Por Joshua Clover (texto originalmente publicado em PMLA)
Tradução: Felipe Moretti
Imagem: O.O.P.S
Fazendo jus àquele tipo de movimento dialético que amiúde aparece como mera ironia, foram justamente os conceitos mais convincentes e incisivos desenvolvidos dentro das ciências humanas durante as últimas quatro décadas (as ideias associadas à virada linguística) que as deixaram particularmente despreparadas para enfrentar a crise atual. (…) A era associada com a financeirização nos Estados Unidos é contemporânea da virada linguística. Uma é – em certo sentido, literalmente – a forma-pensamento da outra; estão mutuamente endividadas. Este emaranhamento oferece, de forma tardia e catastrófica, uma oportunidade pouco frequente nas ciências humanas: a da falseabilidade.
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É meu intento contar como os seres assumiram novas formas. Ó deuses – eis que fostes vós que os mudastes – favorecei o meu intuito, e conduzi, ininterruptamente, o meu poema, desde a origem do mundo até o meu tempo.
— Ovídio (1992, p. 11), As metamorfoses
Boa parte do pensamento atual nas ciências humanas tem se dedicado a compreender os contornos e a natureza do colapso econômico global que em breve chegará ao seu quinto ano (a não ser que esteja chegando ao seu quadragésimo, um problema ao qual voltaremos). Recentemente, o entrelaçamento entre arranjos sociais e economia política veio à tona com uma urgência e uma inescapabilidade que seriam impossíveis de exagerar – de fato, porque dentro da educação superior as ciências humanas são as mais ameaçadas com cortes de verba, se não com a própria extinção, e é delas que se espera a prostração diante da racionalidade econômica para poderem sobreviver.
Fazendo jus àquele tipo de movimento dialético que amiúde aparece como mera ironia, foram justamente os conceitos mais convincentes e incisivos desenvolvidos dentro das ciências humanas durante as últimas quatro décadas (as ideias associadas à virada linguística) que as deixaram particularmente despreparadas para enfrentar a crise atual. No período mais recente, acepções linguísticas da economia política gozaram de boa acolhida por uma série de razões, muitas das quais estão fundamentadas em condições reais. De qualquer forma, o que denomino a “literariedade” deste tipo de concepção acabou favorecendo e, às vezes, gerando graves erros analíticos. São erros que tiveram consequências não só no desenvolvimento de uma análise rigorosa da crise, mas também na identificação de onde e como agir dentro e fora das ciências humanas.
Embora no começo aparentasse ser uma crise financeira, a nova “Grande Contração” rapidamente mostrou ser um colapso econômico total, levando aos esforços recentes de entender a relação entre a economia real e a financeira – relação que sofreu uma inversão extraordinária (mas não sem precedentes) durante o mesmo período associado com a virada linguística. Esta relação é setorial e descreve a interação entre zonas do mercado.
Uma segunda relação, que aqui é mais central, não é de setor e sim de escala: a interação entre a menor instância de transformação (de valor em preço) e a maior (a reorganização basilar do sistema-mundo). A transformação do valor em preço, que funda a crítica da economia política de Marx, começa na relação laboral assalariada, quando o tempo socialmente necessário de trabalho, ou o “trabalho social” (abstraído do trabalho concreto), é trocado por dinheiro (sublimado da atividade social da troca). A mais-valia extraída na esfera de produção é realizada como lucro na esfera da circulação, onde as mercadorias produzidas pelo trabalho assalariado adentram ao mercado como objetos aparentemente autônomos. Já que toda esta circulação é necessária para a acumulação, as duas esferas são conjuntadas como se fossem uma unidade, apesar de valor e preço serem incomensuráveis. De fato, é somente a partir da intercambiabilidade de incomensuráveis, valor e preço, que pode emergir a acumulação sistêmica e não apenas o mero lucro individual.
