Por Alex Moraes
A etnografia pode ser liberada da Antropologia. Não para depois ser entregue à ditadura de outra disciplina, mas sim para existir por si mesma, indisciplinada. Liberta de toda Antropologia, a etnografia está autorizada, inclusive, a despir-se de seu nome pomposo e vazio e deixar-se chamar a si mesma de “pesquisa”. Assim, talvez ela possa revelar potencialidades inauditas; potencialidades que a própria Antropologia lhe atribui para inviabilizá-las logo em seguida. Que potencialidades seriam essas? Mao Tsé-Tung explica…
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Quem não pesquisou não tem direito de opinar.
Mao Tsé-Tung
Dia desses fui bisbilhotar um grupo de trabalho sobre pesquisa etnográfica, organizado no contexto de uma semana acadêmica promovida por estudantes de antropologia. Chamou-me a atenção a variedade das formas de engajamento e das situações de interlocução que xs jovens pesquisadorxs participantes do encontro comunicavam às/aos suas/seus colegas. A maioria delxs estava começando o trabalho de campo do mestrado ou do doutorado. Suponho que buscavam no GT alguma cumplicidade teórica e metodológica para continuar colocando à prova seus respectivos experimentos investigativos. Contudo, mesmo nesses espaços potencialmente mais suscetíveis à inventividade, os cacoetes disciplinares continuam irrompendo, aqui e ali. Foi o que ocorreu no GT em questão, não sem despertar o desconforto silencioso – mas perceptível – da maioria dxs presentes. Na ausência da clarividente voz professoral, houve indivíduos que acharam por bem teatralizá-la, de modo que a dinâmica geral do GT emulava a divisão de funções típica dos congressos convencionais da antropologia disciplinar. Por um lado, estavam xs “apresentadorxs de trabalhos”. Por outro lado, perfilavam-se xs “comentadorxs”. Diga-se de passagem, o tempo total de fala destxs últimxs superou, segundo minha cronometragem, a duração das intervenções realizadas pelxs primeirxs. De modo geral, xs “comentadorxs” se dedicavam a fazer sugestões de literatura especializada que pudessem beneficiar os esforços reflexivos dxs “apresentadorxs”. O critério para oferecer tais sugestões era mais ou menos o seguinte: selecionava-se alguma palavra-chave ou categoria recorrente na fala dx apresentador/a – por exemplo: mulheres negras, mobilidade urbana – para, em seguida, remetê-la a algum artigo – ou coletânea de artigos – que versasse sobre a “mesma” “temática”. Nem bem surgia uma experiência original de trabalho de campo, vinha o cânone e a sufocava. Era como se tudo já estivesse dito. Bastava ler. À parte do arrivismo e da busca de autoafirmação disciplinar evidentes na atitude de certos comentadores, nela também podemos adivinhar uma apresentação quase caricatural do lugar atribuído à atividade de pesquisa no mundo do disciplinamento antropológico. Nesse mundo, a pesquisa é o substrato passivo do processo teórico da Antropologia.
Claude Lévi-Strauss já havia colocado cada coisa no seu devido lugar em meados do século XX, quando atribuiu à etnografia a tarefa de coleta de dados e estabeleceu que a antropologia realizaria a análise comparada das sociedades e das culturas prospectadas pelos etnógrafos de modo a alimentar a reflexão teórica. Hoje em dia, é de bom tom concentrar essas duas atividades na mesma pessoa. Sendo assim, todxs xs antropólogxs oscilam entre o pólo etnográfico e o pólo antropológico propriamente dito, disciplinando suas etnografias à luz dos imperativos analíticos, das agendas teóricas e das modas conceituais estabelecidos por suas respectivas antropologias. Acho que o Coletivo Máquina Crísica se referia precisamente a isso quando sinalizava que a/o praticante da antropologia precisa interiorizar uma espécie de “fronteira disciplinar” que o/a transforma num/numa paranoico/a irremediável; um/a paranoico/a que precisa se perguntar o tempo inteiro até que ponto seu engajamento com a realidade social está em condições de suplementar uma agenda reflexiva séria, ditada pela Antropologia – esse grande Outro. A experiência investigativa é o lugar da emergência do que é heteróclito e heterogêneo, ao passo que a disciplina é o lugar das perguntas adequadas e da produção final de um sentido para o mundo. Neste quadro, a/o pesquisador/a tenta evitar obstinadamente a queda no nonsense, agarrando-se com força na corda estabilizadora proporcionada pela filiação disciplinar. (Entre parênteses, observemos que o nonsense é um subproduto da própria disciplina e não um risco a priori do qual devamos nos resguardar. A disciplina estabelece a ordem do discurso e, por conseguinte, define como desordem – mero dado à espera de sistematização, mero epifenômeno de um esquema oculto – o que escapa dos seus quadros conceituais ou ainda não pode ser enunciado através deles).
