Geral Marx e nós(otros)

Sobre o pensamento de Gramsci

Por Louis Althusser (Carta à Revista Rinascita, 1967)

Apresentação: Laurent Lévy e Panagiotis Sotiris

Tradução: Vinícius Cruz

Se quisermos “salvar” o que o “historicismo” de Gramsci contém de autêntico, devemos a todo custo evitar comprometê-lo nas ideologias relativistas do conhecimento, que pensam ter explicado um conteúdo teórico objetivo (conhecimento científico verdadeiro ou tese filosófica correta) reduzindo-o apenas às suas condições “históricas”.

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A relação de Louis Althusser com Gramsci sempre foi complexa e ambivalente. Gramsci, um verdadeiro gênio político, representava também um verdadeiro adversário filosófico para Althusser. O historicismo integral, a fusão entre verdade e prática, a ambiguidade do marxismo entre ciência e religião – esses elementos estavam em oposição com o projeto althusseriano. Esta carta inédita para a principal revista comunista italiana representa uma condensação brilhante dessas questões teóricas. Escrita em 1967, no auge das controvérsias teóricas entre os comunistas, ela é introduzida por Laurent Lévy e Panagiotis Sotiris, que iluminam o contexto e todas as implicações na trajetória de Althusser. Esse intercâmbio marca, em todo caso, não apenas rupturas filosóficas, mas também convergências inesperadas do lado de um materialismo do encontro, atento às conjunturas, às configurações complexas e ao primado das relações de força na luta de classes.

Apresentado por Laurent Lévy e Panagiotis Sotiris

Na sua edição de 1º de dezembro de 1967, a revista teórica do Partido Comunista Italiano (PCI) “Rinascita” publicou, sob a assinatura de Rino Dal Sasso, uma revisão crítica de um artigo de Louis Althusser intitulado “O marxismo não é historicismo”[1]. Em 11 de dezembro de 1967, Althusser enviou uma resposta a Luciano Gruppi[2], membro do comitê editorial, que ele próprio descreve como uma “carta rápida” de “caráter muito resumido e esquemático”, mas que considera digna de ser publicada nas colunas da prestigiosa revista. A revista de fato a publicou uma tradução italiana em sua edição de 15 de março de 1968, sob o título “Uma carta sobre o pensamento de Gramsci”, juntamente com outras contribuições para o debate assim aberto[3], atendendo em certo sentido ao desejo do autor, que concluiu seu texto dizendo: “Eu ficaria feliz se nossos camaradas italianos, que conhecem bem Gramsci […], contribuíssem para esta reflexão, cuja importância não pode escapar a eles”.

Antes de publicá-la, a direção do PCI enviou a carta de Althusser a Roland Leroy, responsável pelos intelectuais na direção do Partido Comunista Francês (PCF), que a comunicou em 15 de janeiro de 1968 aos membros do secretariado de seu partido: Waldeck Rochet, Georges Marchais, René Piquet, Gaston Plissonnier e André Vieuguet, dizendo-lhes: “A delegação do Partido Italiano sobre os problemas ideológicos e culturais me enviou a carta anexa dirigida pelo camarada Althusser ao camarada Gruppi, que publicou um artigo crítico na revista Rinascita. A leitura desta carta é interessante”. É este documento, cuja leitura apresenta, de fato, interesse em mais de um aspecto, que publicamos aqui em seu texto original – até hoje inédito em francês.

Para além da utilidade, em termos gerais, da publicação de um texto inédito de Althusser, seu primeiro interesse é que ele esclarece de forma clara e incisiva sua crítica à concepção gramsciana da filosofia. Outro interesse é o lugar deste texto no reajuste de sua reflexão sobre a filosofia, que vai muito além do aspecto estritamente polêmico desta resposta às críticas. Mas outro interesse, que merece algumas palavras, é o lugar deste texto nas reflexões realizadas há vários anos dentro do PCF sobre questões de filosofia. É notável que um texto como esse tenha sido encontrado nos arquivos da direção de um partido político e enviado a seus principais responsáveis, nem todos versados em discussões filosóficas, com a seguinte observação: “a leitura desta carta é interessante”. O interesse em questão, mesmo que o texto não tenha dimensão estritamente política, é aqui um interesse político.

