Por Alex Martins Moraes
O chamado resgate do papel dos intelectuais parece ser, no final das contas, o resgate do intelectual-mediador, aquele que os poderes constituídos convocam às pressas quando alguma “minoria” problemática irrompe na cena pública e precisa ser interpretada ou compreendida em termos suficientemente palatáveis à manutenção do status quo.
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Escrevo este texto à margem do artigo de Tatiana Roque, publicado na edição de janeiro de 2019 do Le Monde Diplomatique Brasil.
Intitulada “Intelectuais de internet chegam ao poder: a luta de classes do saber”, a intervenção de Tatiana procura estabelecer associações entre a chegada da extrema-direita ao poder e o ataque sistemático às posições de “mediação” tradicionalmente ocupadas pela intelectualidade dos mais diversos campos do conhecimento. Segundo a autora, “os ataques à escola, às universidades e ao lugar dos intelectuais são parte do questionamento generalizado às instituições democráticas”. Os conhecimentos (re)produzidos no sistema científico e educativo, assim como seus respectivos “porta-vozes”, representariam, em alguma medida, um contrapeso às razões empresariais e capitalocêntricas que, à reboque das estratégias políticas da extrema-direita, tenderiam atualmente a hegemonizar a gestão pública. Um dos aspectos mais problemáticos da presente conjuntura seria, justamente, a marginalização desse contrapeso. A desqualificação do conhecimento escolar e universitário impulsionada pelos “sábios de redes sociais”, cujos enunciados recebem validação de acordo com mecanismos alheios àqueles que testificam a excelência acadêmica, representaria um verdadeiro fantasma que “assombra não somente o Brasil […] mas todo o mundo esclarecido”. Diante deste cenário preocupante, Tatiana argumenta que a recuperação da legitimidade científica passa pela recomposição do nexo dialógico entre os praticantes da ciência e “um meio exigente e culto com potencial para ir além da confiança indiferente que transfere aos cientistas o julgamento de prioridades que afetarão todo mundo”. Em outras palavras, os cientistas já não deveriam esperar qualquer tipo de carta branca da população para desenvolver suas agendas investigativas, afinal, este tipo de autoridade tende a ser frágil, justamente porque não se assenta num intercâmbio orgânico entre quem habita as instituições do saber legítimo e quem pretende que as atividades realizadas nestes lugares possam entrar em sinergia com suas respectivas apostas políticas e esperanças coletivas.
Recolocar a ciência “em seu tempo e seu meio”, contra os arroubos obscurantistas dos sábios de internet, implicaria, segundo a autora, “propor um novo acordo a ser estabelecido entre acadêmicos, experts, políticos, jornalistas, internautas, youtubers, think tanks, ONGs e tantos atores que têm algo a dizer sobre os temas-chave que envolvem o conhecimento”. Este renovado esforço no sentido de articular grupos de interesse heterogêneos, dispostos a fortalecerem-se a si mesmos e à ciência na esfera pública, estaria justificado pelo fato de que “as perdas [presumivelmente, de legitimidade] colocam todos no mesmo barco”, exigindo uma resposta estratégica conjunta.
O espírito do corporativismo percorre o artigo de Tatiana. Seu discurso vai construindo os fundamentos de um sentimento de corpo destinado a assegurar não só a validação dos diferentes saberes acadêmicos, mas também – e fundamentalmente – daqueles que jogam o papel de “porta-vozes” autorizados das disciplinas universitárias, estas últimas convertidas em sinônimo de “ciência”. Cabe observar en passant que o rótulo de ciência é recusado pelos próprios praticantes de determinadas disciplinas, principalmente no campo das humanidades, onde os métodos e formas de enunciação do conhecimento legítimo são objeto de controvérsias por vezes irresolúveis. Mas isso parece constituir um dado secundário quando se trata de conformar às pressas uma aliança estratégica em nome da restauração generalizada de certos lugares de enunciação que hoje se apresentam claramente instáveis e contestados.