No mundo da disciplina antropológica, é praticamente senso comum a suposição de que a singularidade do “olhar antropológico” radica no fato de ele estar orientado pela pesquisa etnográfica. Também é senso comum que a pesquisa etnográfica implica um levantamento direto de material empírico que é realizada pelx etnógrafx/antropólogx no contexto de um trabalho de campo duradouro junto a alguma coletividade humana específica. Quanto a mim – e à luz dos fatos –, continuo pensando que Lévi-Strauss forneceu um critério mais fiável para que possamos tanger a especificidade da antropologia (ou do “olhar antropológico”): tal especificidade encontra-se na subsunção da etnografia (coleta) à antropologia (sistematização teórica). A antropologia dota de relevância teórica o conteúdo da prática etnográfica de acordo com certa problemática disciplinar. No final das contas, o trabalho de campo é o lugar onde nos encontramos com outras pessoas cujos enunciados serão postos a serviço da disciplina pela qual militamos. A Antropologia exige que toda e qualquer pesquisa executada sob sua égide assuma a forma de uma etnografia servil. Nos quadros da Antropologia, a etnografia é uma aproximação empírica que serve à reprodução da disciplina e valida seus debates internos. Os/as “comentadorxs” do GT que eu mencionei mais acima estavam colocando em ato uma coexistência sobredeterminada da etnografia com a Antropologia. Por isso, ali não importava muito a reflexão concreta dxs “apresentadorxs” sobre as problemáticas originadas em campo. O GT era um momento privilegiado para deslocar essas problemáticas – que até então eram as únicas que importavam – em nome das agendas disciplinares em voga. Daí que só importassem aos/às “comentadorxs” aquelas palavras-chave que dessem ignição na máquina discursiva da Antropologia.
Sem mais delongas, quero dizer que a etnografia pode ser liberada da Antropologia. Não para depois ser entregue à ditadura de outra disciplina, mas sim para existir por si mesma. Liberta de toda Antropologia, a etnografia está autorizada, inclusive, a despir-se de seu nome pomposo e vazio – um nome que só faz sentido sob tutela antropológica – e deixar-se chamar a si mesma de “pesquisa”. Assim, talvez ela possa revelar potencialidades inauditas; potencialidades que a própria Antropologia lhe atribui para inviabilizá-las logo em seguida. Que potencialidades seriam essas? Digamos que são aquelas inerentes a qualquer encontro com outras pessoas. Quando já não serve a nenhuma disciplina, esse encontro e sua duração – isto é, seu prolongamento no tempo – servem a si mesmos. Pesquisar com xs outrxs é cultivar junto delxs uma problemática em comum que justifique tal convívio e lhe confira sentido. Nestes termos, o encontro com as pessoas é algo que gera, potencialmente, um novo coletivo. O que se partilha nesse coletivo é a teoria de sua própria existência. Se a pesquisa está orientada, em primeira instância, à formação de um coletivo e à enunciação compartilhada do seu ser e do seu poder-ser, então por que não chamá-la de “pesquisa política”? A pesquisa política media a composição e a auto-enunciação de um coletivo previamente inexistente.
Eis que chega a hora de justificar o título desta intervenção. Naturalmente, o título é abusivo e propagandístico como todos aqueles que encabeçam textos divulgados em redes sociais. Espero que a/o leitor/a perdoe essa concessão oportunista ao regime de audiência imposto pelas esferas públicas do ciberespaço. Proponho que encaremos o título deste texto como a desculpa para um encontro. Se o encontro tiver valido a pena, o título estará justificado.