Para entender esse aspecto, é preciso lembrar o contexto ideológico interno do PCF no momento da redação desta carta. Após a publicação dos primeiros textos de Althusser em La Pensée, que forneceram a matéria essencial de seu livro Pour Marx, uma discussão se iniciou entre os filósofos comunistas, à qual a direção do partido prestava a maior atenção. As concepções desenvolvidas por Roger Garaudy, filósofo membro do bureau político do partido, estavam em questão; algumas teses começavam a ser fortemente criticadas, onde se cruzavam questões mais ou menos estritamente políticas e questões mais propriamente teóricas, uns e outros acusando Garaudy de um certo “revisionismo”. Muitos apoiavam-se, em meio aos debates, nos trabalhos de Althusser, mesmo quando, de outra forma, criticavam este último pelo que viam como “dogmatismo”. Enquanto Garaudy desenvolvia a ideia de que o marxismo era antes de tudo um “humanismo”, Althusser respondia que o conceito de “Homem” era radicalmente estranho ao marxismo, que até mesmo poderia se definir como um “anti-humanismo teórico”. Embora as premissas teóricas dessa fórmula parecessem aceitáveis para muitos filósofos comunistas, ela aparecia para o próprio partido e sua liderança como inaceitável do ponto de vista político: por mais que isso pudesse ser sustentado teoricamente, lhes parecia impossível não se dizerem “humanistas”, ou seja, militantes em luta pela felicidade da humanidade. Assim, jogava-se no partido comunista uma espécie de bilhar de três tabelas, alguns atacando as posições filosóficas de Althusser para apoiar as posições políticas de Garaudy, outros atacando as posições teóricas de Garaudy sem se referirem explicitamente às de Althusser, por desconfiança não apenas em relação aos efeitos políticos supostos de suas formulações teóricas, mas também das posições políticas que lhe eram – ainda que de maneira errônea – prontamente atribuídas de complacência com o maoísmo. Entre essas atitudes, havia todo um jogo de atitudes intermediárias, cuja ilustração poderia ser a proposta lançada aqui ou ali sugerindo jogar os dois teóricos um contra o outro, a fim de condenar, no final das contas, Garaudy por “oportunismo de direita” e Althusser por “oportunismo de esquerda”, ou seja, as duas acusações clássicas no movimento comunista para isolar os contestadores.

Esses debates político-filosóficos foram particularmente intensos em 1965-1966, entre a publicação de Pour Marx e a reunião da importante sessão do Comitê Central de Argenteuil dedicada em março de 1966 aos problemas ideológicos e culturais[4]. E não é exagero dizer que Argenteuil marca o fim da dominação de Garaudy sobre o pensamento filosófico dentro do aparelho diretivo do PCF, e que os trabalhos de Althusser contribuem essencialmente para isso. Não que a direção opte por Althusser contra Garaudy – ela se esforça, ao contrário, para manter uma aparência de equilíbrio entre os dois –, mas os golpes desferidos contra as concepções de Garaudy são mais fortes: Garaudy será expulso três anos depois do PCF, enquanto Althusser permanecerá membro, mesmo através de posturas oposicionistas, até o fim de seus dias[5].

Um tema significativo do texto publicado aqui, o qual podemos especular que Althusser só enfatiza no contexto desses debates internos ao Partido Comunista, é a filosofia marxista como “concepção de mundo”. Esse tema é, de fato, um daqueles que, por meio de seu uso contra Garaudy, sancionou a vitória ambivalente dos althusserianos em Argenteuil. Onde Garaudy queria ver no marxismo uma “metodologia da iniciativa histórica”, Waldeck Rochet[6] enfatiza que ele é “uma concepção de mundo e um método para a ação”. É tanto mais significativo que Althusser retorne aqui a essa fórmula, uma vez que seu texto não é, a priori, destinado à publicação, e só deveria ser publicado, na melhor das hipóteses, em italiano, como breve contribuição a um debate sobre Gramsci. Se ele se apega a formulações admissíveis pela direção do Partido Comunista francês, é, portanto, sem dúvida por razões estratégicas fundamentais. Mas ele o faz sem nenhum servilismo, pois tende, pelo contrário, a precisar as coisas e a não retomar incondicionalmente a fórmula “oficial” de Rochet: afirmando a importância filosófica das “concepções do mundo”, ele se atém à recusa, que já expressou em outros lugares, de assimilar essas últimas à filosofia em si.

Outro aspecto essencial deste texto, porque diz respeito ao seu próprio objeto, é que ele é dedicado à interpretação crítica de Gramsci, enquanto Gramsci era precisamente um autor enfatizado por Garaudy – e abordado pelos líderes do PCF com uma espécie de desconfiança eivada de ignorância em relação à sua obra. De certa forma, através da referência a Gramsci, aflora a natureza das relações entre o PCF e o PCI, misturando fascinação e irritação do lado francês. Nas discussões do movimento comunista internacional da época – anterior ao surgimento do eurocomunismo – o PCF é quase sistematicamente hostil à abordagem italiana, seja em sua visão do stalinismo e das realidades soviéticas, seja em sua abordagem da questão chinesa. Isso significa que Althusser está pisando em terreno incerto.

