Por Sylvain Lazarus
Imagem: manifestante nos protestos do Primeiro de Maio de 2019 em Paris © AP
O que são “singularidades subjetivas”? Como resposta, eu primeiro tentaria indicar o que elas fazem: as singularidades subjetivas permitem o pensamento dos processos do pensamento, processos que são singulares e sequenciais, que não se repetem nem são repetíveis. Essa abordagem da questão é incompatível com métodos que colocam qualquer fenômeno dado – se quisermos investigá-lo, conhecê-lo, formalizá-lo – necessariamente entre um antes e um depois que precisa ser comparado a outros fenômenos em termos de suas semelhanças ou diferenças.
Este texto é um fragmento do livro Chronologies du Présent, de Sylvain Lazarus, previamente publicado pela revista Crisis & Critique, volume 9, número 2. O livro de Lazarus compreende cinco intervenções realizadas em 2018, antes do movimento dos Coletes Amarelos. O problema que organiza as reflexões do autor pode ser definido assim: quais são as possibilidades disponíveis para uma política que se desenvolva a partir da perspectiva das pessoas? Tal é a questão abordada nas passagens que traduzimos nesta oportunidade.
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Prefácio. A questão presente e o ponto de vista
Agradeço sinceramente a Eric Hazan por acolher esta publicação em sua editora. A oportunidade de publicar com La Fabrique nos permitiu trabalhar pacientemente através do que inicialmente era uma série de seis palestras dadas em Paris entre fevereiro e outubro de 2018 e, finalmente, chegar ao presente manuscrito. Essas palestras, concebidas como uma espécie de crônica do momento presente, ocorreram antes das revoltas dos Coletes Amarelos, que, mais tarde naquele ano, confirmariam, acentuariam e, de fato, exacerbariam muitas das hipóteses que evocamos nessas palestras ao inscrevê-las ainda mais no real. Um dos aspectos mais estranhos e perturbadores do nosso momento presente consiste no fato de que mobilizações tão amplas e massivas falham em abrir horizontes alternativos, outras maneiras de conceber as relações de poder e resolver certas questões por fora dos termos do sistema parlamentar ou dos ritmos de sua política eleitoral.
Este livro trata de nossa condição política atual. Sua principal questão é a seguinte: quais são as possibilidades para uma política a partir do ponto de vista das pessoas? O que o leitor encontrará nas páginas seguintes é uma reavaliação do contemporâneo como uma sensação, vivida e experienciada, que se ancora em sua diferença em relação ao que ocorreu. O que impulsiona estas crônicas é a ruptura que ocorre entre o acontecimento e o ter-acontecido do acontecimento. Retornando à Guerra da Independência da Argélia e à Guerra do Vietnã, Sylvain Lazarus dedicou seu pensamento ao que ele chama de política “a partir da situação das pessoas” ou “do ponto onde encontram-se as pessoas” (du point des gens). Embora ao longo dos anos tenha se engajado em formas revolucionárias de política, participando da fundação de duas organizações militantes, com relação ao momento presente, Lazarus frequentemente me diz que ele é apenas “um entre outros”. Ser um entre outros, convocado à luta pelo estado do mundo em que nos encontramos, e não tentar reivindicar um status excepcional nessa luta com base no que se foi ou se fez no passado, constitui, para Lazarus, a pedra angular de uma ética antidemágogica, uma forma de dizer a verdade (dire-vrai) que guarda relação com o que o falecido Foucault conceituou como a “coragem da verdade” (courage de la verité – parrhesia). Só que aqui, a questão de quem está falando é deslocada em favor de saber o local ou ponto a partir do qual o discurso ocorre, é enraizado, elaborado e debatido. O local em questão é o local em que a afirmação central de Sylvain Lazarus emerge. A saber: que as pessoas – em seus próprios termos e de acordo com lógicas frequentemente criativas do possível – pensam (les gens pensent). Seu trabalho, portanto, baseia-se nas palavras das pessoas, pois é em suas palavras que um pensamento se realiza. No campo de pensamento aberto pelas palavras das pessoas, introduz-se um mundo de proposições sobre o que pode ser possível no presente.
[…]
Claire Nioche
Os Dois Classismos
1
No meu livro, Antropologia do Nome, argumentei que o tempo não existe.[1] O que existe no método de investigação antropológica são sequências, cada uma inscrita em seu próprio sistema de datas. Sequências, em vez de tempo, são significativas porque nos permitem investigar o pensamento, nos espaços políticos como um tipo de pensamento que muitas vezes surge nesses espaços como uma “experiência interna” do político.
No entanto, a questão das sequências levanta imediatamente a questão de sua própria datação; e a datação de uma sequência nos leva à sua qualidade/qualificação política. Voltei muitas vezes às diferentes datas que historiadores da primeira metade do século XX propuseram para entender a Revolução Francesa, por exemplo: alguns a veem como ocorrendo entre 1789 e 1794 (Albert Mathiez), outros (como Georges Lefebvre) de 1789 a 1799, e outros ainda (Alphonse Aulard) de 1789 a 1804.[2] Na sua datação do evento, cada historiador apresenta uma visão diferente (qualificação) do que entendem pelo nome “Revolução Francesa”; ou melhor, para usar uma expressão que eu introduzi e que tem encontrado mais do que algumas imitações desde então, pela maneira como eles entendem as datas do evento, eles apresentam uma resposta à seguinte pergunta: do que a Revolução Francesa é o nome? O que, nessas diferentes datações, a “revolução” nomeia?
Obviamente, se eu datar a Revolução Francesa de 1792 a 1794 (ou seja, para os eventos de Thermidor e execução dos principais membros dos jacobinos), aquilo que é chamado de Revolução não pode nomear a mesma coisa que um conjunto de datas que prolongaria a revolução até Bonaparte (1799) ou mesmo à coroação deste como imperador (1804).
Sequências são os intervalos de tempo nos quais um modo está em atividade. Ou seja, é o intervalo de tempo no qual ocorre uma invenção específica da política. Ou, melhor ainda, no qual emerge a presença absolutamente singular e sem precedentes de algo que nunca antes existiu e que nunca mais ocorrerá. Isso é o que eu chamo de um modo histórico da política em interioridade (un mode historique de la politique en intériorité), noção que nos permite conceituar e descrever um modo em termos de sequência (modo revolucionário, modo bolchevique, etc.) e traçar seus limites e fronteiras.
