Por Alex Martins Moraes
Fotos de Eliezer Pedroso
O Teatro do Oprimido colocou a esquerda no espelho naquela tarde de domingo, em pleno centro de Porto Alegre. Ali estavam muitos dos dilemas que a assolam hoje em dia. E ali estava, também, o velho e bom sujeito que pode transcender esses dilemas. Esse sujeito, que vimos sobre o palco, mas não cogitamos conjurar, são as massas.
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Duas meninas se encontram num shopping. Estão felizes de se verem, sentam-se juntas, tomam as mãos uma da outra, trocam chamegos. Da sacola de papel que traz consigo, uma delas retira o presente que pretendia oferecer a sua companheira. “Vi numa loja e achei a tua cara”, comenta antes de entregar-lhe a bandeira com as cores do arco-íris. A outra sorri emocionada, aceita o presente de bom grado. Beijam-se e continuam conversando. Próximo delas, um casal heterossexual – o homem vestindo roupa esportiva da seleção brasileira – observa o idílio com desconforto. Marido e mulher tecem comentários reprovadores, primeiro entre si, depois em público. O homem se levanta, caminha na direção das meninas e grita irado contra a “pouca vergonha” da qual elas seriam as protagonistas. Uma das moças objeta que, apenas por trocarem alguns beijos, ela e sua companheira tinham se tornado alvos de uma recriminação seletiva, que não pesava sobre outros casais – inclusive mais libidinosos – que também frequentavam o shopping. O homem insiste em que a atitude das moças é especialmente indecorosa, uma péssima influência para as crianças e um insulto às famílias. Exige que ambas vão “se lamber” noutro lugar e se projeta ameaçadoramente contra uma das jovens. A outra reage, empurrando para longe o agressor. Este último solicita a intervenção do segurança do shopping. Enquanto isso, formam-se dois grupos de curiosos nas adjacências da discussão: um deles favorável às reprimendas moralistas do cidadão verde e amarelo; o outro mais solidário à causa das jovens. O segurança exige que as moças se acalmem e respeitem o ambiente ameno do centro comercial. Há uma aliança tácita entre ele e o cidadão verde e amarelo. A correlação de forças torna-se desfavorável para as meninas com a bandeira do arco-íris. Gritos de escárnio emanam do grupo de curiosos solidário com o marido moralista. O grupo oposto intimida-se. As duas namoradas terminam sendo enxotadas do recinto enquanto esbravejam contra o preconceito de que foram vítimas e acusam o funcionário do shopping de cumplicidade com aquela situação aviltante.

Eu, que observava de longe, fora do palco, misturado à platéia, senti angústia. A cena incomodava. Seu desfecho revoltava. A interpretação dos atores tinha sido envolvente a tal ponto que me fez especular sobre os desdobramentos ulteriores do conflito recém presenciado. O que fariam as moças depois de saírem de cena? Como revidariam a injúria? Como processariam, em seus diálogos íntimos, o sentido da violência sofrida? Nada disso iria acontecer, é claro. O conflito no shopping havia terminado no apagar das luzes. Tudo o que deveria ser feito, já estava feito. A questão fora encerrada de uma vez por todas. Ou melhor, estaria encerrada de uma vez por todas se aquilo não fosse Teatro do Oprimido (TO). No TO, as cenas podem se repetir. São atuadas de novo e de novo em busca de certa diferença mínima — ou máxima — que possa redundar num desfecho alternativo. Finalizado o primeiro ato, tem início uma dinâmica denominada Teatro-Fórum. Aqui, o público é convidado a intervir no desenrolar das mesmas tramas que antes foram objeto de mera observação. Não sei que definição Augusto Boal atribuiu à palavra “oprimido” quando se propôs a desenvolver seu método teatral. Por enquanto, prefiro permanecer na ignorância para dar vazão à poética. Quero delirar que o “oprimido” desse teatro é aquilo que uma cena comporta enquanto possibilidade latente, mas não revelada. Possibilidade à espera de ser atualizada; à espera de algum clinâmen que coloque em contato elementos antes dispersos, dando origem a um novo elemento ativo que redefiniria completamente o drama prévio ao seu aparecimento. O “oprimido” como aquilo que a cena oprime (ou suprime) sem inviabilizar completamente.
