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Jamais fomos democratas. Sobre a beleza emancipadora da ditadura.

Por João Alcântara Illa

O forçamento real do estado de coisas existente só pode assumir duas formas: ou ditadura – que extrai sua força da tomada do poder sobre nós mesmos – ou golpe de estado. Saída emancipadora e saída reacionária. A democracia, enquanto regime político, não é uma escolha e tampouco autoriza escolhas reais. Ela é o que os golpes de estado nos herdam depois de aniquilar ou cooptar, em pleno estado de exceção, qualquer ensejo de autonomia política radical com penetração massiva.

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Ditadura não é um conceito alheio às políticas emancipatórias. Longe disso, constitui sua expressão mais cristalina. Este é o ponto de vista sustentado por Cécile Winter num texto impressionante, intitulado “Ditadura liberadora: prática comunista e a Revolução Cultural”. O texto em questão está incluído na coletânea A ideia de comunismo. Conferência de Seul (2013), que reúne as intervenções realizadas no ciclo de palestras de mesmo nome, promovido por Slavoj Žižek e Alain Badiou desde 2009 em diferentes cidades do mundo. Escrevo estas linhas à luz das reflexões da autora.

Winter abre sua exposição com a seguinte pergunta: “por que devemos supor que a palavra ditadura necessariamente deve ser reservada para o Estado?”. É verdade que,  desde sua instalação no direito romano, o termo remeteu quase exclusivamente a uma expressão particular do poder estatal. Contudo, no final do século XIX, a noção de ditadura experimentou uma inflexão radical. Marx foi o responsável por esse deslocamento semântico. Sob a alcunha de “ditadura do proletariado”, ele formalizou uma possibilidade inédita revelada pela Comuna de Paris. Tratava-se da organização de um poder popular afirmativo e em antagonismo com o Estado, orientado à destruição das condições materiais e jurídicas necessárias à dominação burguesa. Finalmente, através da Comuna, a política proletária teria encontrado uma manifestação positiva mais além do terreno da luta de classes. A ditadura proletária era a forma política concreta da libertação dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores, rumo ao comunismo. Eureka!

Durante o século XX, alguns regimes socialistas se fizeram chamar “estados de ditadura proletária”, o que seria um oximoro do ponto de vista do conceito formulado por Marx. Contra o esvaziamento do conceito, e no calor da Revolução Cultural chinesa, o proletariado de Xangai voltou a reivindicar o melhor da tradição ditatorial, em linha direta com a Comuna de Paris. Em 1967, a autodenominada Comuna de Xangai destituiu os quadros locais do Partido Comunista e se propôs a exercer o que alguns chamaram de “ditadura total sobre a burguesia” – que, neste caso, eram os próprios dirigentes comunistas chineses que flertavam com uma restauração capitalista…

Em sua acepção mais miserável, professada pela burguesia ocidental e por seus ideólogos, o termo ditadura é usado – de modo sempre oportunista – para denotar a ausência de procedimento eleitoral e a falta de alternância dos partidos no poder.

Para Cécile Winter, quem fala de ditadura, em qualquer caso, fala de poder. Para bem ou para mal. Na tradição de esquerda, trata-se de um “poder de baixo para cima, oposto ao poder ordinário do Estado. Autoridade frágil, não está destinada a durar; tendo a sua disposição […] nada mais que a capacidade de mobilizar e formular, assim como a dedicação, a energia por parte de seus embandeirados, no momento de somar apoios para sua causa e, finalmente, sua inteligente consciência do quão longe podem chegar com ela”. A obstinação coletiva no tratamento de uma causa é a ditadura. Winter a chama carinhosamente de “irmã menor da democracia” e sublinha sua beleza superior e infrequente.  Uma beleza que “merece todos os nossos esforços”. Sem essa irmãzinha, simplesmente deveríamos abandonar toda a pretensão de levar a sério nossxs contemporâneos – nossxs iguais – e de experimentar, junto delxs, o máximo horizonte do que somos capazes de postular e executar em termos políticos. Privados da capacidade ditatorial, permaneceríamos despojados de qualquer condição de agir. “Condição”, vale lembrar, deriva do vocábulo latino condicere, que está formado pelo prefixo con- (conjuntamente, globalmente) e pelo o verbo dicere, que não é apenas dizer, mas também indicar e orientar. Ditadura pode ser encarada como um exercício de poder solidário ao dictum, isto é, ao ditado que um coletivo dá a si mesmo com vistas à realização de possibilidades não con-dicentes com as prerrogativas até então atribuídas a cada um de seus membros.

