Por Felipe Moretti
Imagem: A morte veio de cima, Gilvan Samico, 1977.
Canudos é a história do fracasso de um dos maiores eventos revolucionários do Brasil e, consequentemente, do preço que se teve de pagar por essa derrota. Os mortos do arraial de Conselheiro assombram-nos até hoje. Mas Canudos não seria, além disso, a possibilidade de as coisas terem acontecido de outro modo? De, talvez, o rumo do passado não nos levar até a situação tenebrosa do presente? Tratemos essas preocupações como elas devem ser tratadas: não como especulações levianas sobre o nosso passado, mas como perguntas difíceis e seríssimas que devem ser o trampolim para a nossa análise do presente.
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A “Comuna de Canudos” e o fracasso
O que é fracassar? – pergunta-se Alain Badiou (2012, p. 99). Segundo ele, todo fracasso de uma singularidade revolucionária tem uma natureza dupla – seus polos negativo e positivo. O polo negativo é o fracasso concreto: os massacres, as prisões, a cooptação social-democrata, ou até a vitória que, a curto ou médio prazo, revela-se também uma derrota. Já o polo positivo é o balanço tático que se faz após cada derrota – mesmo se anos depois. Também podemos imaginar que cada fracasso tem dois momentos trágicos. O primeiro é a derrota em si; o segundo, a tragédia silenciosa do esquecimento, quando, depois que a poeira desce e os mortos são tirados de cena, percebe-se que ninguém se lembra do que aconteceu.
Poucos são mais forçados que os historiadores a refletir sobre essas questões e mirar o abismo do passado nacional de ruínas e fracassos. Tomemos o caso de Canudos, derrotado em 1897, que é o assunto de Sertão, Sertões: Repensando contradições, reconstruindo veredas (BARROS, J.; MARINHO, C., PIETRO, G., 2019), uma coleção de artigos e ensaios que parte da memória da experiência do arraial de Antônio Conselheiro (ou – por que não? – a “Comuna de Canudos”) para pensar o passado, o presente e o futuro do sertão nordestino e, mesmo que não diretamente, do Brasil.
Antes de tudo, devo avisar que meu comentário, embora parta do livro, não se restringe a ele e nem tenta disputá-lo. Algo que seria ridículo, dado que cada artigo e ensaio que se encontra aqui é iluminador a seu próprio modo e que, além do mais, aborda assuntos que não domino. Apenas parto de algumas análises contidas em Sertão, Sertões para refletir sobre o fracasso, sua memória e o papel dos mortos na “formação nacional”. Ao final, espero oferecer mais do que apenas um resmungo.
A história do município de Canudos do final do século XIX até hoje é um resumo da história do Brasil. Ali se repete um dos inúmeros “ciclos nacionais”[1]: opressão, seguida de revolta, que é estraçalhada pela violência abjeta, a tentativa de reconstrução tímida, suspeita estatal, apagamento histórico. Só que ao contrário do ciclo do ouro ou do café, este não fala de uma mercadoria em específico, senão da tentativa de escapar ao reino abstrato da própria mercadoria. Nas páginas de Sertão, Sertões, o ciclo é contado em três atos: a Primeira, Segunda e Terceira Canudos. A Primeira Canudos corresponde ao arraial de Antônio Conselheiro; a segunda, ao vilarejo reerguido nos escombros da primeira e que é eliminado do mapa pela construção do Açude Cocorobó, cujas águas o inundam no final dos anos 60; a terceira, à cidade que atualmente existe à margem do açude. Além de ser um resumo do Brasil, Canudos é, também, um microcosmo das contradições do sertão nordestino onde a concentração fundiária encena um jogo tragicômico em volta da água. No caso específico da construção do Cocorobó, é mais irônico ainda que a água, elemento tão recorrente nas profecias dos beatos da caatinga, venha a cobrir o território onde se ensejou um modo de vida que permitiria um acesso mais justo a ela. O sertão virou mar, mas por cima das ruínas de Canudos.