Intitulada Histórias Recortadas, a peça de teatro que rememoro nesta oportunidade estava composta por diversas cenas breves onde a dramatização de múltiplas opressões conduzia a um desfecho angustiante – pelo menos do ponto de vista das sensibilidades de esquerda, que são minhas sensibilidades. Uma empregada doméstica tiranizada pelos patrões hipócritas; o filho homossexual surrado pelo pai tradicionalista com a complacência da progenitora; a menina abusada sexualmente pelo marido da irmã mais velha sob o olhar omisso da mãe; a jovem esposa agredida psicologicamente pelo marido possessivo quando manifestava sua vontade de sair com as amigas; a moça espancada até sangrar pelo ex-namorado que a encontrara numa festa; a graduanda negra impedida de ler seu discurso combativo na cerimônia de formatura. As situações abordadas no espetáculo foram presumivelmente elaboradas a partir das experiências e relatos dxs próprixs atorxs, muitxs delxs bastante jovens. Talvez isso explique a pouca ênfase atribuída às opressões inerentes ao mundo do trabalho e a preferência por problematizar os embates travados no seio da família, essa instituição de cujas opressões no libertamos sob condição de vender nossos corpos a algum patrão. A exceção ficou por conta do caso da empregada doméstica, que frisava, especialmente, a subordinação racial e de gênero. Quem quiser uma visão geral da peça pode reportar-se à crítica de Juliana Coin. Ali, a autora também oferece uma contextualização do projeto Teatro de Fato, que proporcionou o ambiente de formação no qual a peça Histórias Recortadas foi cultivada ao longo de quatro meses.
Quero me deter na repetição da cena do shopping durante o Teatro-Fórum. Nesta ocasião, ficou evidente uma questão que explica as intuições que vou apresentar no final do relato. Desde já, adianto seu teor: parece-me que o TO é um poderosíssimo instrumento cartográfico, mas não exatamente das opressões que balizam nossa época e sim da subjetividade política da esquerda que se propõe a combater tais opressões.
Estávamos em pleno Teatro-Fórum. Alguém na platéia decidiu fazer a diferença no conflito cuja primeira dramatização concluíra com o escorraço de um casal lésbico nas dependências do shopping center. A cena repetiu-se. O “espect-ator” interveio em favor das moças aviltadas. Diante dos xingamentos vomitados pelo cidadão verde e amarelo, o espect-ator levantou seu celular, ativou o gravador e se dispôs a registrar as evidências do flagrante delito de homofobia que ali se manifestava. Em seguida, enquanto pedia às moças que se acalmassem, dirigiu-se ao segurança e procurou intimidá-lo, insinuando que as câmeras espalhadas pelo recinto poderiam oferecer provas jurídicas de sua inadmissível omissão. No segundo plano, os curiosos pró-cidadão verde e amarelo abafavam as ameaças com uivos e vaias. Por sua vez, o grupo potencialmente solidário à causa do arco-íris murmurava incômodo e estático. Nestas circunstâncias, o homem canarinho não tinha razões para se intimidar. A correlação de forças jogava a seu favor. O impasse prolongou-se. O desfecho libertador não chegava. Diante de uma situação difícil de reverter, o espect-ator achou por bem convidar o casal lésbico a abandonar aquele contexto inóspito em busca da delegacia de polícia mais próxima, a fim de fazer a denúncia pertinente. Digamos que esta primeira repetição da cena do shopping não transformou substancialmente a dramatização original. As moças terminaram expulsas, assim como antes.
Diante do quadro desanimador, outro espect-ator se prontificou para torcer os rumos da história. Fiquei entusiasmado. Meu coração palpitava. Intuía, no segundo plano do cenário, o ator que poderia redefinir a cena; o ator “oprimido” cuja irrupção daria, quem sabe, outro encaminhamento possível – épico? – àquela tragédia toda. Queria crer que o novo espect-ator, que agora subia resoluto as escadas laterais do palco, compartilhava comigo a mesma intuição; a mesma aposta. Esperei confiante. O espect-ator deu início à performance no momento exato em que o cidadão verde e amarelo retomava pela terceira vez sua fala sobre “pouca vergonha” e “lambidas” impróprias. O smartphone roubou novamente a cena, desta vez na função filmadora. Escudado no dispositivo eletrônico, o espect-ator informava seu contendor reacionário sobre o conteúdo criminoso do discurso que lhe era próprio. Bradava e gesticulava. Seu corpo entusiasmado e combativo roubou a cena. As jovens namoradas assumiram a ofensiva e ganharam posições na direção do cidadão verde e amarelo. A torcida conservadora, ao fundo, imersa em penumbra, vaiava extasiada. O grupo de curiosos com tendências antiopressivas encorajou-se, avançando por trás do homem canarinho. O segurança do shopping só atinava a exigir compostura aos presentes. Um novo ator, ainda tímido, parecia estar sendo convocado ao primeiro plano. Contudo, sua chegada não se concretizava. O espect-ator não o via, mas o estimulava, talvez sem sabê-lo. O verdadeiramente oprimido ameaçava sair das sombras. E o impasse prolongava-se até o insuportável. Desta vez, foi o cidadão verde e amarelo quem decidiu recuar, mesmo contando com a adesão de uma multidão alucinada, que já empunhava bandeiras nacionais.