Comecemos corrigindo um possível mal-entendido. Daqui para frente, não falarei de etnografia, mas de pesquisa política nos termos já aludidos. Mao Tsé-Tung foi um precoce formulador desse tipo de abordagem. Depois dele, vieram outrxs autorxs. Entretanto, são rarxs aquelxs que o evocam explicitamente nos dias de hoje, porque seu nome está proibido. Ou melhor, só está autorizado quando o assunto são as catástrofes humanitárias desatadas pela mortal utopia comunista. Seja como for, Mao é aquela velha lanterna vermelha que ilumina os primeiros movimentos da tradição subterrânea da pesquisa indisciplinada. Ele estabeleceu que a pesquisa fosse condição primeira para que alguém pudesse opinar em política. “Quem não pesquisou não tem direito a opinar”, escreveu em 1930 numa crítica ao “culto dos livros”. Três anos antes, estivera entre os camponeses da província de Junan, onde, em suas palavras, fez “pesquisa de campo sobre a situação em cinco distritos: Siangtan, Siangsiang, Jengshan, Liling y Changshá”. À época, Junan era o epicentro do movimento camponês na China. Ali, tinham se formado numerosas associações que agrupavam, majoritariamente, “camponeses pobres”, “camponeses indigentes” e “intelectuais pobres”: um caldo de cultura explosivo que desencadeou a perseguição generalizada dos chamados “shenshi [senhores feudais] malvados”. Esta perseguição incluía a aplicação de multas e contribuições compulsórias contra aqueles latifundiários que se opunham à formação das associações camponesas. Além disso, os camponeses organizados promoviam rituais de deposição política que eram vistos como “excessivos” em certos círculos urbanos associados ao comunismo e ao nacionalismo chineses. Vejamos o relato de Mao sobre alguns curiosos “excessos” presenciados por ele durante o trabalho de campo:
Ocorre frequentemente que os camponeses organizem manifestações de massa contra um déspota local ou shenshi malvado, abertamente inimigo das associações camponesas. Os manifestantes comem em sua casa e, como é natural, sacrificam porcos e consomem cereais. Faz pouco, em Machiaje, distrito de Siangtan, uma multidão de quinze mil pessoas realizou uma visita punitiva deste tipo a seis famílias de shenshi malvados; ficaram ali por quatro dias e degolaram mais de 130 porcos. Estas manifestações terminam, no geral, com a imposição de uma multa.
E mais adiante:
Desfiles com chapéu de cone. Esta prática é muito frequente em todos os lugares. Colocam-se chapéus de cone nos déspotas locais e nos shenshi malvados com inscrições do tipo: “déspota local fulano de tal” ou “shenshi malvado mengano”. Amarrados com uma corda, eles devem desfilar no meio de grandes multidões. Às vezes soam os gongos e as bandeiras são agitadas para chamar a atenção das pessoas. Esta forma de castigo, mais do que nenhuma outra, provoca enorme temor nos déspotas locais e shenshi malvados. Quem foi castigado dessa maneira, mesmo que somente uma vez, fica completamente desacreditado e já não consegue mais erguer a cabeça. Por isso, os ricos geralmente preferem pagar uma multa em vez de vestir o chapéu de cone. […] Certa associação camponesa muito engenhosa prendeu um shenshi malvado e declarou que, nesse mesmo dia, ele receberia o chapéu de cone. O shenshi malvado empalideceu de medo. Contudo, a associação camponesa decidiu que não colocaria o chapéu nesse dia, considerando que, se assim o fizesse, o shenshi malvado poderia, aceitando seu destino, perder o medo do castigo. Assim, seria melhor ir para casa e deixar para outro dia a colocação do chapéu. Sem saber quando receberia o cone sobre sua cabeça, o shenshi malvado vivia dia após dia em suspense constante, sem poder dormir tranquilo.