Façamos um breve esclarecimento: a política, aqui, está ancorada no princípio axiomático de que “as pessoas pensam”. Isso é o que transforma uma política dada em subjetividade, em interioridade. Ela aparece na forma de um modo. A forma dessa (experiência da) política em interioridade não é constante: ela é sequencial, rara, frágil. Para identificá-la, precisamos expor e revelar o que foi pensado e inventado ao longo da sequência. Um modo da política só pode ser identificado se procurarmos o pensamento específico da política que estava em ação nele. Esse pensamento inventivo, além disso, é o pensamento dos agentes de um modo, seus atores, e está enraizado e comprometido com os lugares do nome. Como tal, o nome é indizível, inominável (innommable); sua descrição é realizada investigando os lugares do nome: para voltar à Revolução Francesa, esses lugares incluiriam a Convenção Constitucional, por exemplo, os clubes Sans-Culottes e o Exército do Ano II. Quando esses lugares deixam de existir, o modo terminou, fechou-se, isto é, perimiu.
Por que privilegiar a sequência em relação à temporalidade, ao “tempo”? Em minha opinião, “tempo” é uma invenção transmitida a nós por Grandes Narrativas: Criação, Gênesis, inícios e fins do tempo; o tempo de repetições intermináveis do calendário; a travessia do Mar Vermelho, o nascimento e a morte de Cristo ou do Profeta, e assim por diante. O tempo é também um aparato conceitual constitutivo na filosofia da História, e especialmente em Hegel. O tempo se abre para a totalidade e, assim, para a unidade. A dialética precisa do tempo, culminando finalmente no pensamento do materialismo histórico.
Hoje, entretanto, um problema diferente me preocupa. Não há uma experiência da política em interioridade no presente, não existe um espaço ou lugar político amplamente compartilhado “do ponto de vista das pessoas”, e, portanto, não há uma sequência aberta em sua singularidade política. É este presente, no qual a política é procurada, que eu quero enfrentar nestas crônicas do presente.
2
Em 1902, Lenin escreve, nas passagens iniciais de “O Estado e a Revolução”, que o controle do Estado é a questão central da política, alinhando diretamente sua visão com a avaliação conclusiva de Marx sobre a experiência da Comuna de Paris e sua derrota em 1871: o Estado burguês deve ser destruído.
Se para os marxistas o Estado é produto da natureza irreconciliável da contradição de classe e da dominação de uma classe sobre outra, então destruir o Estado era a condição para retirar o poder da burguesia. O desaparecimento da propriedade privada e do capital era, assim, subordinado à destruição do Estado burguês. Daí a centralidade do antagonismo, da luta, desdobrando-se na instituição de uma nova forma de poder: a ditadura do proletariado, concebida como a única alternativa possível para a ditadura da burguesia. E como lembrete, o conceito de “ditadura” para os marxistas não era nada mais do que a expressão da natureza do próprio poder do Estado – um poder que não é compartilhado entre as classes e muito menos transferido de uma classe para outra. Uma vez no poder, para Marx e Engels, e mais tarde Lenin, o proletariado poria fim à existência das classes como tais, eliminando a propriedade privada e o reinado do valor de troca, abrindo assim caminho para o desaparecimento do Estado. A experiência do comunismo no século XX, no entanto, contradiria essa teoria: uma vez no poder, o chamado partido da “classe” se tornou o operador dominante no / do Estado, organizando a perpetuação deste último em vez de seu desaparecimento histórico.
Pierre Clastres, etnólogo especializado na tribo Guayaki no Paraguai, argumenta, no entanto, que é na verdade o Estado que cria as classes e não o contrário.[3] Ele posiciona e articula classe e Estado em uma relação que é simetricamente oposta à visão de Lenin. Enquanto Lenin afirmava que são as classes que – por meio e na forma de suas contradições – criam o Estado (“O Estado”, ele afirma, “resulta do fato de que as contradições de classe são insolúveis”), na inversão de Clastres é o Estado como tal que cria as classes.
Do ponto de vista do marxismo, o Estado sempre carregou consigo uma reivindicação causal sobre suas origens: elas estão enraizadas nas contradições de classes. A perspectiva de uma sociedade sem classes seria mediada pela revolução proletária, a ditadura temporária do proletariado e, finalmente, o desaparecimento da forma estatal. Na raiz do conflito de classes e das contradições de classe estava a propriedade privada dos meios de produção. Assim, o que temos é um dispositivo teórico de causas no qual identificar o ponto de origem, o que causa o surgimento do Estado burguês, também permite uma inversão teórica na qual os passos necessários e os pontos de partida de sua desaparição podem ser elaborados.
Eu acredito que agora é necessário abandonarmos esse modelo causal ou visão do Estado burguês a partir do qual só podemos deduzir e identificar logicamente o caminho em direção à sua inevitável destruição e, a partir daí, o eventual desaparecimento do próprio Estado proletário.
Isso levaria a uma mudança decisiva em nossa abordagem ao problema do Estado. A questão não é mais a de sua desaparição. Hoje, à luz do que proponho como experiências conclusivas, as categorias de comunismo e de revolução proletária perderam o brilho da credibilidade. A experiência dos chamados Estados socialistas (URSS, China, Cuba, e assim por diante) é conclusiva; o desaparecimento da classe trabalhadora organizada como agente político ativo da cena contemporânea também é conclusivo. Tudo isso nos deixa com a pergunta de como, hoje, podemos conceber uma política a partir do ponto de vista das pessoas.
Se quisermos analisar o momento presente, o presente, precisamos romper com a historicidade revolucionária. Precisamos romper com a ideia de tempo e história, o que é uma ruptura real e importante. Eu vejo essa ruptura como uma quebra da inteligibilidade do sentido.
3
Proponho que chamemos de “classismo” as consequências da seguinte hipótese: na sociedade moderna, existem classes em conflito umas com as outras (trabalhadores/burguesia, trabalhadores/capitalistas, etc.). Vamos chamar de “classismo marxista” a seguinte teorização: o proletariado, ou a classe revolucionária moderna, é capaz de derrubar a burguesia, instaurar uma ditadura do proletariado e, juntamente com o desaparecimento da propriedade privada, inaugurar uma sociedade sem classes, uma sociedade comunista.
Existe, é claro, um classismo burguês que dá espaço para uma teoria da guerra de classes, mas seus fins e objetivos são completamente diferentes. Como Keynes, teórico do classismo burguês do século XX, disse uma vez: “a guerra de classes me encontrará do lado da burguesia educada”.[4]
Essas duas versões de classismo já estão perfeitamente delineadas na famosa carta de Marx para Wedermeyer em 5 de março de 1852, quase quatro anos após a publicação do Manifesto do Partido Comunista.
(…)
V Singularidades Subjetivas
1
As singularidades subjetivas levantam questões difíceis e, portanto, seria inútil esperarmos encontrar respostas fáceis para as perguntas que elas colocam diante de nós.
Quando uma questão é complexa, nossa resposta a ela deve encontrar uma maneira de segui-la em sua complexidade. O que está em jogo aqui é o status atual da afirmação com a qual minha Antropologia do Nome se abriu:
O campo da antropologia do nome é constituído pela questão colocada ao pensamento pela seguinte afirmação: as pessoas pensam. O objetivo […] deste livro é iluminar o subjetivo a partir do próprio sujeito, ou, como eu disse, em interioridade, e não a partir do ponto de vista de referentes objetivos ou positivistas. A política renovada – uma nova abordagem da política – tomará a forma, aqui, de um exemplo de como pensar ou abordar a subjetividade como processo.