A transformação do trabalho vivo em acumulação de capital através da mercadoria, uma transformação ovidiana de corpos em formas de outro tipo, que traça uma linha ininterrupta entre a relação assalariada e a modernidade capitalista, é o objeto da teoria do valor, uma das áreas mais disputadas da economia marxiana. Se o valor transforma-se em preço, logo o total dos insumos de trabalho para toda a economia (no qual se inclui o trabalho morto incorporado em máquinas e insumos materiais) deveria igualar o produto total de preços. Mais importante ainda, o total de mais-valia deve igualar o lucro real total; o fracasso deste cálculo, segundo certo argumento, seria uma ameaça existencial para a tese da origem do lucro na exploração e, consequentemente, para toda a análise de Marx. Vários economistas têm o contestado com complexas séries de cálculos, ao passo que outros têm oferecido argumentos elaborados a seu favor. O debate em torno dele se chama o “problema da transformação” (Samuelson, 1971; Kliman, 2007).
Nas antípodas desta transformação ovidiana, encontramos a dimensão que frequentemente é chamada de geopolítica – embora o nome oculte como o arranjo global articula um sistema de sistemas que favorece a acumulação de capital, dentro de dados limites históricos e materiais. Giovanni Arrighi (na esteira de Fernand Braudel e outros) oferece a expressão mais límpida que há deste sistema-mundo histórico numa exposição que, para muitos, é esquemática demais e que, para outros, é de uma exatidão revigorante. Houve quatro ciclos de acumulação, regimes globais de hegemonia econômico-política cada vez mais expansivos, cada um deles com seu poder hegemônico: a cidade-estado proto-capitalista genovesa, berço dos bancos modernos; as Províncias Unidas (a República Holandesa); o nação-Estado do Império Britânico; e, atualmente, o Estado-continente dos Estados Unidos. Cada regime pode ser subdividido numa fase de expansão material e, em sequência, numa fase de expansão financeira que é o “sinal de outono” (Braudel, 1992, p. 264) para o ciclo; o “longo século” de cada hegemonia se sobrepõe ao próximo ciclo e lhe cede o lugar. Poderíamos chamá-las de transformações virgilianas, nas quais o centro civilizacional muda de lugar, ergue novos muros para suas divindades domésticas e revoluciona sua oikos e a economia mundial.
Muito se fala que o ciclo atual sofre o risco de culminar no que Arrighi chama de “crise terminal” (Arrighi, 1996, p. 220); que uma transformação dos arranjos globais, tendo a China como poder hegemônico, esteja no futuro próximo. No entanto, uma realidade menos comentada é a de que tal desfecho seja impulsionado pela necessidade de retomar uma taxa adequada de acumulação de capital e que a via de restauração continue nebulosa – não há, necessariamente, nenhuma reconfiguração revolucionária do capital vindo aí, apesar das expectativas quase universais de retomada econômica.
E é, entretanto, no colapso da taxa de acumulação de capital que a relação entre as transformações ovidianas e virgilianas está em jogo. David Harvey argumenta que a taxa de acumulação composta anual necessária para o capital é, historicamente, de uns 3% (Harvey, 2011, p. 158). É por cima deste piso mínimo que se sustenta a ascensão e a sobrevivência de um poder hegemônico. Mas a compreensão desta exigência quantitativa demanda, por sua vez, uma visão clara da natureza qualitativa da acumulação real: o que ela é, como emerge e quais são suas condições de possibilidade. Em suma, a dinâmica da crise sistêmica é inconcebível se não entendermos a teoria do valor. Logo, essa incompreensão, que assumiu a figura de uma literariedade a respeito do valor, limita radicalmente uma história do presente. Dois erros em particular tiveram maior recepção. Em muitos aspectos, um espelha o outro. Compartilham de certa parcialidade, de certa falha em encarar a totalidade dos movimentos do valor. Uma está presa dentro da esfera da circulação; a outra, dentro da esfera da produção.