O propósito de Mao no informe onde constam os relatos que acabei de citar era relativizar a acusação de que os camponeses estavam sendo “excessivos” no exercício de seu poder. Mao pensava que essas pessoas mereciam apoio irrestrito de seu partido – o Partido Comunista da China (PCCh). Ele pôde constatar que os métodos empregados pelos camponeses respondiam não apenas ao espírito da revanche, mas também – e fundamentalmente – a uma leitura adequada do tipo de violência necessário para evitar um eventual revide do anterior status quo: “As rebeliões mais violentas e as desordens mais graves ocorreram invariavelmente ali onde os déspotas […] tinham perpetrado os piores ultrajes. O olhar dos camponeses é agudo. Eles se dão conta perfeitamente de quem é mau e quem não é, quem é pior e quem não é tão perverso”. Vem, então, uma frase que se tornou célebre e que, é bom observar, representa o resultado de uma pesquisa (e não uma apologia eloquente e dogmática da violência):
Fazer a revolução não é dar um banquete, nem escrever um livro, nem pintar um quadro ou fazer um bordado; não pode ser tão elegante, tão tranquila e delicada, tão aprazível, amável, cortês, moderada, magnânima. Uma revolução é uma insurreição, é um ato de violência através do qual uma classe derruba a outra. A revolução no campo é uma revolução mediante a qual o campesinato derruba o poder da classe latifundiária feudal. Sem recorrer à máxima força, o campesinato jamais conseguiria derrocar o poder dos latifundiários, profundamente arraigado através dos milênios. O campo precisa de um poderoso auge revolucionário, pois só este auge pode agitar os milhões e milhões de camponeses […] Os “excessos” […] são precisamente o produto dessa força dos camponeses, despertada pelo poderoso auge revolucionário nas zonas rurais.
No final do informe de pesquisa, Mao dá uma alfinetada nos seus camaradas mais pudicos: “Falam todo o dia do ‘despertar das massas populares’, mas morrem de medo quando elas se levantam. Não vejo diferença entre esta postura e o amor do Senhor Ye pelos dragões”. Aqui temos uma piada interna chinesa. Convém um rápido esclarecimento: o Senhor Ye é um personagem de Liu Xiang (76 a.C.) que gostava muito dos dragões e colecionava inúmeros objetos com a forma desse animal mítico. Certo dia, um dragão desceu dos céus para conhecer seu devoto admirador humano. Enquanto observava pela janela da casa do Senhor Ye, deixou sua cauda aparecer por descuido no vão da porta. Ao vê-la, o Senhor Ye saiu correndo, pálido de terror e alucinado. Moral da história: o Senhor Ye não gostava dos dragões, mas somente daquilo que tivesse forma de dragão. De maneira análoga, certos revolucionários não apreciavam as massas em sua ação concreta, mas somente aquilo que, sob a aparência das massas, eles pudessem objetificar e manipular. E da mesma forma que o Senhor Ye, a antropologia disciplinar aprecia o outro na medida em que este se torne objeto passivo de seus próprios afazeres domésticos…
Mao não era militante de uma disciplina acadêmica. Como sabemos, ele era um militante comunista. Nesta condição, apregoava que a política do partido, isto é, aquilo que o partido se propunha a fazer em tal ou qual circunstância, deveria ser definida em referência à atividade de pesquisa. Durante as primeiras décadas do século XX, o PCCh se considerava representante da política proletária na China. Grosso modo, isso queria dizer que seu propósito máximo era alcançar a emancipação coletiva através da eliminação da propriedade privada dos meios de produção, condição esta que os movimentos revolucionários do Ocidente haviam identificado na base de toda a exploração do ser humano pelo ser humano. De acordo com esse horizonte, e tendo em vista a situação geopolítica da China, a tarefa premente consistia em combater o imperialismo japonês, fiador máximo de toda uma cadeia de exploração e sujeição que atravessava a sociedade chinesa de cabo a rabo. Nos anos 1920, o PCCh combatia o imperialismo japonês em nome da autonomia política da China e no interesse do programa revolucionário do proletariado. Neste cenário, Mao avaliou que a pesquisa era fundamental para definir se o encontro dos comunistas com outros grupos sociais poderia potencializar a busca desses propósitos transformadores. Assim, a pesquisa – a vontade e a necessidade de pesquisar – respondia a uma interrogação fundamental que poderíamos escrever da seguinte forma: estamos em condições de agir juntxs tendo em vista, por um lado, a necessidade primeira de expulsar os japoneses e, por outro lado, o propósito máximo de alcançar a maior liberdade possível para essa enorme parcela de humanidade radicada na China? (Para Mao, a liberdade do “povo chinês” estava constrangida por quatro grandes “formas de autoridade” que precisavam ser liquidadas: autoridade política, de clã, religiosa e marital. Juntas, elas encarnariam “a ideologia e o sistema feudo-patriarcais”).