Para Winter, a forma elementar e paradigmática da ditadura é o comitê de greve – esse velho conhecido de quem se esforça por viver uma vida razoavelmente significativa, mesmo em meio a uma multidão de despotismos. Em primeiro lugar, como saberão algumas/alguns, o comitê de greve auto-declara sua existência, sem que nenhuma instância oficial o tenha convocado. O que torna o comitê necessário é a causa com a qual seus integrantes passam a estar comprometidos. Geralmente, esta causa consiste na recusa de uma situação dada; recusa que, até então, não havia tido a oportunidade expressar-se. Quando a recusa encontra, por fim, um lugar para ser apresentada e discutida em coletivo, abre-se a possibilidade de deliberar uma linha de ação compartilhada. O comitê de greve precisa definir sua orientação, sua plataforma e seus slogans. Torna-se urgente, portanto, conformar um acordo a respeito de certas palavras, de certas declarações, de certo dictum. “Algo deve ser, que antes não era”, escreve Winter. Ela prossegue: “sobre a base desta nova palavra a coletividade unida levanta sua mão, decide comprometer-se”.

“Os salários atrasados devem ser pagos”; “as/os trabalhadorxs demitidos devem ser recontratados”; “esta empresa deve oferecer espaços dignos de trabalho”; “a UBER precisa indenizar motoristas acidentados”; “a Rappi não pode nos pressionar a aceitar novos pedidos sob péssimas condições climáticas”; “xs estudantes devem ter paridade no conselho universitário”. Eis alguns ditados que interrompem a lei das empresas e instituições, opondo a ela um novo espaço de deliberação e, por conseguinte, um novo sujeito de poder.

Uma vez definido seu ditado, o comitê de greve se vê diante da tarefa de sensibilizar cada um dos elementos da situação onde ele se instala. O ditado só será efetivo quando incidir sobre o desdobramento de uma prática grupal resolutiva. E apenas este desdobramento oferecerá uma imagem correta do que determinado conjunto de pessoas pode empreender no intuito de fazer efetivo o enunciado sob o qual se reúne. Sendo assim, a tarefa de persuasão torna-se imperiosa.

Quando um ditado irrompe, os componentes de qualquer situação costumam se distribuir entre uma direita, um centro e uma esquerda. A esquerda é aquele segmento que, a princípio, sustenta o ditado. A direita aposta no imobilismo. Para tanto, não hesita em recorrer ao argumento do mal menor: é melhor continuar vivendo as coisas tal e como se apresentam do que correr o risco de perder tudo e ser esmagado pelo poder dos chefes. O centro, a grande maioria, simplesmente não se mobiliza. Segue a lei da inércia. Permanece, então, sob controle da direita, mesmo quando não reivindique ou corrobore explicitamente seu discurso.

O centro é funcional à direita, mas pode, de qualquer forma, ser disputado. Em tese, é viável colocá-lo sob o ditado da esquerda. Mas como? Simples: mediante a discussão incansável da ideia básica inerente ao ditado. Contudo, esse processo de discussão estará sempre ameaçado por um procedimento nem um pouco neutro, mas em geral bem aceito, que consiste em convocar eleições, chamar à votação. A vitória da direita depende de que tal procedimento seja ativado o antes possível. Por isso, segundo Winter, “a autoridade do lugar […] sempre exige eleições; sempre apela à explicação individual e a contagem dos indivíduos, que acabará confirmando que sem dúvidas existe o que já havia existido na impotência estática e estatal de sua dissipação, e nada mais”.