Minha afirmação fundamental sobre política é que ela é da ordem do pensamento. Em jogo nesta afirmação está a irredutibilidade da política a qualquer outro espaço que não seja o seu próprio e, portanto, a necessidade de pensar a política em sua singularidade. [5]
Se as pessoas pensam e se a política é da ordem do pensamento, segue-se que as pessoas – afinal, isso acontece de vez em quando – podem pensar a política, sua política, a política sobre a qual falam, a política em interioridade. Essa era minha visão da situação há vinte anos.
Mas o que devemos fazer agora com o que as pessoas pensam – qual é o status desse pensamento hoje, quando não parece mais haver uma política disponível a partir do ponto [de vista] das pessoas?
2
Na época, eu indiquei que, para mim, “o objetivo” da antropologia era “captar e dar conta das singularidades subjetivas”. Fui cuidadoso em especificar que a Antropologia do Nome não deveria ser colocada nem lida apenas sob o título do político. “Política”, como eu disse, é apenas um nome para o que estava em jogo: “para a antropologia, a política é apenas um nome entre outros, a antropologia inclui a política, mas não se limita a ela”. Tratava-se, portanto, de um livro sobre singularidades subjetivas.
Por que a afirmação “as pessoas pensam” seria uma tese antropológica em vez de política? Ela não seria, também, uma reivindicação política? Ao descrever a antropologia, eu não estaria invocando uma disciplina científica, ou seja, um ponto de exterioridade, e assim perturbando um pouco minha afirmação de que a política precisava ser pensada como política, a partir do ponto de vista da política? Por que a afirmação “a política precisa ser pensada como política” seria antropológica em vez de política? É como se eu estivesse sugerindo que a afirmação “as pessoas pensam” pertence tanto à política quanto à antropologia, o que poderia gerar certa dificuldade, já que eu também proponho que pensemos o subjetivo como subjetivo, com base no subjetivo.
3
O que são “singularidades subjetivas”? Como resposta, eu primeiro tentaria indicar o que elas fazem: as singularidades subjetivas permitem o pensamento dos processos do pensamento, processos que são singulares e sequenciais, que não se repetem nem são repetíveis. Essa abordagem da questão é incompatível com métodos que colocam qualquer fenômeno dado – se quisermos investigá-lo, conhecê-lo, formalizá-lo – necessariamente entre um antes e um depois que precisa ser comparado a outros fenômenos em termos de suas semelhanças ou diferenças. Esse é, claramente, o método da historiografia e sociologia clássicas: elas operam em termos de causas, efeitos e comparação. Em seu trabalho “Elogio da História”, Marc Bloch argumentou que nenhum fenômeno vivido pode ser explicado em termos de análise crítica ou interpretação. De acordo com ele, “uma experiência única é sempre incapaz de discernir os fatores ou condições que a constituem, e, portanto, é incapaz de explicar ou interpretar a si mesma”.[6] Deve ser óbvio que minha própria maneira de pensar é muito diferente da de Bloch, especialmente porque ele tende a conectar e amalgamar interpretação, fatores e causas. Nesta visão, uma experiência singular ou única nunca é suficiente por si só; é necessário compará-la com algo. Esse é o ponto: em termos de causalidade para Bloch, uma experiência singular por si só não pode explicar suas causas nem fornecer uma interpretação de si mesma. Uma abordagem baseada em singularidades subjetivas propõe fazer exatamente o oposto: um dispositivo único de experiência pode ser identificado como uma forma singular de pensamento, desde que levemos o subjetivo como base para nossa interrogação do subjetivo, desde que pensemos o subjetivo em seus próprios termos. Ao postular a antropologia como antropologia das singularidades subjetivas, como pensamento das formas singulares de pensamento em sua processualidade, estou, é claro, em uma posição radicalmente oposta às abordagens ou métodos baseados em causalidades, determinismo e comparação.
Mas as singularidades subjetivas permitem a implementação de um método de produção de conhecimento adequado à fórmula “as pessoas pensam”? Com base em minha própria experiência, bem como em todo o meu trabalho, sei que a proposição “as pessoas pensam” tende a encontrar resistência e a produzir complicações. Da mesma forma, a ideia de que a política pode ser entendida como uma forma singular de inteligência, que pode ser pensada em seus próprios termos, também produz resistência. “Existem pessoas” é, em si mesmo, uma afirmação difícil de ser reconhecida, especialmente se, como sugiro, o que está em jogo nesse postulado é o que chamo de “uma certa indistinção” ou um indistinto determinado (indistinct certain). Em outras palavras: existem pessoas, mas o que importa nas palavras – o que importa na questão da nomeação ou nome, sua qualificação, sua especificação – não está lá. Para que haja um pensamento das pessoas, pressupõe-se uma forma de trabalho, um engajamento/compromisso, um processo.
No entanto, em vez de “as pessoas pensam”, é frequentemente e facilmente dito que o capital e as mercadorias decidem tudo, incluindo o que pensamos. Além disso, nos encontramos atravessando uma era de grupos e rótulos: ricos e pobres, católicos, muçulmanos e judeus, cidadãos de segunda categoria e elites… Parece que passamos da luta de classes para as classificações apressadas.
Para todos nós, o Estado existe – há o Estado como espaço de ordenação e comando. Em seguida, existem divisões entre aqueles que afirmam que isso é simplesmente da natureza do mundo e que a única coisa a ser feita é se conformar e obedecer, e aqueles que pensam que, de fato, o mundo é assim, mas admite a exploração de alternativas. No espaço da política parlamentar, uma alternativa possível seriam as reformas, ou a oposição entre a esquerda e a direita política… Para outros, a alternativa reside em adotar uma postura de oposição ao capitalismo.
Minha posição é bastante diferente. Eu argumentaria que, se algo acontecer, será a partir da situação das pessoas. Onde, quando ou como, hoje, são perguntas que nenhum de nós pode responder, no entanto, não devemos simplesmente esperar que algo aconteça, mas trabalhar ativamente para torná-lo uma possibilidade. Se algo deve ser feito, é dali que virá, mesmo que não saibamos nem possamos prever o que possa ser. Por isso eu afirmo que as “pessoas” supostas na locução “a situação das pessoas” é o nome de uma certa indistinção, ou de um indistinto determinado.
A categoria “pessoas” introduz uma quebra com aquele mapa objetivista composto de entidades e rótulos, de análises e descrições de situações. Usar “as pessoas” como categoria representa um deslocamento rumo ao domínio das decisões.