Sua relação com a obra de Antonio Gramsci sempre foi complicada, e não é inútil rastrear seu percurso até esta carta – um percurso que continuará nos anos seguintes. Através de sua correspondência, sabemos que ele descobriu Gramsci (ao mesmo tempo que a Itália) enquanto se preparava para sua aula sobre Maquiavel. Ele conta essa descoberta em uma carta para Franca Madonia, de janeiro de 1962:

“Eu escrevo, com uma escrita forçada, sobre Maquiavel, coisas forçadas para dizê-las em um discurso que terá todas as aparências externas de liberdade! A razão de Maquiavel, por que estou falando disso? Porque senti, quando decidi falar sobre isso, algo que estava ao meu alcance, algo que “me falava”, onde eu encontrava memórias, […] e depois a facilidade que eu havia encontrado em Gramsci.”[7]

Alguns meses depois, Althusser trabalhava no texto que seria publicado sob o título “Contradição e Sobredeterminação”. Não é sem importância que Althusser, naquilo que constitui a primeira versão de sua concepção original de um materialismo histórico não teleológico, de desigualdade e de sobredeterminação, se refira a Gramsci de maneira muito positiva. Para Althusser, é precisamente Gramsci quem oferecia a possibilidade de uma teoria da eficácia das superestruturas:

“Algumas observações importantes precisam ser feitas sobre a teoria da eficácia específica das superestruturas e outras “circunstâncias”. Ela ainda precisa ser em grande parte elaborada; e antes da teoria de sua eficácia, ou ao mesmo tempo (pois é a partir do reconhecimento de sua eficácia que se pode atingir sua essência), a teoria da essência própria dos elementos específicos da superestrutura. Essa teoria continua sendo, como o mapa da África antes das grandes explorações, um domínio reconhecido em seus contornos, em suas grandes cadeias e grandes rios, mas, na maioria das vezes, desconhecido em seus detalhes, exceto por algumas regiões bem definidas. Quem, desde Marx e Lênin, realmente tentou ou continuou a explorar isso? Eu só conheço Gramsci.”[8]

Althusser adiciona aqui uma nota para precisar a importância de Gramsci e, em particular, da noção de hegemonia, lamentando que Gramsci não tenha na França verdadeiros discípulos para continuar seu trabalho.

“As tentativas de Lukács, limitadas à história da literatura e da filosofia, parecem estar contaminadas por um hegelianismo vergonhoso: como se Lukács quisesse se redimir perante Hegel por ter sido aluno de Simmel e Dilthey. Gramsci é de outra estatura. Os desenvolvimentos e as notas de seus Cadernos do Cárcere abrangem todos os problemas fundamentais da história italiana e europeia: econômicos, sociais, políticos e culturais. Encontra-se ali visões absolutamente originais e por vezes geniais sobre esse problema fundamental das superestruturas, que é tão importante hoje em dia. Encontra-se também, como se deve encontrar em verdadeiras descobertas, novos conceitos, por exemplo, o conceito de hegemonia, notável exemplo de um esboço de solução teórica para os problemas da interação recíproca[1]  entre o econômico e o político. Quem foi capaz de retomar e prolongar, pelo menos na França, o esforço teórico de Gramsci?”[9]

Essa referência é muito importante. Althusser, neste momento crucial da evolução do seu pensamento, achava que Gramsci era o único a ter abordado as questões da sobredeterminação e que a noção de hegemonia poderia ser a solução para os problemas de um materialismo histórico anti-metafísico e anti-teleológico. No entanto, algo muda em 1965 no contexto da preparação do seminário Ler o Capital. Esse movimento de mudança pode ser visto em uma carta para Franca Madonia de março de 1965:

“Eu não perco a esperança de começar um livro importante sobre filosofia marxista, no qual, infelizmente, terei que explicar minha posição para meus amigos italianos “dellavolpianos” e outros, e, como não poderia ser diferente, com Gramsci ele mesmo[10] (que disse muitas bobagens no campo propriamente filosófico, bobagens que tiveram muitos descendentes: pessoalmente é um ganho muito recente entender claramente em que consistem essas bobagens, onde elas estão precisamente localizadas e quais são suas consequências, que são extremamente importantes).”[11]