A pesquisa política parte sempre de alguma inquietação que é, ela própria, valha a redundância, política. Liberta de toda disciplina, a pesquisa se move, sempre, em meio à política, ou seja, em meio à busca de composições coletivas. Estas últimas, por sua vez, vão ganhando novos critérios de realização e novas adesões na medida em que a tarefa investigativa avança. Encontramos, aqui, uma relação intersubjetiva que já não é exatamente de representação. Na luta por alcançar seus propósitos, as pessoas implicadas na pesquisa política vão se moldando mutuamente, numa relação tal que as chamadas “reuniões de pesquisa” reivindicadas por Mao se transformam no processo de criação de uma nova subjetividade política. Temos, em primeiro lugar, os propósitos do pesquisador, que cedo ou tarde deverão ser explicitados; depois, temos as reuniões de pesquisa. Ao cabo dessas duas etapas, podemos estabelecer uma opinião sobre nossos propósitos iniciais de acordo com as perspectivas concretas proporcionadas pela pesquisa. Antes da pesquisa só existem propósitos abstratos que, literalmente, ganharão corpo e condições efetivas de realização graças ao encontro com os outros. Palavras de Mao em 1930: “Tiramos toda e qualquer conclusão depois de ter pesquisado, e não antes. Apenas um bobo, agindo sozinho ou junto de outras pessoas, contorce os miolos para ‘encontrar alguma solução’ ou ‘elaborar uma ideia’ sem fazer nenhum tipo de pesquisa”. É necessário estar bem acompanhado para encontrar as ideias justas. Convocar “reuniões de pesquisa” e “pesquisar nelas” “por meio de discussões” consiste, segundo Mao,
na única via que nos permite uma aproximação à verdade e a obtenção de conclusões. Por outro lado, o método de se limitar a ouvir as experiências de apenas uma pessoa sem celebrar reuniões de pesquisa para averiguar os fatos por meio de discussões conduz facilmente ao erro. Não é possível tirar conclusões mais ou menos corretas em reuniões nas quais só se formulam perguntas ao azar em vez de submeter questões especiais ao debate.
As reuniões de pesquisa são o espaço privilegiado para a construção dos problemas e das soluções:
Se antes de saíres do gabinete não tens nada na tua cabeça, quando retornares ela já não estará vazia, mas sim aprovisionada com todo tipo de material necessário para a solução de problemas; é assim que os problemas se resolvem. É indispensável sair? Não obrigatoriamente. Tu podes convocar para uma reunião de pesquisa pessoas familiarizadas com a situação, a fim de achar a origem disso que tu consideras um problema difícil, de modo a ficar a par do seu estado atual. Então será fácil resolvê-lo. A pesquisa se assemelha aos longos meses de gestação, ao passo que a solução do problema se parece com o dia do parto. Pesquisar um problema é resolvê-lo.
Detenhamo-nos com mais atenção sobre as “reuniões de pesquisa”, que são um importante dispositivo de trabalho com as pessoas. Citemos longamente as palavras de Mao num prefácio de 1941 para as suas Pesquisas Rurais:
O único meio para conhecer uma situação é fazer uma pesquisa social, uma pesquisa sobre a situação viva das diversas classes sociais. Para quem desempenha um trabalho de direção, o meio fundamental para conhecer a situação é escolher, de acordo com um plano, algumas cidades e aldeias e concentrar-se numa série de pesquisas minuciosas utilizando o ponto de vista fundamental do marxismo: o método da análise de classes. Só assim poderemos adquirir os conhecimentos básicos sobre os problemas sociais da China. Para fazer isso, é necessário, em primeiro lugar, olhar para baixo e não para o céu. A menos que tenhamos o interesse e a decisão de olhar para baixo, não conseguiremos nunca na vida entender realmente as coisas da China. Em segundo lugar, é preciso convocar reuniões de pesquisa. De nenhuma maneira podemos adquirir um conhecimento completo olhando aqui e ali e escutando rumores nas ruas […] Realizar reuniões de pesquisa é o método mais simples, fácil e seguro. Com ele obtive grande proveito; trata-se de uma escola melhor do que qualquer universidade. Devemos convidar para essas reuniões quadros realmente experientes dos níveis médio e inferior, ou pessoas comuns. […] A pessoa que pela primeira vez me deu um quadro completo da corrupção nas prisões chinesas foi um simples carcereiro que conheci fazendo minha pesquisa no distrito de Jengshan, Junán.