Precisamos de uma decisão se quisermos renovar ou reinventar a pergunta: o que as pessoas dizem e fazem? (Que dit-on et que fait-on?) Por quê? Se quisermos sair da certa indistinção (do indistinto determinado) e, assim, abrir um espaço para o possível, vamos precisar de instrução, precisamos de uma fórmula. Por exemplo: como devemos falar, hoje, sobre migrantes ou refugiados? Alguns sugerem que falemos sobre “os recém-chegados”, mas na verdade nosso problema é que faltam palavras para a situação. Estamos no domínio, aqui, de “uma certa indistinção” para a qual ainda não encontramos a fórmula precisa. E a fórmula precisa está inextricavelmente ligada ao que está em jogo na pergunta acima mencionada: o que as pessoas dizem e fazem?
Aceitar o “há” e a existência da uma certa indistinção significa afirmar, com relação a migrantes e refugiados, que está sendo buscada uma fórmula. Isso não elimina, é claro, o fato de que as categorizações do Estado também existem. Se usarmos palavras como “migrante” ou “refugiado”, que pertencem ao domínio da linguagem administrativa, não podemos evitar evocar imediatamente práticas e problemas de repressão, detenção ou o possível registro pelo Estado de tais sujeitos como refugiados políticos. O Estado categoriza de acordo com suas próprias lógicas e normas.
Manter que existem pessoas, que isso designa uma certa indistinção, que as pessoas pensam é uma possibilidade. Contudo, preservar essas hipóteses é uma escolha política, não apenas no concernente aos nossos objetivos, mas também porque tais hipóteses esclarecem onde não queremos chegar. Cada uma dessas afirmações pode ser relacionada com a outra na seguinte formulação: distância do Estado.
4
Em relação à questão do subjetivo, argumentei o seguinte:
A política é da ordem do subjetivo.
O subjetivo sem relação dialética com o objetivo, e formulado em seus próprios termos, é o que chamo de pensamento.
Esse pensamento particular, como pensamento, suspende a polissemia central da palavra da qual deriva. Pensar é fundamentalmente atribuir um conteúdo ao pensamento com base em uma palavra, fixá-lo em um uso específico que suspende os deslizes da polissemia. Recordo um trecho de Que Fazer?, de Lênin, no qual ele escreve: “Há política e política”. Há uma política burguesa e uma política social-democrata (proletária, revolucionária). Sobre a grande onda de greves dos anos 1890, ele observa (se me lembro bem) que os trabalhadores ocuparam as fábricas e confrontaram-se com os cossacos, mas isso não foi, estritamente falando, uma instância de guerra de classes porque o que ainda faltava era “a consciência do antagonismo que representavam com relação a toda a ordem social e política existente”. No que diz respeito ao leninismo, suspender a polissemia da palavra “política” foi o gesto que introduziu a fórmula, a prescrição do antagonismo.
Precisamos hoje reexaminar a operação pela qual tais polissemias são suspensas. Quero, portanto, propor dois postulados adicionais em relação à – duas extensões do pensamento em – minha Antropologia do Nome.
Por um lado, a suspensão da polissemia de uma palavra não cancela de forma alguma o fato de que a palavra é polissêmica. Usá-la, então, com tal ou qual valência, ou de acordo com uma prescrição específica, é uma escolha, uma decisão tomada em um contexto no qual a polissemia está e permanece, no entanto, em funcionamento. Por outro lado, a suspensão da polissemia torna a significação escolhida exclusiva em relação aos outros sentidos possíveis de uma palavra. Não no sentido de que eles sejam antagônicos. Pelo contrário, eles são mutuamente exclusivos do seguinte sentido: uma escolha exclusiva/excludente separa “o ponto [de vista] das pessoas” do “ponto [de vista] do Estado”.
Disso decorre o seguinte: no ato de suspender as possibilidades polissêmicas de uma palavra, um pensamento circunscreve seu lugar/situação em relação a outros lugares, e podemos chamar esses espaços disjuntivos e incompatíveis de ‘exclusivos’.
A operação da intelectualidade deste pensamento é uma relação do real, ou seja, é racional. A operação não é de tipo causal ou determinante, trabalhando de trás para frente, das causas em direção aos efeitos, e explicando o como e o porquê de uma determinada situação. O operador intelectual (opérateur d’intellectualité) deste pensamento particular é o ato de decidir sobre uma possibilidade, de decidir que algo é possível: confrontar o real (e a realidade) político de uma situação também é formular uma alternativa possível a ela. Quero insistir neste último ponto, pois estamos tão intelectualmente marcados por uma tradição que sustenta que pensar é apenas formalizar ou sistematizar um conjunto de relações entre causas e efeitos, que se torna difícil aceitar que possa haver qualquer outra forma de pensar uma determinada situação; uma forma de pensar que, em vez de determinar quais fatores criaram a situação e qual é a sua origem, pretenda, antes, dar conta da seguinte proposição: nesta situação, o que emerge como possível?
Quando um barco está afundando e os botes salva-vidas são lançados ao mar, uma das coisas mais difíceis, e mais importantes, é fazer com que os passageiros não pulem diretamente nos barcos, mas ao lado deles. In situ, o possível funciona mais ou menos assim. Falando intelectualmente, não é tão importante, no momento do naufrágio, saber quem estragou o motor do barco, a fim de explicar por que o navio saiu do curso e assim por diante. O possível, aqui, é estritamente circunscrito pela situação e suas circunstâncias, o que elas permitem ou não permitem segundo determinadas regras ou diretrizes. O que está em jogo aqui é um pensamento racional cuja categoria é a do possível.
5
O possível e a política organizada: durante o período em que o grupo Organização Política[7] estava em atividade, o principal ponto de referência para o subjetivo era o que chamávamos de pensamento da política em interioridade. Em 2007, decidimos encerrar a Organização Política. Nossa pergunta agora é descobrir se pode haver um pensamento político sem organização. Ou, melhor ainda, há hoje um pensamento a partir do ponto [de vista] das pessoas que não se desdobre sob os auspícios e constrangimentos de uma organização no sentido em que uma vez argumentei que a única política é a política organizada?
Em seu espaço específico, o Estado é o paradigma de uma forma de articulação do sujeito a uma forma de organização. Nesse espaço específico, subjetividade e organização são inseparáveis: são articuladas e muitas vezes confundidas uma com a outra; dependendo das circunstâncias, um termo (subjetividade, organização) tende a prevalecer sobre o outro. Vemos a mesma coisa no leninismo. Nele, a subjetividade e a organização estão inextricavelmente entrelaçadas. Trata-se da subjetividade da classe trabalhadora e do povo, indexada ao seu potencial revolucionário. No entanto, também aqui, dependendo das circunstâncias, um dos dois termos vence sobre o outro.