Subjacente ao texto de Tatiana ressoa um chamado em prol da união dos “cientistas” e de sua mútua validação com respaldo dos comunicadores sociais, entendidos como uma via estratégica de acesso à massa crítica, cuja missão histórica consistiria em reabilitar, sob certas condições de horizontalidade, o lugar dos verdadeiros sábios no debate político coletivo. Temos, aqui, a expressão de um corporativismo bem-intencionado e socialmente comprometido que, no entanto, continua sendo um corporativismo, isto é, a manifestação de interesses paroquiais que Tatiana deixa antever quando evoca, por exemplo, a “luta de classes pelo poder intelectual”, a necessidade de “reconquista da confiança” por parte dos intelectuais, a ambição de superar “o ostracismo e o descrédito das opiniões acreditadas pelas instituições do saber intelectual”.
A agenda corporativa que acabo de esboçar oblitera tantas questões relevantes para o pensamento político com inclinações emancipatórias – ou, pelo menos, críticas – que, a meu ver, torna-se desaconselhável tomá-la como ponto de partida para a reorganização e o fortalecimento da capacidade de intervenção política “dos intelectuais” numa conjuntura pouco favorável à tarefa em questão. É verdade que tendências políticas como o bolsonarismo orientam-se à substituição do pensamento crítico e autônomo pela reprodução de mantras autoritários extraídos do vocabulário nacionalista, da ortodoxia econômica norte-americana ou austríaca e de certas teologias fundamentalistas. É verdade, também, que os critérios de conhecimento e intervenção social mobilizados pelo bolsonarismo ofendem – e às vezes podem obturar transitoriamente – a capacidade reflexiva de seus destinatários. No entanto, e correndo o risco de soar desmesurado, parece-me que propostas como as de Tatiana não subvertem radicalmente este tipo de postura. Para fundamentar meu palpite, será necessário seguir a autora ao pé da letra:
A fragilização de nossa jovem democracia se dá por meio de uma grave crise institucional, com esferas de poder e controle extrapolando suas funções e interferindo onde não é de sua alçada, mas, sobretudo, com o papel dos mediadores sendo colocado sob suspeita, como é o caso de jornalistas, políticos e intelectuais.
Nesta passagem salta aos olhos a sensibilidade ordeira e conservadora de quem preconiza o bom funcionamento das instituições valendo-se de um enfoque juridicista, cuja criticidade ancora-se num “dever ser” que pré-supõe a autoridade intelectual de quem o enuncia. Em outras palavras, a “alçada” de cada esfera de poder precisa ser resguardada porque assim estabelece o pacto republicano, encarado como coextensivo à própria ideia de democracia. De fato, as primeiras colocações que aparecem no trecho acima transcrito, nas quais coagula uma apologia da ordem e das instituições já existentes, poderiam ser encontradas no discurso de qualquer quadro do establishment republicano brasileiro, desde um deputado federal (progressista ou conservador) até um ministro do STF, passando pelo próprio chefe do Executivo. Contudo, a singularidade do discurso da autora reside em sua ênfase nos chamados “mediadores”, sejam eles oficiais (os “políticos”) ou oficiosos (os intelectuais e a imprensa), aos quais se atribui o título de garantes da institucionalidade “democrática”. Tal ponto de vista delineia-se com mais clareza algumas linhas adiante, quando vemos emergir um paralelo entre a conjuntura brasileira e a estadunidense, na qual “um presidente que é ele próprio uma corporação […] coloca empresários em postos que deveriam servir para calibrar interesses divergentes”. Grifo meu. “Sem mediação de conflito – assevera Tatiana – não há democracia”. Em seguida, lemos uma constatação que já tive a oportunidade de citar. Volto a transcrevê-la: “os ataques à escola, às universidades e ao lugar dos intelectuais são parte do questionamento generalizado às instituições democráticas”.