Canudos é, também, a história do fracasso de um dos maiores eventos revolucionários do Brasil e, consequentemente, o preço que se teve de pagar por essa derrota. Os mortos do arraial de Conselheiro assombram-nos até hoje. Mas Canudos não seria, além disso, a possibilidade de as coisas terem acontecido de modo diferente? De, talvez, o rumo do passado não nos levar até a situação tenebrosa do presente? Publicado em 2019, primeiro ano de gestão do presidente Jair Bolsonaro, Sertão, Sertões trata essas preocupações como elas devem ser tratadas: não como especulações levianas sobre o nosso passado, mas como perguntas difíceis e seríssimas que devem ser o trampolim para a nossa análise do presente.
Terra, água e o mundo dos mortos
Em Sertão, Sertões, contradições entre a aridez e a precipitação, a seca e a chuva são pareadas pelas contradições entre o valor de uso da terra e o seu valor de troca, entre permanência histórica e modernização, entre a preservação e a inundação e, finalmente, entre a memória e o esquecimento. Há, aqui, um tema hídrico, no qual a água desempenha um papel primordial e preponderante, sendo o ponto de encontro entre várias determinações sociais e geográficas. No sertão, o ir e vir da água, sua chegada e a sua partida, é também um meio pelo qual se narra a acumulação de valor capitalista. Como indica a conhecida metáfora da história enquanto rio, não é só lá que se fala do tempo através d’água.
Mas também se pode pensar a expansão histórica do capital através da terra; ou, mais propriamente, através das suas camadas. Benjamin, por exemplo, frequentemente alude às noções de ruínas e escombros em “Sobre o conceito de história”. “Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos”, escreve Benjamin (2012, p. 246), o anjo da história “vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa aos seus pés.” Na sétima tese (idem, p. 244), lemos que os opressores atuais “participam do cortejo triunfal” que passeia por cima de camadas e camadas de “corpos dos que hoje estão prostrados no chão.” De cima, onde está o Angelus Novus, vemos a história assim como os paleontólogos veem a crosta terrestre – uma colossal cena de crime, escrita em ossos, poeira e terra, descendendo a um passado antiquíssimo.
Processos geológicos como sedimentação, erosão, fossilização e encobrimento criam imagens próprias para descrever como, no capitalismo, o morto domina o vivo. Mark Neocleous (2003) tem mostrado os caminhos pelos quais, ao longo da sua obra, Marx desenvolveu justamente uma crítica da “economia política dos mortos”. Neocleous sugere que, para além da dualidade conceitual entre trabalho socialmente necessário e trabalho excedente, deve-se vislumbrar na mobilização capitalista do trabalho também a dualidade entre trabalho vivo e trabalho morto (idem, p. 680). Assim, se concretamente a categoria “trabalho objetificado” desvela a transformação de força-de-trabalho viva em valor (isto é, o movimento de uma solidificação), abstratamente ela mesma se revela como apenas um passo de um movimento maior. No presente, a objetificação do trabalho é parte lógica das relações capitalistas. Por outro lado, se for narrada temporalmente, ganha contornos de uma história de terror, como vemos na exposição histórica da acumulação primitiva que fecha O Capital. Desta perspectiva, a materialidade concreta do capital – sua infraestrutura, palácios, fábricas e cidades – adquire os contornos do que vemos no inferno do artista plástico Wayne Barlowe: um palácio feito inteiramente de almas cuja construção nunca está acabada. Aqui, as imagens telúricas são, também, sugestivas:
A estrutura deste mundo foi construída pelos mortos, eles foram pagos com salários e, depois que os salários foram gastos e os mortos sepultados, o que construíram continua existindo; essas cidades, estradas e fábricas, elas são seus ossos calcificados. (Monsieur Dupont, 2009, p. 1)
Dito de outra maneira, estamos na sombra do reino dos mortos. É dentro desta história de terror que vivemos e lutamos. Os afetos da luta de classes? O assombro e o ódio. “Esta é a definição do ódio de classe. Não estamos remotamente mais próximos do descanso, da liberdade, do comunismo do que eles estiveram, seu sacrifício não nos alcançou nada, o que eles fizeram não valeu para nada (…) A guerra de classes começa com a profanação dos nossos antepassados” (idem). Benjamin, cuja memória é tão invocada em Sertão, Sertões, escreveu algo parecido nas suas teses. Ao criticar a ideologia social-democrata (Benjamin, op. cit., p. 248) que atribuía ao “movimento das forças produtivas” um valor redentor, ressaltava que ela tinha cortado os nervos das melhores forças da classe operária – dentre as quais, o ódio, nutrido pela “imagem dos antepassados escravizados.”