O importante, a partir de agora, é frisar a orientação epistemológica da pesquisa política, esclarecendo ao máximo sua originalidade. Com este objetivo em mente, dediquemos alguns tópicos aos trechos em negrito das citações anteriores. (Quem estiver interessadx em conhecer algumas recomendações de ordem mais “técnica” para a realização das “reuniões de pesquisa”, pode reportar-se às citações que figuram no Miniguia vermelho da pesquisa política).
1) “Tiramos toda e qualquer conclusão depois de ter pesquisado, e não antes”: aqui, não estamos apenas diante de uma recusa das posturas políticas baseadas quase exclusivamente na especulação. Mao nos diz que “toda e qualquer conclusão” é sempre posterior à pesquisa. Isto inclui, também, as conclusões sobre quais seriam os problemas relevantes em cada momento e lugar. Definir um problema como pertinente do ponto de vista político é um exercício complexo e decisivo que, por isso mesmo, não pode ocorrer antes da pesquisa. A única coisa que levamos conosco na etapa prévia ao encontro com as pessoas são inquietações e apostas. Estas, por sua vez, mediadas pelo processo de diálogo, darão origem a uma busca coletiva e, por conseguinte, a uma problemática inerente a esta busca.
2) “Podes convocar para uma reunião de pesquisa pessoas familiarizadas com a situação, a fim de achar a origem disso que tu consideras um problema difícil, de modo a ficar a par do seu estado atual”: logicamente, antes de qualquer encontro com os demais, nós mesmos concebemos determinado tipo de problema e avaliamos que esse problema também corresponde aos/às outrxs, isto é, representa um problema compartilhado. No entanto, não podemos ignorar que somos nós – e, a princípio, somente nós – que consideramos esse problema especialmente difícil. O “estado atual” do problema apenas poderá ser mapeado através da reunião com os outros. E quem são esses outros? São “pessoas familiarizadas com a situação”, isto é, pessoas que conhecem esse âmbito da ação social que nós consideramos problemático. Tais pessoas poderão, eventualmente, se tornar nossas colaboradoras no processo de definição do “estado atual” de um problema difícil. Retenhamos esta orientação: é importante reunir-se com pessoas familiarizadas com a situação. Nela não há nada de banal. Pelo contrário, trata-se de um lineamento chave que diferencia a pesquisa política da pesquisa disciplinar – ou disciplinada. Desenvolverei este ponto no tópico 5.
3) “Pesquisar um problema é resolvê-lo”: nas condições de trabalho reivindicadas pela pesquisa política o dispositivo da reunião é, ele próprio, o princípio de resolução de um problema. Não resolvemos os problemas sozinhos, em casa, depois da pesquisa. Ao contrário, procuramos resolvê-lo através do diálogo. Tal resolução é potencialmente efetiva na medida em que a pesquisa também conforma o corpo político que dará concretude ao esforço prático de solução de um problema coletivo.
4) “Concentrar-se numa série de pesquisas minuciosas utilizando o ponto de vista fundamental do marxismo: o método da análise de classes”: neste ponto, os/as anti-marxistas se regozijam. “Quanto simplismo! – dizem elxs – Bastaria fazer uma ‘análise de classe’ para acessar os atores chave e os conflitos fundamentais de uma sociedade”! E arrematam: “sob a clivagem dessa lente desajustada muita coisa importante passará desapercebida”. Tenho preguiça de confrontar posições desse tipo. No geral, elas não decorrem de nenhuma reflexão cuidadosa sobre as contradições que estruturam nosso mundo social e sobre a origem, em última instância, dessas contradições. Os anti-marxistas operam por inércia ideológica. Há décadas eles escoram sua legitimidade intelectual sobre os escombros do Muro de Berlim e, deste modo, não precisam explicitar a única paixão que verdadeiramente os move. Mas nós devemos sinalizá-la: estão apaixonados pelo status quo e recusam, no final das contas, qualquer ingerência decisiva que possa subvertê-lo radicalmente. E que ingerência seria essa? Também precisamos ser claros sobre este ponto: trata-se do igualamento, na marra, do suporte material necessário à projeção de todo mandato, de toda autoridade, de toda hierarquia. Em linguagem clássica, isso se chama eliminação da propriedade privada e coletivização dos meios de produção. Voltemos a Mao. Na passagem citada, ele está falando de algo muito simples que devemos entender à luz de seu pensamento. As “classes” seriam grupos de interesse segmentados segundo sua atividade econômica (proletários, comerciantes, artesãos, senhores de terras, camponeses médios, etc.). Independentemente da atividade desempenhada por cada grupo, o importante na “análise de classe” era definir quem era “amigo da revolução” e quem não era (Badiou tece algumas reflexões a respeito nesta conferência). Em outras palavras: a questão era saber quem estava disposto a construir uma problemática em comum que correspondesse com as apostas básicas enunciadas pelos pesquisadores do Partido Comunista sem excluir, necessariamente, a proliferação de outras apostas.