O cidadão verde e amarelo não era – claro está – um reacionário real, mas a representação de um reacionário arquetípico através dos dotes dramatúrgicos de um ator cuja consciência real situava-se à esquerda do espectro político. Atrevo-me a dizer que essa condição subjetiva do ator levou-o a conspirar pela destituição política de seu próprio personagem, mesmo quando a correlação de forças fictícia ainda pendesse a favor dele. O recuo do personagem reacionário não foi exatamente uma resposta às forças coletivas que o confrontavam em cena, mas sim o efeito da decisão real do ator que o representava de oferecer a todos nós, espectadores, um desfecho verdadeiramente político para a situação teatralizada. Em resumo, a segunda repetição do drama do shopping culminou com a suspensão efetiva e imediata da opressão, via expulsão de facto – e não de jure – do personagem conservador. No entanto, esse final não foi fruto da configuração de forças concreta dramatizada no palco, mas sim de um ato extra-ficcional imposto pelo ator ao seu personagem. Como consequência, este último se viu “obrigado” a depor armas inclusive quando a cena, em si mesma, que é a única realidade à qual um personagem de ficção reage, não o obrigava a fazê-lo. Em poucas palavras, a consciência política real do ator forçou a produção de conseqüências ficcionais verdadeiramente libertadoras. No entanto, isso não nos impede de observar que, para que o recuo do personagem reacionário fosse obrigatório do ponto de vista ficcional, seria imprescindível que outro personagem irrompesse no drama, encarnando essa força que, ao estar ausente da ficção, teve de ser imposta por um golpe “fora de cena” do próprio ator. Esse personagem latente deixou-se antever na semi-sombra, pelas costas do cidadão verde e amarelo, enquanto as moças lésbicas declaravam sua vontade indeclinável de continuar onde estavam. Trata-se de um personagem que, apesar de insinuar sua potência, não foi explicitamente convocado em nenhum momento, ainda quando estivesse a ponto de transbordar para o primeiro plano da cena. Que personagem era esse? Chamemo-lo de “as massas”.
O método do TO permite uma colocação em ato dos dramas que interpelam seus próprios protagonistas, ao passo que estimula o público a reagir a esses mesmos dramas a partir de suas coordenadas morais e políticas. Poucas ocasiões são tão privilegiadas quanto esta à hora de promover uma inspeção cuidadosa daquilo que certo coletivo considera problemático e/ou possível em determinada época e lugar. Digamos o óbvio: o TO não é um reflexo da realidade social, mas uma representação dessa realidade segundo as sensibilidades de quem a coloca em cena. Quando o público intervém nos dramas desenvolvidos sobre o palco, está intervindo na imagem de um mundo produzida pelo grupo de atores. Esse procedimento é belíssimo: nele o espectador – ou espect-ator – é convidado a tanger a imaginação do ator, tornada palpável através da dramaturgia. O teatro do oprimido é um mundo de imagens interativas. Mas não quaisquer imagens. Trata-se, precisamente, das figuras – ou figurações – de um mundo que deve ser transformado. Um mundo que se revela a partir daquelas circunstâncias que exigem, de acordo com o olhar crítico de quem as fabula, uma intervenção urgente. Somos exortados a embrenhar-nos no drama que outros nos propõem em busca de uma saída possível. Por isso, encaro o espetáculo Histórias Recortadas como um mapa valioso que nos indica, por um lado, os impasses que nossos contemporâneos visualizam no tempo presente e, por outro lado, as rotas de fuga que iluminam um mundo possível mais além desses impasses.