Estruturalismo/circulação
A genealogia do contato íntimo mais determinante entre capital e linguagem passa por Ferdinand de Saussure. O teórico literário (e economista de formação) Kojin Karatani sugere que Saussure foi muito influenciado pela obra de Vilfredo Pareto (Karatani, 2005, p. 229), um dos primeiros economistas da teoria do equilíbrio geral: observação que implica tanto a linguística estrutural quanto a teoria da utilidade marginal na postulação de um sistema diferencial, uma economia da diferença cujos elementos tomariam seu valor de relações diferenciais dentro de uma estrutura constituída por tais relações e não por nenhuma dinâmica objetiva.
No geral, pouco se tem apontado que o sistema diferencial foi uma inovação política-econômica de Samuel Bailey, que em 1825 desenvolveu a primeira crítica substantiva à teoria do valor-trabalho de David Ricardo. No modelo ricardiano, o trabalho (inclusive o trabalho incorporado em ferramentas e os insumos materiais da produção) era um valor objetivo que passava diretamente do operário à mercadoria em produção de acordo com o número de horas trabalhadas. Problematicamente, a teoria sugeria que se o trabalho fosse mais lento, a mercadoria adquiriria maior valor. Bailey propôs, ao contrário, que a mercadoria só era valorizada em relação a outras no mercado (Bailey, 1825, p. 72).
Este discernimento viria a influenciar profundamente a noção marxiana do trabalho social como uma relação entre todos os trabalhadores ocupados na mesma tarefa. O valor, portanto, não existe no trabalho, senão que é a coagulação de uma relação social. Por esta razão, são no geral pensadores triviais que atribuem a Marx uma teoria clássica do valor-trabalho, em vez de uma explicação distinta que utilmente tem sido chamada de “teoria do valor do trabalho”. No entanto, no modelo de Bailey, stricto sensu, o lucro emerge na esfera da circulação através do jogo entre diferenciais de preço. A mesma incompreensão se repete no trabalho recente de Karatani:
No entanto, é apenas através da existência de sistemas heterogêneos que o dinheiro pode se transformar em capital que incorpore mais-valia da troca entre sistemas (…) Quando uma mercadoria é colocada em um sistema diferente, o equilíbrio de preço é alterado. Esta diferença não advém simplesmente da flutuação de preços, mas sim da diferença do sistema relacional em si. Mas, então, o que acontece quando a troca ocorre entre dois sistemas? Eis a mais-valia. (2005, p. 227–28, tradução da versão citada no original)
Marx é explícito ao dizer que a “mais-valia não pode surgir da circulação” (Marx, 2013, p. 261) e dedica a tal ilusão um capítulo inicial inteiro d’O Capital. O mercantilismo é, portanto, um jogo de soma-zero, gerando lucro inteiramente dentro do mercado, comprando barato para vender caro. O lucro do comerciante que passa a perna no seu vizinho, entretanto, não aumenta o valor total da economia. A mais-valia, ao contrário, surge na produção, antes de poder ser carregada pela mercadoria em circulação e ser realizada como lucro. A luta pelo lucro dentro da troca incentiva a redução de custos de produção, aumentando a produtividade, levando à redução relativa do trabalho vivo no processo de produção e, na busca por lucro, expulsando sua própria fonte de valor. Eis a crise. O pensamento dialético de Marx entende que a produção e a circulação estão juntas e unificadas, um aspecto da “contradição em movimento” do capital (Marx, 2011). A totalidade da produção e da circulação não consegue ser vislumbrada por dentro do cadeia sussurrante da circulação, com seu rastejar infindável.
Pós-estruturalismo/Produção
A noção de uma realidade econômica em que o valor se movimenta apenas na circulação tem como complemento a análise linguística que descobre que tudo é produção – entretanto, uma produção de natureza diferente. É a transição entre a manufatura e o que se tem chamado de “financeirização”, de “setor de serviços”, de “mão-de-obra flexível” e mais alguns termos que culminam na “Nova Economia”, ao qual tem lugar depois da conclusão da Guerra Fria. Estas mudanças têm sido analisadas como aspectos de um regime de trabalho imaterial, cuja conceitualização mais séria veio dos pensadores associados à autonomia italiana, uma reformulação pós-marxista da tradição do operaísmo que teorizou pela primeira vez “o comunismo do capital” e o poder dos trabalhadores na era contemporânea. Houve uma influência singular das obras de Michael Hardt e Antonio Negri (a trilogia inaugurada por Império, produto das investigações teóricas mais antigas de Negri) dentro das ciências humanas.
