador-analista. O irônico disso é que a menção a Marx em alguma aula de Antropologia nunca é realizada a partir de seus próprios escritos, e sim pelas visões de “cânones” do pensamento antropológico sobre esse autor.

Após realizar o exercício interpretativo dos “Cadernos Etnológicos”, nós confrontamos as ideias de Marx com o marxismo em sua essência, isto é, como expressão teórica do proletariado revolucionário. O resultado, em todos os casos por nós analisados na ocasião do minicurso, é a constatação da radical coerência de Marx com o projeto de emancipação da humanidade.

Sobre os entrevistados:

Matheus Almeida é mestrando em Antropologia Social no PPGAS-USP e bacharel em Antropologia pela UFMG. Desenvolve pesquisas nas áreas de Antropologia da Política, Movimentos Sociais e Teoria Marxista. É co-fundador da Revista Práxis Comunal e Membro do Movimento Autogestionário (Movaut). Na graduação, pesquisou os conflitos e discursos em um processo judicial de despejo da UFMG contra a ACEMG (Associação Casa dos Estudantes de Minas Gerais), a ocupação estudantil em funcionamento mais antiga do Brasil. No mestrado, pesquisa o Movimento Mães de Maio, criado na Baixada Santista de São Paulo após o massacre de Maio de 2006, refletindo como estas Mães transformam seu luto em luta.

Lucas Parreira Álvares é mestre em Direito e Justiça pela UFMG com a dissertação “Flechas e Martelos: Marx e Engels como leitores de Lewis Morgan”, na qual investigou os chamados “Cadernos Etnológicos” da obra de Marx em comparação com a obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de Engels. Atualmente, é bacharelando em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia, também pela UFMG. Desenvolve pesquisas nas áreas de teoria marxiana e teoria antropológica. É co-fundador da Revista Práxis Comunal e fundador da Revista de Ciências do Estado.

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