Esse paradigma, que articulou subjetividade e organização, levou-me a pensar na Revolução de Outubro. Eu me perguntava se poderíamos dizer que, na Revolução de Outubro, a organização (ou seja o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Russos) foi posta a serviço da subjetividade portada pela massa de trabalhadores e do povo. Tal foi a relação entre organização e subjetividade mesmo quando, já em 1920, esta última se encontrasse exclusivamente a serviço do aparelho do partido-Estado e não a serviço das massas? É claro que os desdobramentos da Revolução de Outubro correspondem ao que chamei de período de burocratização (estatização) da classe trabalhadora, um período em que o lado subjetivo da revolução é inteiramente subordinado ao aparelho de Estado.
Em O que fazer? (1902), o subjetivo é regulado pelo antagonismo fundamental, a contradição, entre a burguesia e o proletariado, bem como pela criação de um partido liderado por revolucionários profissionais. No entanto, o partido era aberto – aberto, por exemplo, em fevereiro de 1917, para os sovietes; estava aberto às invenções das massas, mantendo-se inflexível em pontos de doutrina. O partido conseguiu unir espontaneidade e deliberação. Depois de chegar ao poder, foi o Estado que impôs seus pontos de referência para o subjetivo na agora conhecida forma do Estado Operário, a Pátria do Socialismo.
Eu me pergunto se, visto sob essa luz, o leninismo não poderia ser entendido como uma espécie de curvatura forçada da consciência comunista às restrições e imperativos de uma política comunista: classe, luta e, em seguida, um Estado proletário. Em outras palavras, uma montagem de condições, mas condições limitadas pela doutrina.
A curvatura da consciência aos imperativos do Estado é uma formulação que poderia se aplicar a duas formas pelas quais as classes trabalhadoras foram incorporadas pelo Estado: primeiro, há a forma soviética do partido-Estado na década de 1920; depois, a forma posterior e parlamentar de incorporação da classe trabalhadora, da qual o PCF e o CGTU[8] seriam os principais vetores na França durante o mesmo período.
O espaço do Estado é simultaneamente organizado e subjetivado. Uma parte importante dessa subjetividade estatal tem a ver com o fato de que as questões de ordem e comando que o poder incorpora formam, dentro do espaço do Estado, o lugar inevitável e necessário do pensamento e da subjetivação política. Existem duas formas do subjetivo dentro do Estado que evoluem juntamente com ele. Consideremos dois exemplos. O primeiro é a maneira pela qual a palavra “trabalhador” e a figura do trabalhador desapareceram do espaço do Estado, bem como dos espaços que contaram para e foram contabilizados pelo Estado. Essa eliminação da palavra “trabalhador” intensificou-se nos anos 1980, sob Mitterand, especialmente durante as greves de trabalhadores automotivos nas fábricas da Citroën e da Renault. Na época, essas greves foram descritas como greves “xiitas” lideradas por “imigrantes que eram completamente ignorantes das realidades sociais e culturais francesas”. A partir daí, já não poderia ser, do ponto de vista do Estado, uma questão de greves operárias, mas sim de greves religiosas realizadas por imigrantes e estrangeiros. O que ocorreu nesse deslizamento foi a eliminação literal da palavra “trabalhador” e sua substituição pela palavra “imigrante”, agora não mais compreendida como uma presença cultural positiva, mas como um “problema”. Essa confessionalização dos trabalhadores de origem imigrante no setor da indústria pesada permitiu efetivamente o seu desaparecimento como sujeitos com direitos. Assim, passamos de uma figura objetiva dotada de direitos para uma identidade ameaçadora e sinistra. Esse processo de confessionalização da figura do trabalhador na linguagem do Estado (passando de “trabalhador” para “trabalhador imigrante”, até culminar no “imigrante” tout court) aplicou-se, além disso, não apenas aos trabalhadores, mas também aos estudantes do ensino fundamental e médio. Para as meninas que usavam o véu, ou para os jovens das banlieues que muitas vezes também eram “confessionalizados” de acordo com os mesmos termos estigmatizantes empregados pelo Estado. Aquele horrível clichê burocrático, jovens descendentes de imigrantes – usado para descrever jovens cidadãos franceses cujos pais ou avós trabalhadores vieram do exterior para trabalhar na França e se estabeleceram lá com suas famílias – opera de modo similar. Colocado de forma simples, “descendentes de imigrantes” significa: “seus pais eram estrangeiros”. O que conduz a: seus pais eram muçulmanos de classe trabalhadora. Então, a expressão “jovem descendente de imigrantes” é parte de um amplo campo de operações que consiste em não mais evocar a palavra “trabalhador”, em deixar de contá-la como uma figura da identidade nacional.
De maneira semelhante, uma vez que o Estado conseguiu se apropriar da expressão “Eu sou Charlie”[9], ela se tornou também um tipo de exemplo dos processos pelos quais o Estado produz sujeitos, pelos quais solicita adesão aos seus projetos e formas de segurança e governança. O que vimos ali foi um procedimento pelo qual a questão da separação entre igreja e Estado foi irredutivelmente ligada a um terrível ataque criminoso, assim como à responsabilidade do Estado em identificar e prender os responsáveis.
No que diz respeito à situação atual na França, eu argumentaria que o Estado hoje é uma forma do que eu chamo de Estado separado (l’État séparé) e que essa tem sido a forma do Estado há pelo menos uma década ou mais. Como prova triste desse fato, basta olhar para a maneira como os direitos dos imigrantes – e especialmente o direito à regularização – têm evoluído na França desde a década de 1990 até a conjuntura atual. Na década de 1990, cada ano que tinha sido gasto trabalhando sem papéis, ou com papéis falsos, contava e formava a base do dossiê de regularização do trabalhador. Hoje, tais documentos simplesmente desqualificariam o dossiê de regularização e, de fato, exporiam o trabalhador a riscos legais. Ano após ano, uma série de leis transformou o processo de regularização em uma decisão dependente das administrações locais. Pouco a pouco, a antiguidade no local de trabalho deixou de contar como fonte de direitos. Em certa época, nós construímos uma luta a favor da proposta de que “o trabalho significa direitos” / “o trabalho nos dá direitos” (le travail ouvre à des droits). No Agrupação dos Coletivos de Trabalhadores Indocumentados (Rassemblement des collectifs des ouvriers sans papiers des foyers), proclamamos que o trabalho tem um status legal-judicial. Todo trabalhador é uma figura do trabalho. Organizamos uma série de manifestações entre 1995 e 2007, durante as quais contávamos: “Os trabalhadores importam”, “O trabalho importa!”, “Papéis para os Indocumentados!” e “Estamos aqui, somos daqui!”. Tomadas em conjunto, cada medida legislativa ou regulamentar aprovada desde o início do novo milênio pode ser vista como uma negação direta de cada um dos princípios pelos quais lutamos nas ruas.