“A guerra de classes começa com a profanação dos nossos antepassados.”
O último ciclo nacional
Sertão, Sertões também contém um ensaio crítico que inclui fotografias da primeira Canudos tiradas por Flávio de Barros, que acompanhou ao arraial a última e fatídica expedição do exército republicano em 1897. Na verdade, o ensaio contempla o trabalho de dois fotógrafos: também há fotografias de Pierre Verger, que visitou a segunda Canudos meio século depois da destruição de 1897. Uma das suas fotografias mostra homens discutindo algo, talvez no meio de uma feira; outra, camponeses selando seus jegues magros. São imagens de trabalho, de comércio. O texto que acompanha as imagens lembra que Verger preferira “enfatizar em suas imagens a sociabilidade e as relações de produção sertaneja como eixo central da vida em Canudos” (p. 37). Nota-se que se trata de um olhar etnográfico, em contraposição àquele tomado por Flávio de Barros, que encenara cenas artificiais de captura e derrota entre soldados e jagunços. O cerne da oposição entre Barros e Verger está no fato de que o segundo escolhera retratar a “história, como processo”.
Lembremos que as fotos descritas por esta legenda retratam relações sociais (a compra na feira), mas também se inserem num repertório sobre quem é o sertanejo – daí os homens esfarrapados contra uma paisagem semi-árida, selando seus jegues esqueléticos. As fotos de Verger, afinal de contas, foram encomendadas pel’O Cruzeiro, em cujas páginas um público de classe-média litorâneo consumiria a representação daquele ser atrasado. A dialética entre o sertanejo e o chamado projeto nacional parece se mover entre um polo que possui uma “verdadeira” identidade – o sertanejo – e o anônimo, mas perigoso, “projeto nacional”.
Cabe questionar se, de fato, existiria uma oposição entre, de um lado, “diálogo, troca, relação”, a “humanização” que acompanharia as fotos e a “história, como processo” e, do outro, o reino do progresso republicano anunciado pelas fotos de Flávio de Barros. Sob o reino do capital, todos os intercâmbios e relações começam e terminam na tirania do valor de troca. Na sociedade de classes, toda história, esteja ela em processo ou não, é necessariamente trágica e a revolução não é seu adiantamento, mas nossa fuga dela.
Da perspectiva benjaminiana, nessas imagens ensaia-se uma dialética entre a derrota prévia e a reintegração capitalista (seria o projeto nacional?), a qual, recebendo o nome de “modernização do campo”, transforma o camponês em trabalhador rural – transformação bem abordada, aliás, na terceira seção de Sertão, Sertões. Mas uma derrota sempre é temporária e, como Jacques Camatte bem aponta, a “irreversibilidade absoluta não é um fato da história” (1973, nota de rodapé n. 1, p. 18). Refletindo sobre os apontamentos de Badiou sobre a natureza do fracasso revolucionário, voltar ao desastre inicial da primeira Canudos ensina que a dialética da derrota movimenta-se entre os polos da sua “parte estritamente negativa”, o esmagamento do evento revolucionário, e da sua parte positiva – o balanço tático e estratégico que vem depois; às vezes, décadas depois. E o que é um balanço tático, se não a linha de ataque de uma nova insubordinação?
Não que devamos cair no desespero de agir por agir. Claro, nenhuma análise ressuscitou os mortos. Mas, num movimento inverso à estratificação temporal da acumulação capitalista, a análise pode revelar o que foi encoberto pelos escombros do passado, ou pela mistificação das ideologias oficiais – o culto ao progresso das “nossas” elites, o parlamentarismo liberal da maioria dos intelectuais. A análise crítica, evidenciando o que mudou e não mudou, afia o diagnóstico do presente.