Quanto à teoria do valor, a conclusão radical de Hardt e Negri é que ela não precisa mais surgir de dentro da economia real. Deve-se deixar claro o significado do termo “economia real” (ou “economia produtiva”), que nos últimos tempos vem gerando tanto alarde. Tal expressão tende a ser eventualmente aplicada à produção de coisas “reais”, bens materiais, e não serviços, ideias, instrumentos financeiros, afetos e assim por diante. A economia real é melhor compreendida como aquele setor da economia que gera acumulação sistêmica – e não apenas lucro isolado e especulação.
O já mencionado exemplo mercantil, extraído dos primórdios capitalismo, é confrontado por processos de um tempo mais recente. A teoria marxiana também vê o mercado financeiro como, por exemplo, improdutivo. Mais exatamente, ele é uma luta por lucros no presente e uma reivindicação de trabalho produtivo no futuro. A hipoteca imobiliária serve como um bom exemplo, assim como qualquer contrato futuro: a realização de ambos depende de trabalho produtivo alhures no sistema, seja no espaço ou no tempo.
Uma anuidade fixa pode ser vendida para alguma instituição financeira que pretende montar um título garantido por ativos, que é parcelado em formas de rendimento a serem vendidas; estas, por sua vez, podem ser reestruturadas dentro de alguma obrigação sintética garantida por créditos e serem novamente vendidas. Apesar de todo este movimento, os lucros dentro da sequência continuam sendo capital fictício: “um título de valor – tanto quanto o papel moeda” (Marx, 1993, p. 600, tradução da versão citada no original). Toda essa atividade não gera mais valor que se eu lhe vendesse uma cédula de dez dólares por vinte, mesmo se eu prometer lavar seu carro no futuro.
Há vários modelos para distinguir o trabalho produtivo do improdutivo e o trabalho material do imaterial. Mas Hardt e Negri insistem que a própria distinção não prevalece mais:
O papel central previamente ocupado pela força de trabalho de operários de fábrica na produção de mais-valia está sendo hoje preenchido, cada vez mais, por força de trabalho intelectual, imaterial e comunicativa. É, portanto, necessário desenvolver uma nova teoria política que possa propor o problema desta nova acumulação capitalista de valor no centro do mecanismo de exploração (e dessa maneira, talvez, no centro potencial da revolta). (2001, p. 48).
A defesa de uma nova teoria do valor por Hardt e Negri concorda, pelo menos em parte, com a proposição de Jacques Derrida segundo a qual a “ontologia do valor” de Marx – sua insistência em que o valor é derivado da presença do trabalhador na fábrica – foi desbancada. Imediatamente se vê o parentesco entre a crítica de Derrida da metafísica da presença, com a qual já temos familiaridade, e a descoberta de Negri do trabalho imaterial. Em Specters of Marx, Derrida (2006) afina estas posições ao descrever “um espaço público profundamente transtornado por dispositivos tecno-tele-midiáticos e por novos ritmos de informação e comunicação, pelos aparatos e a velocidade de forças que eles representam, mas também e consequentemente pelos novos modos de apropriação que operam, pela nova estrutura do evento e da espectralidade que produzem” (p. 98, tradução do inglês). Respondendo ao protesto filosófico de Derrida com o pensamento econômico de Marx, Negri concorda em “julgar desatualizada a ontologia marxista” (Negri, 2008, p. 10).