Embora não nos encontremos mais em um paradigma de classe vs. classe, continuo a insistir que o classismo burguês, isto é, o classismo estatal, forma o referente fundamental para oposições binárias como ricos/pobres, centro/periferia, elites/banlieues, e assim por diante. Não é que tais oposições não existam (os ricos certamente existem, assim como os pobres, assim como as desigualdades…); o problema é que esse tipo de pseudo-classismo é, em última instância, uma deslocamento falso e enganoso das contradições de classe, enquanto nossa situação é muito diferente daquelas do passado. Em sua formulação marxista, a história da humanidade é a história da luta de classes. Atualmente, no entanto, ocorre uma mudança tal que podemos dizer que a história da humanidade é a história das desigualdades. Que há processos históricos efetivamente gerados pelas desigualdades não há dúvida, mas isso não ocorre de forma alguma dentro do espaço prévio ou principal da luta de classes. Do ponto de vista marxista, a luta de classes era inicialmente um sinônimo do poder ou do potencial político do proletariado, entendido como a base de apoio para uma revolução, para uma sociedade sem classes e para a desaparição do Estado. A luta de classes não era simplesmente uma questão de diferenças ou oposições, não indicava apenas a existência dos ricos e do poder, dos oprimidos e dos opressores.
O classismo baseou-se em uma análise de grupos formados por classes posicionadas em uma relação de luta de classes (alguns afirmavam que, com o apoio do proletariado, o fim do Estado e das classes estava ao alcance; outros mantinham, como Keynes, por exemplo, que estavam “do lado do Capital, e a burguesia sempre os encontraria ao seu lado”). O fato de haver oposições não é suficiente para indicar a natureza de certas tensões, processos ou as diferentes trajetórias possíveis das coisas. Vivemos em uma era em que somos constantemente informados e lembrados da natureza extraordinariamente difícil e dramática de certas situações – como a dos refugiados, por exemplo. Que perspectivas, quais possibilidades, podem se abrir diante de nós é, no entanto, algo desconhecido e complexo. Existem pobres e ricos: há uma tensão inegável aqui, mas o que produz essa tensão é hoje uma questão em aberto.
6
Da mesma forma que os termos “luta de classes” e “revolução” perderam consistência com arrefecimento da revolução, as palavras “guerra” e “paz” encontraram-se vazias. Isso é igualmente verdadeiro quando se trata das pessoas e do Estado.
Para Clausewitz, o objetivo da guerra era fazer com que o vencedor impusesse suas condições de paz sobre o derrotado.
A tese internacionalista sustentava que a figura do proletariado global carregava dentro de si, juntamente com o socialismo, a perspectiva de paz universal. Se o proletariado chegasse ao poder em cada país do mundo, a paz reinaria. Por anos, o Partido Comunista Francês chegou até a subordinar as lutas pela independência nacional em espaços colonizados aos imperativos de trazer o socialismo para a França, que então emanciparia toda a população dominada pelo imperialismo francês. Um momento essencial do colapso da Internacional Proletária, juntamente com a União Sagrada de 1914, ocorreu com o pacto de não agressão Molotov-Ribbentrop entre os nazistas e a União Soviética em agosto de 1939. No Diário de Brecht, encontramos a seguinte página impressionante sobre o que esse desastre completo significou para o proletariado, bem como para as forças progressistas em todo o mundo. Ele escreve:
O pacto germano-soviético naturalmente alarmou o proletariado. Os comunistas se apressaram em afirmar que o pacto representava uma contribuição perfeitamente respeitável em prol da manutenção da paz. É verdade que pouco depois, algumas horas mais tarde, a guerra eclodiu […] e a União Soviética se apresentou diante do proletariado global com todas as marcas de ter ajudado e a disseminação do fascismo, essa parte mais viciosa e mais anti-operária do próprio capitalismo. A União Soviética se salvou deixando, como preço por sua salvação, o proletariado sem direção, sem esperança e sem ajuda: acredito que não há mais nada a dizer.[10]
Quais são as valências de palavras como “guerra” e “paz” hoje nos espaços de poder? O que eles significam para as pessoas? Como podemos nos libertar dos desvios aos quais estão submetidas atualmente? Devemos examinar e nos perguntar sobre a lacuna fundamental que separa o léxico da subjetividade do Estado (ou seja, imposto de fato pelo Estado) e a linguagem da subjetividade, que é a das pessoas.
O Estado continua sendo um desafio importante: quais são suas formas atuais, suas contradições internas, as tensões entre o nacional e o internacional, entre a lógica dos mercados e o bem geral…? Essas são, é claro, questões analíticas, mas também precisamos pensar (sobre) o Estado a partir do ponto de vista das experiências das pessoas com ele. Em seu estudo sobre política em Roma e Atenas, Moses Finley cita a seguinte observação de Harold Kaski: “O cidadão só pode acessar o Estado por intermédio governo […]. Ele tira suas conclusões sobre a natureza do Estado a partir da natureza da ação governamental; não há outra maneira para ele saber [o que é o Estado]”.[11] Um Estado, visto do ponto de vista do que Finley chama de cidadão, é o que o governo faz.
Com relação à nossa análise do Estado hoje, tenho mantido que, do lado dos trabalhadores, a luta contra o capital já não tem muita consistência conceitual. Trabalhadores como agentes políticos que realizam uma luta praxeológica (praticando um antagonismo) com o capital – essa moldura das coisas pertence a uma era passada. E ainda assim, existe um antagonismo por parte do Estado em relação ao que é heterogêneo ou oposto a ele. Visto assim, é o Estado como tal que coloca em prática e desenvolve o antagonismo, a luta. Lá onde há multidão, há necessidade de ordem, comando e violência. Há, portanto, necessidade do Estado. A luta de classes já não tem a consistência política que tinha antes. O que resta é apenas a luta do Estado, antagonismos criados e disseminados pelo Estado. O que predomina nos debates atuais sobre a natureza do Estado é principalmente a natureza das relações entre a economia e o Estado.
Eu discordo da ideia de que a burguesia e o capital são subordinados ao Estado. Temos uma tendência a associar o capital à propriedade privada, à lei do valor, ao dinheiro – com a compreensão, é claro, de que o Estado está envolvido em tudo isso. Mas não poderíamos imaginar o cenário oposto? Ou seja, que a propriedade e o dinheiro são criações do Estado? Que é o Estado, de fato, que cria a economia e suas diferentes formas?
Quero opor à tese “o Estado se curva às leis do capital” a seguinte proposição: o Estado não deriva da economia, mesmo que seja o Estado que crie as dinâmicas envolvidas na criação e circulação do dinheiro e do mercado. A ordem do Estado co-dirige a da economia.
E assim, volto ao ponto de partida: singularidades subjetivas.
O problema hoje é que não é possível considerar as pessoas como um sujeito, nem a política em termos de organização. Essa maneira de pensar a política é completamente e exclusivamente parlamentar: ela vê os sujeitos como eleitores, e cada partido parlamentar como o local essencial e inevitável para as formas de organização. Na conjuntura atual, não acredito que haja realmente muito a ganhar com formas não estatistas de organização. A organização hoje em dia só acontece em espaços do estado.