Neste sentido, o posfácio de Gabriel Zacarias constitui um dos ensaios mais lúcidos de Sertão, Sertões. É escrito no estilo sóbrio, mas não necessariamente frio, que Benjamin (2012) recomenda ao historiador materialista: este deve observar o cortejo triunfal dos poderosos com distanciamento (p. 244). Sabendo que a barbárie marca não só o objeto cultural, mas também o próprio processo de transmissão, ele se “desvia desse processo, na medida do possível” (idem, p. 245). Falando a partir de uma tragédia – a eleição de Bolsonaro –, Zacarias é capaz de perceber os elos que ligam a implosão atual com os escombros de um século atrás. Ironicamente, são ligados pela água, seja pelo seu excesso ou pela sua falta: Belo Monte do Pará remete ao Açude Cocorobó, que criou um lago aos pés do Belo Monte de Antônio Conselheiro; deste promontório, as águas que cobrem a segunda Canudos são as mesmas que expulsam as famílias do vale do Xingu. Muito concretamente (ou poderia dizer “hidricamente”?), uma mesma linha liga os soldados que arrasaram o arraial de Conselheiro aos policiais militares e jagunços que aterrorizaram as comunidades tradicionais que se opunham à construção da hidrelétrica de Belo Monte. E aqui se desdobra essa história, pois a linha que garante a continuidade temporal do Estado invariavelmente o conecta aos mortos que produz, da mesma forma que, nos contos de terror, a reputação de um vampiro é conhecida pela quantidade de pessoas que ele mesmo transforma em seus súditos mordidos. Igualmente, no capítulo sobre a jornada de trabalho no Capital, Marx (op. ci., p. 326) decifra no sofrimento de operários jogados às máquinas a natureza imanente do Capital-vampiro, que suga o sangue dos vivos para criar valor.
O que isso diz sobre os tempos que virão? “Se escrevêssemos hoje um epílogo para Os Sertões,” anota Zacarias (2019, p. 189), “poderia talvez chamar-se ‘As águas’”. Sua metáfora do historiador como escafandrista combina bem com o momento de hoje, quando as metáforas hídricas e geológicas do Capital finalmente se encontram. Afinal de contas, não é pela exploração energética das antigas camadas da crosta terrestre que a magia oculta do capitalismo faz os mares subir? Não estamos sofrendo o mesmo destino que a Canudos inundada pelas águas do Vaza-Barris? Mesmo que preventivamente, nossa tarefa crítica já não assume contornos escafandristas, no sentido de que nós mesmos já pensamos dentro de um escombro?[2]
Como Zacarias escreve:
A destruição ambiental e o apagamento da memória se confundem, num momento de verdade sobre a força duplamente destruidora da acumulação de capital. Sabemos que a história é outra quando vista de baixo. Aqui deve ser vista de debaixo das águas, ou resgatada de debaixo da lama. (idem, p. 191)
Numa reversão cômica de papeis – apenas uma das várias que compõem a peça trágica do nosso momento – é agora o litoral brasileiro, por tanto tempo oposto ao interior subdesenvolvido, que deve sofrer com a subida das águas, que trazem à tona as consequências globais da “religião do crescimento” (idem). Talvez em breve os vários sertões do Brasil – não só no Nordeste, mas todas aquelas áreas desprezadas pelo imaginário nacional – sejam ocupados às pressas pelas elites a fugir dos mares em alta. Um dia, as elites do Leblon fugirão de vez às vilas de Petrópolis. Os bons cidadãos de Salvador, aos interiores da Bahia, talvez até para Canudos. E com uma perda considerável – aqui, ao contrário do Cocorobó, a água não serve para valorizar a terra. Ao contrário, ela explode pelos ares o ciclo da especulação imobiliária. Nesse futuro show de horrores, o tragicômico é o estilo determinante, honrando a máxima de que a história se repete como farsa.
Imagine-se, então, que talvez os morros povoados pelos descendentes dos soldados que destruíram Canudos tornem-se os únicos bolsões habitáveis na cidade maravilhosa submergida. Se tudo ocorrer conforme o plano, serão expulsos pelas forças da ordem e do progresso para dar um lugar de morar aos ricos empapados. Talvez estejamos vivendo o último ciclo de mercadoria da grande epopeia nacional, o ciclo d’água, em que expropriação pela água e expropriação para fugir d’água são apenas as faces do mesmo rosto de Jano[3]. Se este for o caso, o credo “ordem e progresso” revela uma profecia do esgotamento, cujas etapas seriam designadas hermeticamente pelas cores da bandeira nacional. Assim, esta toma o aspecto de mapa estratigráfico, onde foram engravados os diferentes ciclos de valorização e seus subsequentes colapsos. Ora, primeiro foram-se as florestas verdejantes; depois, esgotou-se o solo na sede doentia do ouro amarelo – auri sacra fames!; e, dado que o plano mirabolante de Alcântara da ditadura não nos lançou aos céus, o final estrondoso será trocar nossa água doce pela água salgada!