É crucial reconhecer as intuições e os avanços associados a esta posição. Nos países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), observa-se uma considerável mudança ocupacional, da indústria e da agricultura para empregos no setor de serviços designados como trabalho imaterial, o que demanda repensar a organização sindical. Ademais, esta mudança é acompanhada por uma distinção menor entre trabalho e não-trabalho (sinalizada atualmente pelo micro-trabalho não-pago da Internet 2.0). Neste sentido, o mundo subjetivo do trabalho se transformou. Finalmente, o impulso para repensar as hierarquias implícitas entre trabalho “produtivo”, “improdutivo” e “reprodutivo” é inseparável do encontro vital entre o marxismo e o feminismo nas obras de Mariarosa Dalla Costa, Silvia Federici e Leopoldina Fortunati, assim como em Selma James, Maria Mies e outras.
Apesar destas intuições e percepções, o curso real dos acontecimentos revelou erros basilares na revisão autonomista da teoria do valor – erros que são inseparáveis da sua literariedade. A genealogia intelectual deste novo não-lugar da geração de valor é ressaltada pelo autonomista Christian Marazzi (1996) no subtítulo do seu primeiro livro, Il posto dei calzini: La svolta linguistica dell’economia e i suoi effetti nella politica (“O lugar das meias: a virada linguística da economia e seus efeitos políticos”). No seu livro mais tardio e canônico, cujo título segue a mesma sugestão, Capital and Language, Marazzi (2008, p. 48) sustenta que “como convenção, a Nova Economia é a linguagem em si, a linguagem como o meio de produção e de circulação dos bens”. Além disso, “a cadeia produtiva tornou-se, de fato, uma cadeia linguística, uma conexão semântica na qual a comunicação, a transmissão de informações, tem se tornado tanto matéria-prima como instrumento de trabalho” (idem, p. 50). É a formulação mais pura que há da materialidade do significante para o pós-estruturalismo; como se os signos fossem algo mais do que mera abstração e constituíssem uma nova verdade da produção. O fio condutor do argumento culmina na proposição de que “a globalização, como império, é a organização mundial da subsunção da circulação à produção, o ‘fazer-trabalhar’ da vida da força-de-trabalho na fábrica global” (idem, p. 89). Como nesta explicação a acumulação pode se basear no trabalho linguístico e imaterial, permeando a totalidade da consciência, tudo agora é produção real. Isto chegaria a explicar a aparente expansão da economia depois de 1973 – a despeito, por exemplo, da secular estagnação do lucro industrial, como detalhada por Robert Brenner (2006, p. 101–17).
Valor ilimitado
Não há necessidade de defender uma leitura dogmática d’O Capital ou de repetir a injunção althusseriana de ler Marx economicamente e não filosoficamente. Sinto-me compelido, porém, cotejar certas incompreensões – a postulação da circulação e da produção, sucessivamente, como as como as fontes verdadeiras e independentes da acumulação – com os acontecimentos que elas projetam. O que une imediatamente ambas as explicações é a crença de que a acumulação sistêmica não requer a transformação do trabalho produtivo em preço, a transformação ovidiana apresentada acima. Ao contornar o desfiladeiro da mais-valia e do lucro, seja no campo da produção ou da circulação, as explicações em questão tendem a imaginar que a acumulação possa se libertar da contradição entre as duas esferas, sujeitando-se a outros limites – se, de fato, houver limites. O jogo diferencial de preços de Karatani, em que a mais-valia nasce de uma troca interregional, encontra-se em más companhias com as oclusões da teoria da utilidade-marginal, que mapeia relações sincrônicas entre mercados mas é cega e ignorante quanto às dinâmicas históricas. Ao mesmo tempo, a afirmação autonomista de que algum valor novo pode ser gerado sem o trabalho tradicionalmente produtivo converge com a transformação mais ampla da economia ortodoxa do final do século XX, de uma ciência da escassez para uma da abundância, em que os limites tradicionais do capital – participação do trabalho, tamanho de mercados – são superados, como sumariza David Warsh [2006, p. 61]: desenvolvimento irrompe em meio à exuberância irracional dos discípulos da Nova Economia, cujo cúmulo é o mal-fadado Dow 36,000, de James Glassman e Kevin Hassett (2000)1.