Hoje, o perecimento da categoria de revolução e do antagonismo proletário requer uma reinvenção completa do que entendemos pela categoria do subjetivo. A noção de “singularidades subjetivas”, no modo da política em interioridade, foi também um agente de historicidade. Não é por acaso que quando elaborei o conceito, falei também de um modo histórico de política: houve uma singularidade subjetiva e pude identificar o que ela implicava, indicar quando começou e quando terminou. Então, levantemos ou abramos a questão: existem singularidades subjetivas além dos modos históricos de política? Seremos capazes de procurar outras modalidades para o subjetivo, localizá-lo em outros modos ou formas? Seremos capazes de dizer o que uma nova forma de singularidades subjetivas pode ser capaz de fazer em termos de abertura a outras possibilidades e processos? Quando o modo histórico da política não reivindicar mais um monopólio sobre as singularidades subjetivas a partir do ponto [de vista] das pessoas, ele será simplesmente uma das formas dessas últimas. Uma forma organizada. Em Antropologia do Nome, o trabalho de novação foi atribuído a modos históricos de política, a seus locais, qualidades e qualificação. Mas o que significaria dizer que “as pessoas pensam” em nossa conjuntura atual, em um período em que não há política em interioridade? É possível para nós imaginarmos uma categoria de subjetivo sem organização?
Conclusão. O Subjetivo sem Organização
Em toda decisão política, há sempre uma dimensão existencial, sempre há questões importantes de significado. A principal questão é a de determinar o que fundamenta a decisão. A decisão é individual. Mas no espaço de uma organização política, a decisão inicial consiste no ato de se reunir e aderir à linha. No entanto, se o subjetivo, hoje, é sem organização, onde estamos em relação à decisão? Se a organização estava na ordem de um “nós”, qual seria o status do subjetivo sem um “nós”? Assim, passaríamos para o registro ou domínio de um “eu”, um “eu” heterogêneo e múltiplo. De qualquer forma, o “nós” de uma política em interioridade nunca foi um dado incondicional, mas um “nós” que surgiu em determinadas condições. Voltando à minha formulação da questão, “as pessoas pensam” foi, nesse sentido, um “nós” condicional (un nous sous conditions). Na Agrupação de Coletivos de Trabalhadores Indocumentados e na Organização Política, o princípio geral que orientava e estruturava cada uma de nossas reuniões era o seguinte: cada um fala em seu próprio nome e a política é o que compartilhamos entre todes. O que tínhamos em comum era uma política a partir do ponto [de vista] das pessoas. Foi isso que fundamentou ao mesmo tempo o “nós” subjetivo e organizacional desses grupos.
Durante aquele árido período que se estendeu para mim desde o fechamento da Organização Política, em 2007, até os dias atuais, eu formei, juntamente com um punhado de amigos da OP – pessoas que ainda estavam militando ativamente na política, agora de uma forma diferente – um pequeno grupo chamado Les Quelques-uns (Os Qualquer Um). Cada um de nós fala e age em seu próprio nome. O mesmo vale para nossas intervenções: alguns começaram a trabalhar com albergues para trabalhadores, outros com menores estrangeiros sem família na França, outros com famílias romani, outros em bairros e cidades proletárias e empobrecidas em Paris e seus arredores, etc. Dizer que cada um fala e age em seu próprio nome não é uma banalidade. Promovemos pequenas reuniões que, em vez de colocar em prática um “nós” organizado, davam espaço para uma pluralidade de subjetividades individuais.
Então, se não há mais uma política em interioridade e não há mais nenhum “nós” além da fantasia de um sujeito coletivo, onde estamos em relação ao que as pessoas pensam, em relação ao pensamento das pessoas? O pensamento é condicional à capacidade de formular/formalizar o que o constitui, em sua opinião, como pensamento. Para voltar ao “eu”, a condição que permite a um “eu” pensar algo é, afirmo, a alteridade. O que fundamenta a alteridade é a aceitação pelo “eu” de que o outro, o “ele/ela”, também é outro “eu”. Portanto, nomearei o pensamento político como a existência de um terceiro lugar (un tiers lieu) proposto ou apresentado pelo “eu” como uma forma de compatibilidade que liga o “ele” ou o “ela” a este “eu”. “Ele/ela” é outro “eu” e meu próprio “eu” por sua vez tem o status de um terceiro – um “ele” – para este “ele/ela”. Esse outro, esse “ele/ela”, age como uma poderosa interpelação do “eu”. Tome, por exemplo, o caso da palavra “migrante” e da linguagem da terceira pessoa, do “eles” ou “eles/as”, que sempre introduz e cerca o migrante: eles, os clandestinos; eles, os sem documentos; eles, o potencial terrorista, o refugiado, a pessoa que escapa da fome, o desempregado, o sobrevivente do desastre ao cruzar o Mediterrâneo, a pessoa à mercê dos outros, eles os vitalmente vulneráveis e ameaçados. E as respostas a este “ele/ela” ou estes “eles/as” variam de “mandem todos de volta” a “são alguém que eu ajudarei absolutamente “. Fica evidente que o “ele/ela”, aqui, está à mercê de um “eu” que faz tais afirmações. Eles dependem disso.
O “nós” organizado levou em conta a alteridade? Em seu próprio espaço, certamente. E ainda assim, há uma diferença real e fundamental que separa a organização que fornece categorias e um idioma comum para pensar a alteridade e ter que dar conta desta por si mesmo. Podemos transferir, então, o pensamento do “nós” de uma política em interioridade para um “eu” condicionado pela alteridade? Em outras palavras, se admitirmos a hipótese de um “eu” e de um “ele/ela”, é possível localizar uma categoria operativa do sujeito em seus próprios termos, sem nenhuma forma de organização? A multiplicidade de “eus” e de alteridades pode abrir outra forma de pensar a política? As subjetividades podem ser apreendidas como o espaço em que o trabalho ocorre entre os “eus” e os outros. Fazer com que outros se tornem “eus” pode produzir um pensamento político? Há algo complicado em nossa situação, porque os recentes movimentos de massa e mobilizações não parecem dispor de nenhum poder aparente além de intensificar as respostas repressivas do Estado.[12] Isso levanta a questão da relação entre subjetividades e mobilização, e da própria natureza de um Estado que se recusa a ouvir o que é dito nas ruas. Atualmente, ninguém leva a sério a ideia de que possa haver alternativas, ou de que o Estado possa ter em conta as proposições formuladas e apresentadas pelo povo. Então, o que deve ser feito em tal situação? Esta é a própria questão da distância em relação ao Estado. Existem posições servis disponíveis, posições de aquiescência e adesão ao Estado. Quais são as subjetividades associadas a essa aquiescência? A adesão à ordem, mesmo que a ordem seja criminosa? Ao Estado como garantidor da riqueza nacional? Essa aquiescência é motivada pelo interesse pessoal disfarçado de defesa da lei e da ordem? O que devemos propor, em vez disso, é a criação de um espaço a uma distância lateral do Estado. Como eu disse anteriormente, há o Estado e é o que é. E ainda assim eu posso estar a uma distância dele e encontrar formas de criatividade, formas de inventividade e inspiração a partir do ponto de vista das pessoas. Em jogo aqui está o espaço de uma positividade possível em relação a uma instituição que é ao mesmo tempo temível e formidável. A falta de alternativas para o Estado hoje não é uma fraqueza, nem um ponto cego. É simplesmente uma maneira de dar conta, descrever uma experiência: as grandes visões opostas do estado, a do socialismo comunista e a do parlamentarismo social-democrata, perderam o fôlego.