Na mesma carta, ele enfatiza o respeito político que tem por Gramsci, apesar de sua posição muito crítica em relação à filosofia:

“O desrespeito que tenho por Gramsci é puramente filosófico, porque ele era um mestre de espírito, incomparável em seu discernimento teórico no campo da história, e ninguém chega aos seus pés nesse campo”.[12]

Esta mudança de posição é refletida precisamente na seção “O marxismo não é um historicismo” do capítulo de Ler o Capital escrito por Althusser – cuja publicação no Trimestre desencadeou a polêmica. Essa crítica é uma página bastante conhecida da história do marxismo do século XX. Althusser considera as referências de Gramsci a um “historicismo absoluto” como um perigo teórico e político importante. Para ele, o perigo era “confundir, no único materialismo histórico, tanto a teoria da história quanto o materialismo histórico”[13], e também “reunir sob um mesmo termo a teoria científica da história (materialismo histórico) e a filosofia marxista (materialismo dialético) e pensar essa unidade como uma ‘concepção de mundo’ ou como uma ‘ideologia’ em suma comparável às antigas religiões”[14]. Vemos aqui – e este é um dos pontos do texto que publicamos – que Althusser faz uma crítica a Gramsci que reproduz sua crítica à concepção “oficial” do PCF em termos filosóficos. Para ele, “reduzir a ciência à história como sua ‘essência'” era uma “tentação empirista”[15]. Althusser também se referia ao que via como a tentação da “união do humanismo e do historicismo”[16] e considerava que tal tentação era, em essência, um humanismo “esquerdista”, como variantes do “comunismo de esquerda” após 1917, como uma reação às exigências, mas também às dificuldades do período pós-revolucionário.

É claro que agora sabemos, após importantes trabalhos sobre Gramsci, de Christine Buci-Glucksmann a Peter Thomas, que essa interpretação de Gramsci não era válida. Na verdade, o pensamento de Gramsci não era “historicista” no sentido dado por Althusser: não existe uma teleologia metafísica em Gramsci. Além disso, pode-se dizer que a “ontologia social” de Gramsci é um materialismo “molecular”, mais próximo do materialismo do encontro de Althusser do que do pensamento de Lukács. Mas há uma diferença: a questão da cientificidade, essencial na carta. Não que Gramsci subestime a importância de uma abordagem “científica”: suas pesquisas “filológicas” nos Cadernos testemunham o contrário. Mas ele desenvolve uma concepção da “filosofia da práxis” como uma prática teórica experimental que tenta produzir novas formas de conceitualidade para pensar a história e a política em sua relação dialética.

Nessa época, Althusser estava preocupado com o esforço necessário para fornecer uma solução científica aos problemas políticos das orientações do movimento comunista. Essa vontade de trazer correções teóricas e científicas aos desvios políticos é o “teoricismo” de Althusser, que mais tarde será objeto de sua autocrítica: a ideia de que o conhecimento científico poderia, por si só, levar a escolhas políticas corretas e a uma mudança à esquerda na política do movimento comunista.

Mas para que esse conhecimento seja verdadeiramente científico, são necessários protocolos de cientificidade. Para Althusser, naquele momento específico, a defesa da cientificidade do materialismo histórico exigia uma filosofia científica que pudesse oferecer esses protocolos. Para evitar uma regressão infinita, ele insistia na ideia de que essa filosofia científica, essa prática teórica de garantias e protocolos de cientificidade, essa “Teoria da prática teórica”, já existia em forma prática em O Capital de Marx como um lugar de revolução teórica.

Nesse contexto, qualquer risco de “confusão” entre o materialismo histórico, como prática teórica que produz conhecimentos científicos, e o materialismo dialético, como “Teoria da prática teórica” que oferece protocolos de cientificidade, colocava em perigo o esforço de Althusser em direção a uma correção teórica dos desvios políticos do movimento comunista.

A carta de Althusser para Rinascita, que publicamos aqui, surge, portanto, na fase subsequente de sua trajetória teórica e política. Sabe-se que é precisamente a partir de 1966 que ele empreende uma autocrítica profunda. Uma parte dessa autocrítica é o abandono da noção de “Teoria da prática teórica” e a elaboração, em uma série de textos, de uma nova definição de filosofia, vista de forma muito mais política. A filosofia torna-se para ele uma forma de intervenção na ciência que tenta influenciar a relação de forças entre o idealismo e o materialismo, entre o elemento materialista/científico e o elemento idealista/ideológico nas práticas científicas: é sua definição de filosofia como “intervenção política na teoria”, e mais tarde como “luta de classes em última instância na teoria”.

