Por Máquina Crísica – Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC)
Em 2011, xs estudantes, como coletivo – e não mais como “discentes” que pertencem a um diagrama institucional definido –, levantaram sua demanda universal: “parar para pensar”. Elxs o fizeram em contraposição ao “fazer para satisfazer” inerente ao produtivismo. Esta pequena mostra recupera indícios deste movimento – ou melhor, paralisação – de estudantes que decidiram parar completamente e por uma semana a máquina disciplinar.
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Fomos esperados na terra. Tanto nós como as gerações que nos precederam possuem uma frágil força messiânica sobre a qual o passado tem um direito.
Walter Benjamin, Teses de filosofia da história
Temos razão de nos revoltar.
Mao Tsé-Tung
O fluxo da paralisia. O que parece ser a cisão provocada pela tecnocracia; cisão que atravessa os sujeitos e alcança o íntimo. Fissura entre o desejo, sempre farto de sua gestão, e o objeto do desejo, sempre expropriado em sua metamorfose criativa: a violência da burocracia, dos papéis e dos sentimentos; os estatutos para sedimentar a exclusão de conhecimentos que não se deixam domesticar; as metas inalcançáveis em sã consciência, os méritos impossíveis… o lugar do insuportável. Um fluxo desesperado no qual se avança estando quieto. Inércia: todxs automatizadxs e, claro, tristes, incapazes de reconhecermo-nos naquilo que supostamente nos movia. Isto era viver o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social quando já sabíamos muito bem que dispúnhamos das armas para fazer uma crítica mordaz das formas institucionais nas quais se reproduziam privilégios de enunciação, críticas acríticas da crítica e violências contra corpos que ousavam pensar “mais além do além” da disciplina.
Na primavera de 2011, algo inusitado começou a rondar os corredores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). O sintoma de uma cumplicidade subversiva que não demoraria em encontrar as palavras que pudessem sedimentá-la. Éramos, então, estudantes de uma das pós-graduações mais renomadas do país. Por conseguinte, não tínhamos direito a não sermos felizes, a não estarmos satisfeitos, a não agradecer todos os dias por gozar de um lugar ao sol. Desafiar a burocracia, formular exigências, pedir voz, garantias e participação foram os atrevimentos que nos renderam a pecha de crianças mimadas da pátria progressista. Houve professorxs que viram em nossa irreverência um teatro edípico que exigia castigo. E, de fato, fomos castigadxs. Otimistas que éramos, não esperávamos a repressão. Quando ela veio, muitxs choraram. Mas não se tratava do choro infantil no colo materno, e sim do pranto de quem é empurrado ao amadurecimento repentino em pleno luto: morrera, para algumas/alguns de nós, qualquer esperança de satisfação nos quadros institucionais existentes. Buscaríamos outras disciplinas para nossos corpos e consciências.
Houve incertezas, sem dúvida. Mas a necessidade de enunciar um pensamento que questionasse o fluxo paralítico dos conceitos vendáveis e do produtivismo mortificante exigia certo desdobramento político. Um desdobramento que, por ser humilde, acabou mostrando-se radicalmente insurgente: decidimos parar. Nem mais, nem menos. Atrevemo-nos a “puxar os freios de emergência”, diria Walter Benjamin. Quisemos deter uma locomotiva que não cessava de acidentar-se nas mesmas vias de sempre. Deste modo, xs estudantes, como coletivo – e não mais como “discentes” que pertencem a um diagrama institucional definido –, levantaram sua demanda universal: “parar para pensar”. Elxs o fizeram em contraposição ao “fazer para satisfazer” inerente ao produtivismo. Ontem e hoje, em qualquer movimento que almeje a insurgência, pensar significa testar as inconsistências de um presente que nega qualquer subjetivação original, de modo a sinalizar uma saída possível ao impasse vigente. “Parar para pensar” significava, justamente, uma busca de superação daquilo que oprimia a todxs, sem importar sua função institucional. E o que oprimia a todxs – estudantes, professorxs e técnicos administrativos – era a própria ausência de pensamento e, portanto, a sujeição a um maquinismo impessoal saturado de lugares comuns, “consensos” prévios, rituais hierárquicos e formulários para preencher. Tratava-se de um maquinismo de gestão orientado ao apaziguamento do desejo, à obliteração da paixão pelo real e à substituição dessa paixão pelo realismo disciplinar em cujo marco os possíveis inexistem.
Em meio à insurgência da primavera de 2011 surgiram imagens potentes que brincavam de formalizar os slogans irruptivos de quem havia “parado para pensar”. Em traços gerais, é precisamente isso que constitui a estética emancipadora: uma postulação formal de conteúdos coletivamente construídos com o propósito de interpelar corpos situados. Sendo assim, a desestabilização dos enunciados coercitivos deveria passar pelas próprias figuras que pareciam dar-lhes consistência; figuras das quais a instituição se valia para exercer a violência epistêmica contra quem carecia de luz – os a-lunos, a-lumni. Deste modo, autores canônicos da antropologia disciplinar foram postos para segurar cartazes que enunciavam as premissas daquelxs estudantes que ousaram paralisar o que antes xs paralisava. Isto equivalia a levantar as seguintes indagações: se a antropologia nos promete um espaço de encontro, engajamento e pensamento situado, por que, então, suas formas de institucionalização precarizam objetivamente essa promessa? Por que a mesma disciplina que nos convida a pensar junto aos sujeitos nos impossibilita, por outro lado, de devir sujeitos? Por que a mesma disciplina que nos exorta a reconhecer a alteridade alheia também nos impede de tornarmo-nos radicalmente outros? E, sobretudo, por que deveríamos declinar de um pensamento vivaz, que se insinua na detenção da própria máquina disciplinar, em favor da preservação de uma categoria – e, portanto, de uma posição de sujeito – tão obscura como a do “aluno”?
Esta pequena mostra recupera indícios de um movimento – ou melhor, de uma paralisação – que tornou necessárias e possíveis as questões que acabamos de recuperar. Pensamos nesses indícios fragmentários, que outrora saturaram as paredes do IFCH, como a evidência de um passado que não encontra no presente outra coisa senão a negação de suas problemáticas e premissas. A recuperação dos indícios da greve estudantil da primavera de 2011 é parte do projeto “cartografias da dissidência”, conduzido há oito anos pelo coletivo Máquina Crísica – Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC). No marco deste projeto, viemos mapeando as condições subjetivas de possibilidade – isto é, o pensamento – que caracterizaram e caracterizam a produção de “antropologias de outra forma”, situadas mais além dos regimes de disciplinamento que determinam, em cada instituição, as formas legítimas de empreender a pesquisa social e difundir seus resultados.
Nesta mostra, a iconografia das práticas dissidentes protagonizadas em 2011 vem acompanhada de algumas fotografias garimpadas no ciberespaço, em álbuns esquecidos e sites abandonados. A superfície pixelizada dessas imagens de autoria desconhecida retém o movimento de certos corpos que encontraram, na paralisação, uma via para tornarem-se sujeitos. É sob a luz dessa subjetivação pretérita que o disciplinamento atual de nossas vidas aparece como o lugar de uma possível insurgência. Nestas imagens, tenuemente atadas a um acontecimento fenecido, talvez possamos cifrar uma capacidade de ação que nos corresponde, mas sob a condição de que – para retornar pela última vez a Benjamin – estejamos dispostos a lançar mão de nossa própria e frágil “força messiânica”.
Por enquanto, só uma coisa é certa: em qualquer tempo e em qualquer circunstância, temos razão de nos revoltar. Basta parar para pensar.
Confira abaixo as imagens da mostra:
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