No caso de serem instaladas precocemente, as eleições tendem a interromper o processo de mobilização coletiva e a substituir o debate de ideias pela manifestação autocrática da opinião individual. É por isso que, voltando às meditações de Winter, “a direita pede uma votação; a esquerda, assembleias. Esta é a norma geral”. As coisas se dão desse modo porque a esquerda sempre entra no páreo em minoria. A extensão do seu espaço político é inseparável da criação de uma nova zona de expressão coletiva que não passe pela confirmação apressada das posições existentes. A assembleia cumpre tal função: ali, as pessoas são expostas a um ditado que procura revelar nelas potencialidades inéditas cuja verificação é resultado do convencimento paulatino e da experimentação gradual. Nestes termos, sob a ditadura da assembleia, uma ideia governa sobre o atomismo da opinião individual, mas sem anulá-la. Ou seja: submete-se a opinião individual à mediação da causa coletiva. Isto implica fazê-la prestar contas – afirmativa ou negativamente – de sua própria razão de ser perante a possibilidade – leia-se, o ditado – em torno do qual a própria assembleia reuniu-se.

Para simplificar: em assembleia, a opinião individual deixa de ter valor deliberativo a priori, posto que não se prolonga imediatamente no voto. Em vez disso, começa a ser encarada como uma posição em debate, que precisa justificar-se em relação ao ditado que norteia a discussão geral.

“Os salários atrasados devem ser pagos”; “as/os trabalhadorxs demitidos devem ser recontratados”. Podemos sustentar na prática estes ditados? Sim? Não? Por quê? A assembleia começa onde a mera escolha termina. A parte fundamental da assembleia é introduzida por um “por que”. Enquanto a eleição/escolha suprime o debate, marca seu encerramento, a assembleia, no sentido oposto, realiza o debate, empurra-o idealmente a sua conclusão lógica e dela extrai um critério para a ação.

A dialética entre o ditado e as questões e/ou questionamentos por ele suscitados configura o espaço político da ditadura. A ditadura só persiste enquanto essa dialética funcionar. Quanto mais intenso e resolutivo for o jogo entre ditado (tese), questionamento (antítese) e resolução (síntese), mais efetivamente a ditadura redefinirá a realidade na qual foi ilegalmente – ou melhor, a-legalmente – implantada como dispositivo de emancipação. Afinal, o que é a emancipação coletiva senão o exercício da autonomia, isto é, da autodeterminação sistemática das pessoas por fora daquelas posições regulamentares de sujeito que as transformam em objeto de uma heteronomia?

A ditadura emancipa, mas não pode durar. Sua orientação é essencialmente prática, seu ponto de partida é um ditado sobre o que se pode fazer aqui e agora. Uma vez realizadas as possibilidades que a ditadura anunciou a quem se submeteu ao dictum, a conjuntura inicial já estará profundamente redefinida. A partir daí, será necessário criar outros ditados para tornar novamente atual o trabalho ininterrupto da emancipação.

O comitê de greve persegue os pelegos, convoca os patrões para darem explicações, interdita prédios, corta ruas, faz piquetes, invade escritórios. Tudo isso é verdade. Entretanto, no auge de sua juventude a ditadura do comitê terá colocado a coerção em detrimento da persuasão, principalmente no contexto das assembleias – órgão de poder ditatorial por excelência. A coerção só entra em vigor depois da assembleia, para garantir sua linha de ação e resguardá-la contra saídas individualizantes e arbitrárias.  A coerção é parte meramente estratégica do poder ditatorial. Ela não existe como princípio político, e sim como um requisito de sobrevivência imposto pelo contexto. Portanto, se a coerção começar a ser empregada para regular o processo interno de problematização e especificação prática do dictum, provavelmente tenhamos um indício de que a ditadura envelheceu. Seus embandeirados fariam bem em dissolvê-la nesse exato momento.

A ditadura não tem inimigos imaginários que justifiquem a ativação da vigilância constante sobre seus protagonistas. Ela se imuniza contra o inimigo imaginário ao promover os encontros cara a cara, onde cada um fala por si e presta contas do que disse ou fez, sempre que requerido. A perseguição e a coação inibem os encontros cara a cara, estimulam a conspiração e borram a fronteira entre antagonismos principais e antagonismos secundários. Quando isso acontece, cada esboço de dissidência acaba equivalendo a um alinhamento com o inimigo real, aquele que nunca se submeteu ao dictum e sobre o qual a ditadura deveria exercer-se exclusivamente.