Mesmo que ele continue, às vezes de maneira muito contundente, sua crítica a Gramsci, essa concepção mais política da filosofia, mas também da teoria em geral, acaba por aproximá-lo dele, para quem existia uma relação estreita entre teoria e política. Althusser reconhece em sua carta à Rinascita a existência de uma relação entre filosofia e política, mas ao mesmo tempo pretende manter uma referência à cientificidade da teoria marxista, embora aceite que, em última instância, essa cientificidade seja uma questão de luta de classes: esse texto aparece, assim, como uma ilustração do movimento do pensamento de Althusser nesse período-chave.

Althusser queria manter a distinção entre ciência, política e filosofia. Isso já está evidente nas Notas sobre a filosofia, do mesmo ano de 1967, que terminam com nossa Carta à Rinascita, e em todas as suas elaborações posteriores sobre essas questões, começando por “Lenin e a filosofia” em 1968 e chegando até “A Transformação da Filosofia” em 1976. Pode-se dizer que quando se fala de filosofia, trata-se sempre de uma operação “desconstrutiva”, de um esforço para combater o idealismo, para desconstruir elementos ideológicos/idealistas. O resultado é que, mesmo com a “segunda” definição de filosofia e o abandono da possibilidade de uma filosofia materialista como “ciência das ciências”, Althusser não poderia aceitar a concepção mais “construtiva” da “filosofia da práxis” de Gramsci como laboratório para a produção de novas formas de conceitualidades político-teóricas.

Se falar, como faz aqui, em “equívoco”, “ponto fraco”, “textos superficiais”, “concepção manifestamente insuficiente” de Gramsci em uma publicação do PCI tem algo que beira a blasfêmia – tanto quanto se ele tivesse usado a palavra “bobagem” usada na carta mencionada para Franca Madonia, não é o mesmo na França da época. E, assumindo a concepção clássica – herdada de Stalin – da filosofia do marxismo como “materialismo dialético” e “materialismo histórico”, hipoteticamente indisponível em Gramsci, Althusser insiste em discutir as concepções de Gramsci, cujo legado é uma questão para as discussões internas do PCI mais do que para o PCF, sendo o primeiro um verniz de legitimidade interna ao PCF que o permitia aprofundar sua própria reflexão sobre as relações entre filosofia e ciência, de um lado, e política, de outro. É compreensível, portanto, que Roland Leroy tenha considerado este texto uma leitura útil para os líderes do PCF – o que nos permite tê-lo à nossa disposição hoje.


Carta de Louis Althusser a Luciano Gruppi, para a direção da revista Rinascita

Paris, 11 de dezembro de 1967,

Caro camarada,

Li com muito interesse a resenha que você dedicou na Rinascita ao meu texto “O marxismo não é um historicismo”, recentemente publicado pela revista Trimestre.

Fiquei muito sensível às nuances da sua crítica, que, inclusive nas suas reservas mais claras, está sempre atenta ao que tentei “dizer”, mesmo quando não consegui fazê-lo.

Você está certo: minha aproximação brusca de certos temas de Gramsci a partir de certas teses de Colletti é apresentada sem as justificativas históricas e teóricas necessárias.

Entendo o seu escrúpulo em relação à interpretação de certas fórmulas “teóricas” de Gramsci. Não se pode abstrair o pensamento “concreto” de Gramsci para julgá-las. Mas você concordará comigo que o simples lembrete da existência do “pensamento concreto” de um autor não é suficiente para dissipar automaticamente as ambiguidades que podem estar envolvidas nas fórmulas “abstratas” da sua “teoria”. Entre a teoria abstrata e o pensamento concreto de um autor, tão maduro, responsável e consciente quanto Gramsci, existe certamente uma unidade de inspiração profunda. Se uma ou outra de suas fórmulas “teóricas” “abstratas” apresenta alguma ambiguidade, toda a questão é saber se o seu “pensamento concreto” registrou e consagrou (“concretamente”) ou, pelo contrário, corrigiu e dissipou (“concretamente”) essa ambiguidade. A existência de um “pensamento concreto” não é necessariamente a prova de uma correção da ambiguidade de uma fórmula “abstrata”. A correção desta ambiguidade deve ser mostrada no “pensamento concreto”, para que a invocação deste “pensamento concreto” não seja apenas uma garantia moral.