5) “De nenhuma maneira podemos adquirir um conhecimento completo olhando aqui e ali e escutando rumores nas ruas […] Devemos convidar para essas reuniões quadros realmente experientes dos níveis médio e inferior, ou pessoas comuns”: quero comentar estas duas passagens juntas, porque elas se complementam diretamente e expressam uma premissa muito original da pesquisa política. Em primeiro lugar, o conhecimento não é a síntese de segunda ordem de um material diverso recolhido em vários lugares por um pesquisador sorrateiro. Tampouco se referencia no que as pessoas andam dizendo por aí, sem nenhum compromisso ou em razão de compromissos e circunstâncias que não conseguimos estimar de modo fiável. O conhecimento relevante para a pesquisa política surge do dispositivo da reunião. É nela que xs participantes se expressam deliberadamente em resposta a algumas questões e estímulos explícitos, trazidos pelx pesquisador/a. Participa das reuniões quem tem algo a dizer. Mao refere-se aos “quadros [do Partido] realmente experientes” que desempenham tarefas de base e às “pessoas comuns”. Ou seja, no final das contas qualquer um/uma pode ser convidado para a reunião de pesquisa, desde que queira falar e esteja em condições de fazê-lo tendo em vista as perguntas inicialmente colocadas. Por exemplo, se eu acredito que os/as estudantes secundaristas vêm cultivando demandas e formas de ação que podem desencadear um processo criativo de ocupação das ruas, devo apresentar aos/às próprixs estudantes minha hipótese. Neste quesito, o dono do comércio da esquina ou a pastora da igreja evangélica têm pouco a contribuir – salvo que elxs também sejam estudantes secundaristas. No espaço da reunião de pesquisa, as pessoas são consideradas pelo que dizem e, mais especificamente, pelo que querem dizer. E o que elas dizem e querem dizer será encarado como expressão do seu pensamento, isto é, de sua capacidade de problematizar a situação na qual se encontram. O que as pessoas pensam será depreendido de suas palavras e nunca dos seus silêncios, como costuma ocorrer na pesquisa disciplinada. O marxismo de Mao entende as classes como uma distribuição inicial dos lugares sociais que a atividade de pesquisa procurará redimensionar através da composição de uma nova coletividade pensante e atuante. Por outro lado, para a pesquisa disciplinada as pessoas pertencem irremediavelmente ao seu “lugar” social. Elas são a expressão de uma distribuição pré-estabelecida das diferenças, sejam elas “culturais”, de “raça”, de “classe” e de “gênero”. Na pesquisa disciplinada, as pessoas não falam; elas apenas expressam sua posicionalidade social de modo mais ou menos curioso e pitoresco. A pesquisa política, por sua vez, supõe que os lugares sociais – Mao os pensava em termos de classe – são o ponto de partida para um novo processo de problematização coletiva, razão pela qual as pessoas importam em decorrência das problemáticas que elas são capazes de engendrar no seio de uma reunião de pesquisa. No final das contas, a reunião de pesquisa é uma reunião política.