Como poderíamos compor uma imagem mobilizadora dos conflitos que vivenciamos? Como poderíamos reagir a essa imagem? Que elementos saltam ao primeiro plano e que elementos ficam nas sombras sob os olhos de quem observa e intervém? Estas perguntas cruciais podem ser respondidas graças ao dispositivo de trabalho do TO. E as respostas nem sempre serão totalmente animadoras. Isto, diga-se de passagem, é outra evidência do quão estratégico pode ser o TO no momento em que precisamos definir uma posição concreta e uma forma de ação plausível no mundo que fomos obrigados a habitar. A imagem de nós mesmos que o engajamento com o dispositivo teatral pode suscitar talvez indique os limites de nossa própria capacidade de intervenção; limites que devemos superar para que a opressão também se torne realmente superável.
Penso que a cena do shopping revelou poderosamente uma limitação chamativa de nosso horizonte de intervenção política. No combate às subordinações e violências do presente, temos dificuldade de conjurar outra força que não seja a do Estado, manifesta no apelo dos espect-atores à polícia e à Justiça. Mesmo quando a imaginação de nossos contemporâneos – que é, em alguma medida, a nossa imaginação – delira uma força emancipadora alternativa, que se insinua no segundo plano, sob a forma de pessoas atentas que aguardam um chamado resoluto à ação, insistimos em olhar por sobre seus ombros, para fora da cena, na direção da delegacia de polícia ou das cortes de justiça. Quando fazemos isso, deixamos que a opressão continue em ato. Protelar o fim da opressão é aceitá-la, implicitamente, como um mal necessário que devemos suportar por determinado tempo, até que a polícia e a justiça tomem uma atitude. Em poucas palavras, ao definir a opressão como um assunto de Estado, perdemos de vista o único sujeito que poderia tomar em suas mãos a tarefa de suspender imediatamente as opressões vividas aqui e agora. Esse sujeito, que vimos sobre o palco, mas não cogitamos conjurar, são as massas.
O sujeito da libertação não é a vítima, mas sim aquela constelação coletiva que instila na “vítima” a força política que o opressor pretendia negar-lhe. O sujeito da libertação decreta o fim do teatro que opõe opressor e oprimido, estabelecendo uma nova correlação de forças na qual a opressão torna-se impensável. A libertação real é aquela que elimina a possibilidade de oprimir e, por conseguinte, emancipa o próprio opressor que, sem poder aniquilar seu objeto, terá de encará-lo como uma pessoa e responder politicamente aos seus anseios, demandas e necessidades. A libertação real não é uma utopia distante que, por enquanto, podemos substituir pelo Direito e pela polícia. Enquanto recorrermos a essas duas entidades, negaremos a nós mesmos a possibilidade de nomear a opressão como tal e reagir à altura. A opressão é a prerrogativa que se arrogam alguns de excluir os outros da política a fim de deliberar autocraticamente sobre suas vidas e seus destinos. A libertação, por sua vez, é a politização efetiva daqueles que não poderiam fazer política. E a política é um assunto de coletividades e de produção de enunciados que mobilizam as pessoas, desindividualizam os dramas e inauguram processos massivos.
Se, superando a timidez, eu pudesse intervir na cena do shopping, deixaria meu celular na poltrona, subiria ao palco, passaria reto pelas vítimas e vitimários, desapareceria na penumbra do segundo plano e só voltaria dali acompanhado pelo sujeito decisivo do espetáculo, a saber: a agrupação heterogênea de atores que não se perfilou sob as bandeiras nacionais e que, partilhando um rumoroso mal-estar, aguardava, creio eu, um chamado à ação; uma oportunidade de restaurar a força política sobre cuja negação o opressor pretendeu teatralizar a impotência do oprimido.
O TO colocou a esquerda diante do espelho naquela tarde de domingo, 17 de Novembro, no Teatro Dante Barone, em Porto Alegre. Ali estavam muitos dos dilemas que a assolam hoje em dia. E ali estava, também, o bom e velho sujeito que pode transcender esses dilemas, mas sob condição de que deixemos para trás as luzes da esfera pública cooptada pelo Estado e tentemos ensaiar uma linguagem nova, capaz transformar nosso rechaço à opressão numa resposta direta das massas em nome da libertação.
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