Eu devo admitir que as melhores análises que li sobre o “pensamento” de Gramsci não dissiparam realmente a ambiguidade “teórica” que vou abordar.

Aqui está o ponto muito preciso e localizado, onde acredito ser possível discernir essa ambiguidade “teórica”.

Contra toda a corrente positivista de interpretação do marxismo – e nesse sentido, seu mérito é imenso, pois ele teve a lucidez e a coragem de lutar contra as opiniões dominantes –, Gramsci percebeu e pensou bem uma das duas determinações constitutivas de toda filosofia: a relação que a filosofia mantém com a política.

No entanto, ele não percebeu, isoladamente, nem pensou sobre a outra relação: a que a filosofia mantém com as ciências. [2] [3] 

Esse é, teoricamente falando, o ponto fraco de Gramsci. Ele foi claramente apontado por vários filósofos marxistas italianos. Em textos, aliás, rápidos e superficiais, Gramsci defende uma concepção manifestamente insuficiente, senão falsa, das ciências. Ele se contenta em repetir fórmulas extremamente ambíguas e duvidosas de Croce: teoria “instrumentalista” das ciências e teoria “super estruturalista” das ciências.

Considerando o que elas podem objetivamente significar, essas fórmulas se limitam a designar:

  1. a primeira, o lugar que uma ciência ocupa em uma prática determinada, da qual é apenas um elemento entre outros, e a função que ela exerce nessa prática (por exemplo, a teoria marxista é um dos elementos da prática política marxista, e nela desempenha o papel “instrumental” de “método” e “guia” para a “ação”).
  2. a segunda, o lugar que as ciências ocupam em relação às suas “instâncias” (infraestrutura, superestrutura jurídico-política, superestrutura “ideológica”), em uma formação social dada (como tal, as ciências ocupam um lugar “do lado da superestrutura”).

Mas essas fórmulas, que designam um lugar para as ciências em tópicos específicos, não dão conta do que distingue propriamente as ciências: a produção de conhecimentos objetivos.

Disso resulta uma consequência muito importante.

Como Gramsci não pensa na relação específica que a filosofia mantém com as ciências, ele tende constantemente a reduzir e a assimilar completamente a “filosofia” à “concepção de mundo”, com apenas uma diferença formal.

O que distingue de fato, aos olhos de Gramsci, a filosofia (“dos filósofos”) da concepção de mundo – de todos os homens: como cada um tem uma “concepção de mundo”, Gramsci diz que “todo homem é filósofo” – é apenas o que ele chama de maior “coerência”. É claro que essa diferença permanece simplesmente formal, porque Gramsci a qualifica apenas por uma diferença no grau de “coerência”, sem explicar a razão dessa “coerência” ou dessa diferença de grau. Gramsci também fala do caráter “sistemático”, do caráter “racional” da filosofia (dos filósofos e do marxismo), mas esses termos, que não explicam nada de específico, apenas repetem em outras formas o caráter já afirmado da “coerência”.

No entanto, a coerência (a sistematicidade e até mesmo a racionalidade) não são critérios específicos e distintivos da filosofia. Existem apresentações perfeitamente coerentes, sistemáticas e até mesmo “racionais” das concepções de mundo que não podem ser confundidas com a filosofia, como apresentações teóricas da concepção religiosa de mundo na teologia.

Na realidade, para explicar o que Gramsci procura designar como próprio da filosofia quando invoca sua “coerência”, é necessário considerar a relação específica que a filosofia mantém com as ciências. É essa relação que confere à filosofia os caracteres descritos por Gramsci (coerência, sistematicidade, racionalidade), mas então esses caracteres não permanecem formais, pois adquirem um conteúdo preciso, definido não pela “racionalidade” em geral, mas pela forma específica de “racionalidade” dominante que existe em um momento dado nas ciências com as quais a filosofia mantém uma relação específica. As “concepções de mundo”, contemporâneas ou não, têm relação com as mesmas ciências (e sua “racionalidade”) ou mantêm com elas uma “relação” completamente diferente da relação filosófica.

Se essa esquematização não for falsa, ela revela que as filosofias mantêm uma relação determinada com as “concepções de mundo” existentes. Essa relação é, em última análise, uma relação orgânica da filosofia com a política (pois só existem concepções de mundo opostas na luta ideológica de classes, que é um momento da luta de classes no sentido mais forte da palavra, ou seja, política). Mas as filosofias não se definem apenas por essa relação com a política (caso contrário, seriam apenas concepções de mundo, mesmo que “políticas”). Elas se definem, como filosofias (e essa é sua diferença específica), pela relação particular que mantém, ao mesmo tempo, com as ciências, mais precisamente com a forma de “racionalidade” dominante existente nas ciências naquele momento.