As aspirações democráticas da autora, assim como sua própria definição de democracia (“mediação de conflitos” de interesses), inscrevem-se totalmente, sem qualquer rebarba, nos quadros institucionais existentes. Tudo se passa como se já dispuséssemos da aparelhagem institucional necessária para viver em “democracia”. Daí a necessidade de defender essa mesma aparelhagem contra quem pretende desestabilizá-la e, por conseguinte, desestabilizar a legitimidade de seus fiadores – políticos, burocratas, think tanks, experts, jornalistas, etc. Neste ponto, é inevitável levantar o seguinte questionamento: o que diria Tatiana sobre certas intervenções políticas, como a ocupação de universidades e escolas públicas, que pelo menos desde 2011 vêm colocando em questão não só as políticas de Estado que propendem à precarização do sistema de ensino, mas também os próprios regimes de autoridade sobre os quais este mesmo sistema estrutura-se? Só um bom “mediador” poderia, num passe de mágica, conciliar a energia disruptiva dos estudantes com o espírito ordeiro e institucionalista de seus professores. Mas quem disse que os estudantes querem essa mediação? Quem disse que a legitimação de seu próprio poder deve ser concomitante e simbiótica com a intervenção de um poder mediador já estabelecido? Uma pergunta da mesma natureza poderia ser colocada em relação a outros tantos sujeitos em luta que, desde os alvores da Nova República, ocuparam terras e fábricas, construíram casa onde não deveriam fazê-lo, deflagraram greves selvagens, tomaram parlamentos municipais e estaduais, desafiaram, em suma, as “alçadas”, os fins e os meios dispostos pela legalidade vigente.
De vez em quando, há que admitir, a política emerge como força destituinte que decreta de direito próprio sua primazia perante a lei, a ordem e os mecanismos de mediação em voga. Transbordar a “alçada” dos lugares existentes de poder é uma tendência inerente à política, de modo que questioná-la sem reparos acarreta corolários inevitavelmente conservadores.
Opor ao conservadorismo político bolsonarista uma espécie de restauracionismo institucional bem pensante, alheio à irreverência das lutas sociais concretas, é um procedimento inócuo porque não vai além de contrapor dois regimes de autoridade amplamente questionáveis e questionados. De um lado temos, então, a autoridade dos novos representantes do povo, que graças aos votos de outubro de 2018, sentem-se no direito de governar para o capital financeiro e o fundamentalismo cristão como se este tivesse sido o desejo de sua heterogênea base eleitoral (vicissitudes da mediação…). De outro lado, temos a autoridade do sujeito-suposto-saber, que graças a sua posição de prestígio na estrutura acadêmica, pretende erigir-se como mediador incontornável dos interesses sociais em conflito; interesses confusos e bestiais que o acadêmico restauracionista supostamente (re)conhece de forma cristalina e sensata. Entre conservadores e restauradores trava-se uma batalha que dificilmente transgride os limites do establishment. Tatiana acerta no alvo quando decide denominá-la “luta de classes”, se por tal conceito entendermos, em sintonia com Marx, uma oposição de interesses conflitantes que não chega a colocar em questão o marco normativo em que se estabelece. Em seu sentido clássico, a “luta de classes” confronta vendedores e compradores de força de trabalho sob a égide da lei de intercâmbio de mercadorias. Em sua acepção roquiana, essa luta parece fazer alusão ao choque de duas elites, uma intelectual e a outra política, à sombra da lei da mediação da autoridade. Tanto para um grupo como para o outro, o sujeito mediado é o mesmo: um povo silente quando se trata da formulação direta dos ditames de governo.