***
Há algum tempo eu vinha nutrindo a intenção de escrever a respeito dos usos e das potencialidades que Mao atribuiu à prática da pesquisa. Queria situar os primórdios da pesquisa indisciplinada – aquela que se faz corpo a corpo com as pessoas, ao calor das situações – bem longe de qualquer tradição acadêmica. Através da referência a Mao, eu pretendia evidenciar que a pesquisa política não deve nenhuma explicação ao mundo das disciplinas. Além disso, ela está autorizada, de direito próprio, a questionar qualquer processo de envolvimento utilitário, carreirista ou “extrativista” – como dizem os camaradas do Máquina Crísica – com as pessoas que compartilham conosco um mundo e uma época. A pesquisa política é aquilo que se faz com, para e pelas pessoas. Seu lema fundamental poderia ser “pensar com as pessoas”, por oposição a “representar as pessoas”, que é a palavra de ordem das ciências sociais, sempre a serviço de si mesmas ou a serviço do Estado – quando não do capital. A pesquisa política é o exercício prático da capacidade das pessoas de pensarem por si mesmas e de militarem pelo pensamento que conseguiram construir juntas, em resposta a uma instigação inicial e sob a luz de um horizonte prático que elas tornaram seu. Foi a vontade de deixar claras todas essas questões que me estimulou a revisitar Mao. Mas o que realmente me empurrou para o teclado do computador foi o mal-estar que intuí nos rostos e nos gestos dxs estudantes que participavam daquele GT ao qual me referia lá no início. Suponho que muitxs delxs já estão cansadxs desse teatrinho mórbido no qual, para utilizar uma terrível expressão de Roberto Da Matta, devemos “vestir a capa de antropólogo” para declamar, diante de nossxs pares, o sentido do que as pessoas dizem e fazem ao sabor dos clichês disciplinares que cada instituição legitima e difunde. Contudo, isso são apenas suposições que eu depreendi dos gestos daquelxs para quem eu dedico estas linhas. Mao nos ensinou que a pesquisa se referencia no que é dito de forma explícita e consciente. A pesquisa não vive de suspiros, piscadelas e prantos. Sua matéria prima são certos enunciados que respondem a alguma pergunta concreta. Seu propósito é o de originar uma nova subjetividade política que possa desafiar e transcender a distribuição pré-existente dos lugares sociais. Sendo assim, não faz sentido continuar especulando sobre o pensamento dxs estudantes enquanto elxs calam. A pesquisa propriamente dita ainda nem começou. Este é o momento de formular perguntas e apostas, à espera da partilha futura de um pensamento explícito e discutido.
Apresento, então, minhas perguntas: como vocês, leitorxs, vocês, estudantes, definem o problema que os leva a entornar os olhos, suspirar entre os dentes e olhar para o lado enquanto alguém reza em seus ouvidos os cânones disciplinares do momento? Vocês, estudantes, o que fariam de suas pesquisas se elas não tivessem que passar pela triagem de nenhuma antropologia?
Agora formulo minhas apostas: é possível viver intensamente a atividade investigativa e dela extrair resultados rigorosos e politicamente decisivos sem prestar contas ao mundo disciplinar. É possível colocar a meia dúzia de coisas interessantes que pinçamos no mar de péssimos artigos que subsidiam nossa formação a serviço do que precisa ser dito; a serviço do que as reuniões de pesquisa tornam necessário dizer. Isso não implica, contudo, que tenhamos de submeter nosso encontro com as/os outrxs ao império dos problemas disciplinares – que são falsos problemas porque servem, fundamentalmente, para dar rédeas soltas à cega máquina textual da disciplina. Finalmente, é possível fazer tudo isso estando na universidade. A universidade é o nosso ganha-pão; é o que assegura nossas bolsas de estudo e, depois, nossos salários. No entanto, essas bolsas e esses salários não precisam nos reduzir à condição de funcionários de uma disciplina – isto nunca esteve no contrato! –, de modo que sempre poderemos investir nossas capacidades investigativas e cognitivas em coisas mais interessantes e mais liberadoras do que a mera reprodução da autoridade acadêmica. Escrevamos para as revistas especializadas, repitamos a ladainha que esperam de nós, recebamos bolsas e salários, mas dediquemos o melhor de nossas energias a outras tarefas. Não amemos nossos chefes. Estejamos preparados para, diante da menor oportunidade, interromper essa aparelhagem institucional castradora e chantagista que atualmente nos constrange. Não nos furtemos de tomar em nossas mãos os meios de produção do conhecimento e libertá-los da soberania disciplinar, colocando-os sob controle de uma multidão de “reuniões de pesquisa”.
Apresentadas minhas questões e minhas apostas, aguardo vocês para uma futura reunião de pesquisa.
ANEXO
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