A implicação desse duplo relacionamento constitui uma combinação original que faz com que as filosofias existam propriamente como filosofias distintas tanto das concepções de mundo quanto das ciências. Compreende-se assim que as filosofias contenham em si mesmas concepções de mundo ou, mais precisamente, que sejam “carregadas” por concepções de mundo: daí a validade da teoria engelsiana e leninista da luta das duas tendências, materialista e idealista, na história da filosofia – essa luta sendo uma luta ideológica de classe entre as concepções de mundo opostas. Entende-se ao mesmo tempo que elas sejam algo diferente de simples concepções de mundo não filosóficas. Pois, ao contrário das simples concepções de mundo, elas mantêm uma relação específica com as ciências.

Reconheceremos que, nessas condições, Gramsci não pôde, por falta de uma concepção correta das ciências, dar uma definição completa e correta da filosofia. Ele viu bem a relação fundamental da filosofia com a política. Mas ele não discerniu bem a relação específica da filosofia com as ciências. Isso resulta em uma certa ambiguidade em sua concepção “teórica” da filosofia. Pelo que eu saiba, essa ambiguidade “teórica” não é corrigida pelo “pensamento concreto” de Gramsci.

Se tomarmos cuidado com essa ambiguidade, entenderemos facilmente como ela pode provocar a tendência, perceptível em Gramsci, de confundir a filosofia marxista (materialismo dialético) com a ciência da história (cujo “materialismo histórico” é a “teoria geral”). Essa confusão é consagrada em Gramsci – 1) – pela supressão do termo clássico do materialismo dialético (ao qual ele reprova suas ressonâncias positivistas, sem discernir o conteúdo efetivo que esse nome designa, ou seja, a relação da filosofia com as ciências) e – 2) – pelo amálgama da ciência da história e da filosofia marxista sob a expressão única de “filosofia da práxis”. Acredito que não estamos lidando aqui com uma simples reformulação terminológica sem efeitos teóricos ou práticos.

Estou plenamente de acordo, é óbvio, que a minha insistência em enfatizar as ciências tem algo a ver com a “tradição cultural francesa”, com o seu “iluminismo”. No entanto, não penso que se possa resolver seriamente a questão objetiva de uma teoria correta das ciências e da relação da filosofia com as ciências, simplesmente com uma explicação do tipo historicista: “sociologia do conhecimento”. Da mesma forma, não se pode resolver a questão das teses correspondentes de Gramsci através de uma explicação sociológica que se baseie apenas na “tradição italiana”. Agora, temos distanciamento suficiente das nossas respectivas “tradições nacionais”, como marxistas-leninistas, e somos suficientemente críticos em relação ao relativismo sociológico, que é apenas um produto direto da ideologia burguesa na história, para rejeitar essa visão “comparativista” simples, que funciona como uma mera ideologia quando tenta explicar o conteúdo teórico de uma proposição. Esse “sociologismo” é, por assim dizer, um excelente exemplo dos estragos que pode causar a concepção “historicista” vulgar do marxismo.

Digo “vulgar” pensando que, apesar dos seus equívocos objetivos, a concepção gramsciana de “historicismo” estava longe de ser “vulgar”. No entanto, a experiência que temos todos os dias, em circunstâncias tão variadas quanto possível, dos efeitos teóricos e práticos prejudiciais do equívoco objetivo contido na noção de “historicismo”, mesmo que seja declarado “absoluto” para tentar escapar do relativismo, obriga-nos a colocar a questão da “instrumentalidade” do seu uso e, para além desta questão puramente pragmática, dos seus títulos de validade teórica.

Devemos, acima de tudo, “salvar”, preservar o que, apesar de sua formulação duvidosa e seus inevitáveis equívocos teóricos, contém de autêntico no “historicismo” de Gramsci. O que o “historicismo” designa como autêntico em Gramsci é essencialmente a afirmação da natureza política da filosofia, a tese do caráter histórico das formações sociais (e dos modos de produção que as compõem), a tese correlativa da possibilidade da revolução, a exigência da “união da teoria e da prática”. Por que não designar essas realidades por seus nomes, consagrados por uma longa tradição?

Por outro lado, se quisermos “salvar” o que o “historicismo” de Gramsci contém de autêntico, devemos a todo custo evitar comprometê-lo (como o simples uso da palavra constantemente nos provoca) nas ideologias relativistas (burguesas) do conhecimento, que pensam ter explicado um conteúdo teórico objetivo (conhecimento científico verdadeiro ou tese filosófica correta) reduzindo-o apenas às suas condições “históricas”.