No que diz respeito à definição de democracia como “mediação de conflitos”, é quase prescindível observar que não está em continuidade com nenhuma das grandes expressões, clássicas ou contemporâneas, do pensamento crítico. Não posso ocultar minha tristeza, e até mesmo perplexidade, ao constatar que depois do intenso século XX – varrido por grandes esforços de emancipação e marcado por um pensamento político que quis colocar-se a altura desses mesmos esforços –, ainda seja necessário discutir, no campo da própria esquerda, o quão desmobilizadora – e, no limite, reacionária – pode ser essa reafirmação da democracia como mediação de interesses conflitantes sob a tutela de agentes autorizados. Para ser breve, direi que tal definição de democracia está nas antípodas do que o pensamento imanente às lutas revolucionárias dos últimos 150 anos – para remontarmo-nos até a Comuna de Paris – postulou no tocante a princípios democráticos. A ausência de mediações a priori – ainda que não necessariamente a posteriori, mas aqui tratar-se-ia de uma nova mediação –, o controle político direto sobre as condições de reprodução sócio-econômica das maiorias, o rechaço à critica em exterioridade (juridicista, de cátedra, etc.) em favor da crítica imanente, e a afirmação de apostas políticas ingovernáveis do ponto de vista da mera gestão de interesses setoriais constituem algumas das coordenadas políticas herdadas pelas lutas do século XX. Não vejo razão alguma para renegá-las… pelo menos não no âmbito daquilo que denominamos “esquerda”.
Voltemos às palavras de Tatiana:
Durante o período do New Deal, iniciou-se uma participação mais efetiva dos intelectuais no espaço público: criaram-se milhares de empregos para os quadros qualificados, surgiram projetos culturais que empregavam artistas, o clima nas universidades era de otimismo e expansão, acadêmicos assumiam o papel de conselheiros do governo […] Mesmo a Guerra Fria e o governo do general Eisenhower faziam uso estratégico dos experts para legitimar suas políticas […] Naquele momento, a afirmação do papel do expert enfraquecia o anti-intelectualismo em geral, mas a desqualificação do intelectual sobrevivia encarnada no macartismo. Sob o pretexto de caça aos comunistas, selecionava-se os intelectuais que mereciam ser ouvidos e os que deveriam ser silenciados.
Aqui, Tatiana recupera o argumento de Richard Hofstadter (“ganhador do prêmio Pulitzer”, como ela faz questão de mencionar…) sobre a trajetória do “anti-intelectualismo” até os anos sessenta nos Estados Unidos. Antes de prosseguir, uma observação meramente anedótica: em 2018, Olavo de Carvalho também reivindicava – no Facebook, é claro – o argumento desse mesmo livro, mas com propósitos opostos – e simétricos? – aos de Tatiana: para ele o anti-intelectualismo, “traço permanente de muitas igrejas evangélicas”, também se manifesta naqueles que “discutem comigo, isto é, com o único sujeito que sem ter sequer um diploma de ginásio se tornou o intelectual mais influente deste país; que, com os seus conhecimentos, humilhou muitos doutores, no Brasil e no exterior, e cuja carreira é, por isso mesmo, uma prova viva da glória de Deus”. O intelectual autodidata, glorificado por Deus, reivindica supremacia sobre os intelectuais investidos pelo sistema escolar. Duas vontades de poder confrontam-se no terreno da política. O lugar de conselheiro do soberano está em jogo.
Curiosidades à parte, retornemos ao texto que nos convoca. Qual seu método de comparação entre a realidade norte-americana e a brasileira? Trata-se de conjunturas análogas? A história do anti-intelectualismo nos Estados Unidos (associada, segundo Hofstadter, ao evangelismo, à corrente primitivista, à ideologia dos homens de negócio e ao ideal da educação igualitária) justapõe-se à história do anti-intelectualismo no Brasil? As condições do anti-intelectualismo nos dois países são as mesmas? Impossível saber. E o simples fato de que tais perguntas permaneçam sem resposta indica que o método subjacente ao argumento em questão é pouco compatível com o discurso científico que sua autora valoriza e pretende restaurar na esfera pública. Digamos então que, no tocante ao método, o texto dá primazia à intuição de semelhanças superficiais entre contextos díspares e arbitrariamente vinculados, mesmo quando pretenda dissimular tal procedimento com ares professorais para não ofender o público “exigente e culto” do Le Monde Diplomatique.