Uma piada de mau gosto diz que o motivo de todas as mazelas deste país reside no fato de ele ter sido erguido sobre um cemitério indígena. Isso explicaria o feitiço malévolo que nos torna incapazes de escapar do caudilhismo, da brutalidade, da violência material, da mediocridade espiritual, do processo histórico que agora culmina no “Estado-milícia”, como escreve Zacarias. Mas só há uma magia em jogo e ela é a necromancia capitalista: a transformação macabra do trabalho morto em capital vivo, feito zumbi, a mobilização dos viventes rumo à morte. Ao invocar os mortos, essa feitiçaria lança seu braço podre ao passado, perfurando camadas de túmulos e rompendo jazigos, destroçando caixões, profanando os espíritos da terra. “A guerra de classes começa com a profanação dos nossos antepassados (…)”
A ironia final de toda essa peça é que a violação capitalista do passado cria dívidas que só podem ser cobradas por algo muito maior, muito mais antigo. Ao devorar os poços de gás e petróleo, que são nada mais que os restos decompostos de nossos antepassados primordiais, o capital despertou do leito da morte forças ctônicas. Sugando o sangue negro da crosta terrestre, os nossos bons capitalistas empenharam-se por meio século na maior profanação do passado que o planeta já viu. “A forma mais extrema desse colapso”, escreve Zacarias, referindo-se à decomposição da modernização capitalista, “é, sem dúvida, a ambiental, na qual a manipulação do mundo concreto em prol da acumulação do valor abstrato vem cobrar sua dívida imperdoável. Afinal, não só o homem cobra suas dívidas, mas também a terra” (p. 192). Certamente, a piada não passará despercebida aos mortos sepultados por debaixo da lama do Cocorobó. Terão a risada final: que a água agora venha a cobrir não mais os mortos, mas os vivos!
Notas
[1] Aqui e adiante, brinco com o conceito de ciclo econômico como introduzida por Celso Furtado (2005) em Formação econômica do Brasil. Atento especialmente à natureza de boom and bust que intercala, nestes ciclos, não só expansão comercial e crise, mas também expansão e retração de vida, violência e pobreza.
[2] Roy Scranton (2013): “The biggest problem climate change poses (…) is a philosophical one: understanding that this civilization is already dead.”
[3] Se considerarmos que a médio e longo prazo a exportação agrária é também a exportação d’água dos nossos sumidouros lençóis freáticos, a hipótese ganha força. Neste sentido, o semi-árido brasileiro passa de ser imagem do atraso e ganha o privilégio de ser a imagem do nosso futuro cada vez mais ressequido.
Referências bibliográficas
BARROS, J.; MARINHO, C., PIETRO, G. (Orgs.) Sertão, Sertões: Repensando contradições, reconstruindo veredas. São Paulo: Elefante, 2019.
BADIOU, Alain. A hipótese comunista. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2012.
CAMATTE, Jacques. The Wandering of Humanity. Trad. Fredy Perlman. Detroit: Red & Black Press, 1973.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras escolhidas, vol. 01. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.
DUPONT, Monsieur. Nihilist Communism: a Critique Of Optimism in the Far Left. São Francisco: Ardent Press, 2009.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.
NEOCLEOUS, Mark. The Political Economy of the Dead: Marx’s Vampires. History of Political Thought, v. 24, n. 4, 2003.
SCRANTON, Roy. Learning How to Die in the Anthropocene. New York Times. 10. nov. 2013. Disponível em: <https://opinionator.blogs.nytimes.com/2013/11/10/learning-how-to-die-in-the-anthropocene/>. Acesso em: 16 de julho de 2020.
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