A história dos conteúdos teóricos (ou seja, científicos e filosóficos, no sentido estrito destes termos) é certamente uma história. Mas:

  1. Essa história não deve ser concebida como um simples processo empírico registrado em uma crônica: ela deve ser pensada em termos conceituais da ciência marxista da história.
  2. É uma história sui generis que, embora esteja inserida na história das formações sociais e articulada com essa história (que em geral é o que se chama de História em sentido amplo), não é simplesmente redutível a essa História das formações sociais, mesmo quando concebida fora de qualquer empirismo, nos conceitos marxistas da ciência da história.

Por meio dessas distinções totalmente essenciais, somos novamente remetidos à interpretação do marxismo, e, entre outras coisas, a Gramsci. Podemos suspeitar que, neste ponto também, quero dizer, na maneira de conceber a natureza da ciência marxista da história (em sua diferença com a filosofia marxista, sobretudo seu silêncio sobre a relação que a filosofia mantém com as ciências), pode não ser sem consequências teóricas e práticas.

Espero ter um dia a oportunidade de falar mais longamente sobre isso. Mas ficaria feliz[17] se nossos camaradas italianos, que conhecem bem Gramsci, não apenas sua “teoria abstrata”, mas também seu “pensamento concreto”, contribuíssem para essa reflexão, cuja importância não pode lhes escapar.

Com toda fraternidade,

Louis Althusser

P.S. Se você acha que esta carta rápida pode ser publicada por Rinascita, apesar de seu caráter muito resumido e esquemático, ficaria feliz. Posso lhe confiar a responsabilidade de falar em meu nome e em nome da Revista, que gentilmente me abriu suas colunas?


[1] Artigo publicado na revista Trimestre, editada em Pescara, retomando uma seção de sua contribuição a Para Ler o Capital.

[2] Filósofo membro do Comitê Central do PCI (Partido Comunista Italiano) e adepto da interpretação togliattiana de Gramsci.

[3] Contribuições de Rino Dal Sasso, Nicola Badaloni, Galvano Della Volpe e Luciano Gruppi.

[4] Apesar de os debates em Argenteuil estarem focados principalmente nas questões da liberdade de criação artística e literária, a filosofia também ocupa neles um lugar importante. Ver as atas dessa sessão e a introdução que Roger Martelli lhes dá em ‘Uma disputa comunista: o Comitê Central de Argenteuil sobre a cultura’, Éditions Sociales, 2017.

[5] Em seu livro ‘Marxismo e teoria da personalidade’, publicado em 1968, Lucien Sève dedica duas longas notas para criticar Garaudy, por um lado, e Althusser, por outro. É bastante claro que por trás dessa aparente simetria, as críticas não são da mesma natureza: elas atingem, no caso de Garaudy, o cerne de suas concepções, enquanto no caso de Althusser, há algumas formulações, sem dúvida importantes, mas deixando o cerne em debate e tomando o partido da crítica de Garaudy por parte de Althusser.

[6] Na época, Waldeck Rochet era o secretário-geral do PCF (Partido Comunista Francês). De origem camponesa (tendo sido horticultor em sua juventude), ele foi um dos principais arquitetos da primeira atualização do PCF no final dos anos 1960. De mente muito aberta e sensível aos debates filosóficos (Althusser, que dedicou a ele seus ‘Elementos de Autocrítica’, conta que já discutiu longamente sobre Spinoza com ele…), seu discurso de encerramento no Comitê Central de Argenteuil foi publicado e utilizado na formação dos militantes sob o título ‘O marxismo e os caminhos do futuro’.

[7] Louis Althusser, Lettres à Franca, Paris: Stock/IMEC, p. 161.

[8] Louis Althusser, Pour Marx, Paris: Découverte, pp. 113-114.

[9] Althusser, Pour Marx, p. 114.

[10] Adeptos da escola original do marxismo italiano constituída em torno de Galvano Della Volpe.

[11] Althusser, Lettres à Franca, p. 609.

[12] Althusser, Lettres à Franca, p. 609.

[13] Louis Althusser et al., Lire le Capital, Paris: PUF, 1996, p. 325.

[14] Ibid.

[15] Lire le Capital, p. 330.

[16] Lire le Capital, p. 338

[17] Na versão publicada pela Rinascita, esse verbo está no indicativo. O post-scriptum está ausente.

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O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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