Concentremo-nos, então, na intuição que organiza o argumento de Tatiana – afinal, como já afirmava o discurso evangélico estudado por Hofstadter, a intuição também pode ser uma forma de aproximar-se da verdade. Ao que tudo indica, nossa autora admite um correlato entre o processo de (des)legitimação da intelectualidade estadunidense nas décadas subsequentes ao New Deal e aquele vivenciado por sua congênere brasileira pelo menos desde 2018. Nos Estados Unidos da Guerra Fria, o prestígio público dos cientistas esteve associado ao seu papel relevante para o desenvolvimento tecnológico, tendo em vista a ambição de suplantar a URSS no terreno da corrida espacial. Contudo, quando os cientistas decidiam portar-se como “intelectuais” ou ideólogos, intervindo ativamente na vida pública a partir de posições controversas do ponto de vista do senso comum, tornavam-se objetos de suspeitas e censuras arraigada em valores anti-intelectualistas historicamente disseminados na sociedade local. Neste quesito, o macartismo ocupou um papel de destaque, promovendo a deslegitimação de qualquer sábio que não corroborasse diretamente os interesses estratégicos do Estado em seu combate contra a perversão representada pelo inimigo externo ou interno. Eis que se torna evidente a associação com o caso brasileiro, afinal, também aqui as luzes da academia e da escola vêm sendo ofuscadas por um neomacartismo provavelmente mais paranóico e oportunista que sua versão original.
Mas como também se trata de iluminar a situação dos intelectuais no período do New Deal, prévio ao macartismo, talvez ainda valha a pena ensaiar outra intuição; uma intuição reveladora no concernente à condição de muitos intelectuais públicos brasileiros em tempos recentes. Poderíamos, por exemplo, traçar um correlato entre a atuação dos intelectuais-ideólogos-de-Estado dos anos 1930 (Keynes seria a figura prototípica), cujas exitosas carreiras acadêmicas vicejaram no pós-crise de 1929, e o apaziguamento – via políticas públicas pretensamente “amortecedoras” – das tendências insurrecionais da classe trabalhadora[1]. Em seguida, poderíamos transpor essa correlação para o caso brasileiro pré-golpe de 2016, obtendo, quem sabe, uma intuição aceitável sobre a função social dos ideólogos, conselheiros e policy makers progressistas que Tatiana pretende aglutinar em sua inusitada frente única. Se esta intuição for correta, então o resgate do papel dos intelectuais é, no final das contas, o resgate do intelectual-mediador, aquele que os poderes constituídos convocam às pressas quando alguma “minoria” problemática irrompe na cena pública e precisa ser interpretada ou compreendida em termos suficientemente palatáveis à manutenção do status quo.
Em palavras de Tatiana, “a posição dos experts tem sido cada vez mais relevante no debate público sobre questões candentes. Basta ver o destaque que os intelectuais têm tido em debates públicos sobre temas econômicos, ecológico, sobre políticas de drogas ou de gênero – em geral encarnando posições progressistas”. Sob o slogan de reabilitar a ciência, é a legitimidade deste tipo de ator institucional que Tatiana gostaria de referendar. Os surtos de terraplanismo, amplificados pela democratização smartfônica do You Tube, não são mais que um espantalho sensacionalista contra o qual a autora deseja conclamar a investida científica. E em meio a essa heróica contra-ofensiva transdisciplinar, em que todos envergam guarda-pós brancos em nome da unidade de classe, marcha também o cortejo dos conselheiros de Estado, dos mediadores profissionais, dos consultores solícitos, dos doadores de insights administrativos, numa espécie de viagem de retorno rumo à terra prometida dos palácios de governo. Cortejo desaforado dos restauradores.