Para concluir, eu gostaria de retornar ao tempo que passei com os Coletes Amarelos em 2018-19, um aprendizado que deixou uma marca profunda em mim e que eu continuo carregando fervorosamente comigo hoje. Ser um entre outros é algo que eles me ensinaram em particular, junto com a paciência atenta para ouvir o outro e, mais importante ainda, ouvir o que cada pessoa diz, ouvir o que elas pensam, o que elas esperam, o que elas estão preparadas para fazer.
Em novembro de 2019, Moritz Herrmann e Jan Philipp Weise me convidaram para dar uma palestra em Frankfurt por ocasião da tradução alemã da minha Antropologia do Nome. Eu intitulei essa palestra de “Podemos colocar um colete amarelo na Antropologia do Nome?”. Aqui está o que eu disse na época:
Os Coletes Amarelos afirmam que o governo, que se considera constitucionalmente legítimo, é imoral tanto em termos das decisões que tomou quanto em sua execução. Seu discurso é de mendacidade e corrupção. Eles estão tentando nos enganar, como os Coletes Amarelos dizem. Essa imoralidade, além disso, é incorporada na violência policial e judicial à qual eles foram submetidos durante seus protestos.
Para aqueles que eu conheci, a imoralidade do uso de poder em questão o deslegitima. À legitimidade constitucional, judicial, mas imoral do poder, os Coletes Amarelos opõem a legitimidade moral de sua mobilização. O que está em jogo é um conflito de legitimidades, e, em minha opinião, a violência usada pelos poderosos pode ser em grande parte explicada pela maneira como sua legitimidade moral foi questionada. A questão da moralidade, aqui, não é nem religiosa nem filosófica. O que está em jogo são valores e princípios. Fundamentalmente, levar em conta a experiência real e vivida das pessoas e respeitá-la – esse é o princípio essencial para eles. Também é contar a verdade sobre o que está acontecendo com eles. Como o refrão de uma de suas músicas dizia: “aqui estamos, mesmo que Macron queira nos empurrar para longe, estamos aqui pelos/trabalhadores e por um mundo melhor”.
Embora a ausência de estruturas centralizadas e homogêneas e a organização deste movimento tenham sido objeto de algumas reservas e críticas, eu acho essa qualidade essencial para o movimento. O que está sendo apresentado ao governo não é uma organização, mas um princípio: nossas vidas são dignas de respeito e devem ser respeitadas. A vida das pessoas importa, elas contam. A ausência de estruturas é um sinal da novidade dos Coletes Amarelos: o que se encontra ali é uma forma de distância e rejeição da dimensão estatal de toda organização, que se concentra simbolicamente em forças de centralização e na figura de líderes. Mas, para abrir um diálogo com uma organização, o Estado precisa ser capaz de identificar líderes, precisa de porta-vozes reconhecíveis e interlocutores legítimos. Contudo, os Coletes Amarelos suspeitaram, ou intuíram, que toda organização é estatal (toute organisation est étatique). Sua proposta não é anarquista. Eles não propõem nem conselhos nem comunalismo. A única teoria que eles apresentam sobre o poder é a de sua corrupção e da imoralidade dos agentes do poder.
A experiência que tive com os Coletes Amarelos é um ponto de referência para mim. Algum dia ela se tornará uma crônica do presente, quando algo proveniente do lugar onde as pessoas estão conseguir pegar e levar adiante o que os Coletes Amarelos tornaram possível. Esperei até 2008 para escrever minha crônica de Maio de 68, depois de experimentar a criação de duas organizações militantes diferentes, ambas inicialmente concebidas como maneiras de aprender a lição de Maio de 68: como argumentamos na época, o que faltava em 68 era uma organização com uma visão abrangente e uma doutrina política coerente. Quando o momento presente chegar ao fim, poderei escrever não tanto uma crônica do movimento dos Coletes Amarelos, mas uma crônica do que eles conseguiram abrir, do que eles conseguiram testemunhar, para um tempo que ainda não chegou. Para alguém da minha geração, ainda há esperança.
Tradução: Chat GPT. Revisão: Máquina Crísica.
Bibliografia
Aulard, Alphonse 1901, Histoire politique de la révolution française: origines et développement de la démocratie et de la république (1789-1804), Paris: Armand Colin
Bloch, Marc 1933, Apologie pour l’histoire, Paris: Armand Colin
Brecht, Bertolt 1976, Journal de travail. 1938-1955, Paris: L’Arche
Clastres, Pierre 1974, La Société contre l’État. Recherche d’anthropologie politique, Paris: Minuit
Finley, Moses 1985, L’Invention de la politique, Paris: Flammarion
Keynes, John Maynard 1933, “Am I a Liberal?”, in Essais de persuasion, Paris: Gallimard
Laski, Harold 1935, The State in Theory and Practice, New York: Viking Press
Lazarus, Sylvain 1996, Anthropologie du nom, Paris: Seuil
Lefebvre, Georges 1951, La Révolution française. Paris: PUF (1957). Mathiez, Albert 1939, La Révolution française, Paris: Armand Colin
[1] Lazarus, 1996
[2] Aulard 1901; Mathiez 1939; Lefebvre 1951 & 1957
[3] Ver Clastres, 1974.
[4] Keynes, 1933.
[5] Lazarus, 1996, p. 11.
[6] Bloch, 1993, p. 95.
[7] Organização militante pós-partidária que Lazarus ajudou a fundar nos anos 1980.
[8] A CGTU (Confédération Générale des travailleurs unifiés) foi um ramo da CGT que tinha profundos vínculos com o Partido Comunista Francês (PCF) e a Internacional Comunista.
[9] Slogan que circulou amplamente após o massacre de vários membros da equipe editorial do jornal satírico Charlie Hebdo pelas mãos de integrantes do Estado Islâmico em janeiro de 2015.
[10] Brecht, 1976, p. 47.
[11] Finley 1985, p.30. Laski 1935, pp.57-58.
[12] Pensemos, por exemplo, no movimento dos Coletes Amarelos, nos protestos de 2017-2018 contra a reforma das idades de aposentadoria ou nas formas de cuidado, solidariedade e ação durante a primeira onda de confinamento decorrente da pandemia de Covid 19 em 2020.
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