A ditadura cria uma situação de poder dual. Seu interior é a assembleia, onde o dictum organiza a multiplicação de posições e sua posterior mediação. O exterior da ditadura é aquele espaço de poder cuja existência ameaça, potencialmente, a concretização do ditado. A rigor, é tal espaço de poder que se encontra sob ditadura. Dele se exigem medidas e recursos específicos. É ele que se pretende governar. Nas palavras de Winter, a ditadura é um período em que o “estado” submete-se a uma “operação de forçamento”. Seria interessante compreender “estado” num sentido amplo, como o conjunto das posições de poder que afiança a ordem vigente, ao passo que retém ou controla uma porção significativa dos recursos necessários a sua manutenção. A ditadura, então, é praticada sobre o estado: “os livros de história falam de tempos de poder dual. Há clubes, existem a assembleia, os comitês, os sovietes”. Nestas circunstâncias de dualidade, o poder define-se como uma articulação contraditória entre estado e ditadura.  Esta última subsume o estado, impede que ele se transforme no espaço exclusivo de toda deliberação. Fica claro, portanto, que a ditadura não é fruto de nenhum golpe de Estado. Ao contrário, ela divide e polariza o sistema de poder.

A ditadura começa quando as pessoas decidem experimentar o quão longe podem chegar através de sua própria capacidade de formulação e mobilização, sem limitar-se aos interesses e prerrogativas que, até então, um estado lhes outorgava. Em poucas palavras, o poder ditatorial vige sobre o estado e à distância do estado. Não está alojado no estado de exceção, mas sim no de excepcionalidade. Manifesta a posição de um sujeito novo, e nunca a tirania de um mandatário que, valendo-se do próprio poder de estado, suspende as garantias constitucionais para, assim, tornar-se a fonte soberana de toda a lei. O dictum é imanente ao coletivo que o sustenta, enquanto que o soberano/déspota é imanente ao estado.

Neste ponto culminante do argumento, alguns/algumas poderiam sinalizar apressadamente que “ditadura” só é outro nome para o poder das assembleias; poder democrático radical, liberto das determinações estatais. Nada mais errôneo. A ditadura pressupõe o estado e opera sobre ele a transformação da conjuntura. Nesse processo, como já indiquei, ela poderá criar seus órgãos de coerção, destinados a debilitar constantemente a cristalização de uma burocracia corporativa que concentre novamente as capacidades resolutivas, fixe os protocolos e as funções e pretenda transformá-los em requisitos prévios para qualquer medida transformadora, presente ou futura. O poder ditatorial é uma política sobre o estado – por oposição às políticas de Estado, ou ainda, às políticas públicas. Não se reduz jamais ao imediatismo conselhista. Não pretende dar as costas ao elefante parado no meio da sala. Recusa-se a embarcar numa fabulação que se prive de garantias claras no tocante à correlação de forças concreta.

Se algum dia as assembleias e conselhos governarem plenipotenciários, sem recurso à ditadura e mais além de qualquer dualidade, isso terá sido fruto de um exercício prévio de coerção deliberada sobre as forças de estado. A sociedade dos conselhos terá sido parida por um contrapoder incansável, imposto uma e outra vez até esgotar a resistência das contradições.

Não nos enganemos, amigxs: o forçamento real do estado de coisas existente só pode assumir duas formas. Winter as resume assim: ou ditadura – “que extrai sua força da tomada do poder sobre nós mesmos” – ou golpe de estado. Saída emancipadora e saída reacionária. A democracia, enquanto regime político, não é uma escolha e tampouco autoriza escolhas reais. Ela é o que os golpes de estado nos herdam depois de aniquilar ou cooptar, em pleno estado de exceção, qualquer ensejo de autonomia política radical com penetração massiva. A democracia é apenas a regulamentação do status quo delineado pelo último golpe de estado.

Nossas exigências sempre serão ambiciosas demais para que a democracia possa comportá-las. Por isso, antes que a situação descambe em um novo golpe de estado, conviria ir preparando nossa própria ditadura.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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