Mas o bolsonarismo talvez nos acene com outro desafio além da imperativa necessidade de voltar a sermos reconhecidos pelos vorazes poderes do capital, do Estado ou da plebe em luta. Uma vez desterrados da administração estatal, uma vez cortada a linha telefônica com ministros e secretários de governo, uma vez perdido nosso lugar cativo entre os escudos da tropa de choque e a multidão gritalhona, defrontamo-nos, agora, com a valiosa oportunidade de perguntar por que – e se – queremos voltar a ocupar referidos espaços. Alguém exige que estejamos ali, com exceção de nós mesmos, nossas associações corporativas – ou de “classe” – e nossos amigos nos partidos outrora governantes? De onde parte a legitimação pública que torna nossas vozes objetivamente necessárias? Dos “jornalistas”? Do “público informado”? De um “meio exigente e culto”? Em qualquer caso, trata-se de uma legitimidade que não desloca nosso próprio lugar de poder e, portanto, não nos convoca a construir outras formas de poder, mas apenas a preservar aquelas às quais já estamos habituados ou fomos acostumados a ambicionar.
Não me parece necessário que os intelectuais se empoderem como intelectuais – i.e. como “porta-vozes” de um saber autorizado, nos termos de Tatiana – para que o pensamento crítico viceje no campo social. Não é necessário que nos ocultemos detrás de nossas profissões para construir um espaço digno de enunciação política. Não é necessário dissimular uma retórica professoral para impulsionar prescrições essencialmente políticas, que precisam ser defendidas abertamente como tais e amparadas por aqueles que identificam nelas uma perspectiva viável de futuro. É desejável que as prerrogativas intelectuais sejam colocadas entre parênteses justamente para que a relevância dos intelectuais seja demonstrada por canais alheios à naturalização de qualquer hierarquia e, portanto, compatíveis com o desenvolvimento da própria criticidade. Disseminar aptidões críticas não supõe ensiná-las, mas fundamentalmente praticar suas irreverentes premissas, colocá-las a prova. Este, diria eu, consiste num desafio inesperado – e potencialmente emancipador – que o bolsonarismo impõe para quem dedica uma parte significativa de sua vida ao estudo cuidadoso e sensível não só das dinâmicas sociais que definem o semblante de nosso tempo, mas também daquelas questões cujo desenvolvimento poderia ser pertinente para as forças coletivas que desejam transformar a própria realidade.
Mais traiçoeiro e retrógrado, o outro desafio colocado pelo bolsonarismo consiste em disputar com os expoentes tecnocráticos, teológicos e astrológicos da nova intelligentsia um espaço renovado para o exercício do poder anti-político. Por mais que tal poder queira se fazer passar por político, pelo mero fato de que pressupõe a aliança entre diversos grupos de interesses, ele continua sendo essencialmente anti-político porque sua reivindicação implica o reconhecimento de autoridades inquestionáveis – autoridade do pastor, mediador entre a alma dos homens e o cajado divino; autoridade do capitalista, mediador entre as necessidades materiais das massas e a necessidade de valorização do capital; autoridade do militar, mediador entre os interesses da Pátria e o estado de exceção; autoridade do parlamentar, mediador entre a deidade muda chamada Povo e as leis do Estado; autoridade do juiz, mediador entre a letra da lei o castigo dos corpos; autoridade do intelectual, mediador entre as potências em luta no corpo social e um saber disciplinar complacente, decidido a representá-las nos estreitos limites da aparelhagem estatal.
Defrontados com estes dois desafios impostos pelo fortalecimento eleitoral da direita, não deveríamos hesitar em assumir o primeiro e declinar do segundo. Caso contrário, não seremos capazes de nos desmarcar das forças que pretendemos combater, circunscrevendo o papel do intelectual ao horizonte miserável da política mediadora, que é a política infinitamente pretensiosa e excessiva do próprio Estado, tal e como o conhecemos hoje em dia.
Estas seriam basicamente minhas anotações marginais sobre o texto de Tatiana. Poderia sintetizá-las numa única frase: se a política dos intelectuais consiste em extrair da proficiência disciplinar algum poder social que não questione as bases institucionais e ideológicas da própria autoridade acadêmica, então esta não é a minha política.
Nota
[1] Para quem quiser sair do terreno intuitivo, recomendo um artigo de Pablo Rieznik (que não ganhou o prêmio Pulitzer, mas foi um grande dirigente da esquerda argentina) sobre “os intelectuais diante da crise”, ontem e hoje.
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