O que une todas estas incompreensões é uma incapacidade de entender as relações entre os vários setores da economia. Para Karatani (e outros), todo valor é especulativo; deslizando pela sua própria cadeia metonímica, sempre correndo atrás do tempo, é um valor-de-troca pronto para a especulação e que sempre corre o risco de não ser realizado – até ser consumido como valor-de-uso e, nesse instante, ser extinto. O valor pode continuar sendo precificado até o momento em que ele deixa de existir. Sem dúvida, o leitor reconhecerá aqui a já familiar desconstrução da dualidade real-irreal. Como consequência, o crédito não é uma mutação e sim a verdade do valor em si, sem nenhum fundamento ontológico no trabalho assalariado, mas apenas na existência linguística. Como Slavoj Žižek percebe, no futuro do presente composto (futur antérieur) o valor não ‘é’ imediato, ele somente ‘terá sido’, ou seja, será retroativamente atualizado e performativamente encenado” (Žižek, 2006, p. 52, tradução da versão citada no original). Esta figura da economia performativa, sintonizada à teoria dos atos de fala, é recorrente na economia afetada pela literariedade; considere-se, aqui, a ênfase de Marazzi (2008, p. 33) em que os “fatos são criados ao serem ditos” (33).
Por sua vez, ao desmaterializar o trabalho da economia real, as teorias da produção imaterial delimitam as regiões das economias real e financeira de tal forma que a primeira tome para si a abstração da segunda. Supostamente gerador de valor, o trabalho imaterial é tomado como um objeto de estudo em si, uma nova condição do capital que demanda ser testemunhada. Encarar o trabalho imaterial sob esta visão esconde que ele é um efeito, uma consequência de desenvolvimentos cruciais dentro do circuito da geração do valor.
À medida que a acumulação real entrava em declínio, depois da “Grande Expansão” de 1948 a 1973, a competição por lucros existentes se intensificou (Brenner, 2006, p. 94-96). Tal intensificação pôde ser vista no offshoring da força-de-trabalho, nas revoltas fiscais que inauguram o neoliberalismo, na corrida do capital rumo aos mercados financeiros em busca de lucro e na necessidade das firmas industriais de acelerar o giro de seus estoques – conforme o que Harvey chama de “tempo de circulação padronizado socialmente necessário” (Harvey, 2013, p. 307). A rotatividade acelerada requer mais liquidez de crédito; ao mesmo tempo, expulsa mão-de-obra da produção a favor do que poderíamos chamar de servidores processuais: os “dispositivos tecno-tele-midiáticos”, junto com os administradores de uma rede cada-vez-mais-complexa-e-apressada de controle-e-comando que é, por sua vez, mantida por trabalhadores do conhecimento e da tecnologia da informação, que coordenam uma ordem econômica cada vez mais globalizada e especulativa. Logo, a ascensão do mercado financeiro é correlacionada à ascensão tanto do valor especulativo quanto do trabalho imaterial – o que indica um problema na produção, mas não uma nova fonte ou modo de produção. O mercado financeiro não é nem a causa e nem a solução para o problema, mas o véu que o encobre.
Certamente se convivia com bancos e crédito bem antes da aurora do capitalismo moderno. Certamente há uma relação íntima entre o mercado financeiro e a produção; como Žižek assevera, “ o que sustenta o povo das ruas é Wall Street!” (2011, p. 25). Mas a natureza dinâmica da conjunção entre o mercado financeiro e a produção não significa que a sequência histórica percebida por Braudel e Arrighi – além de suas implicações – seja inoperante. Quando o setor financeiro hegemoniza a economia como um todo – outro assunto inteiramente diferente – as contradições da forma-valor aproxima-se da sua floração outonal. Voltamos à crise.
O retorno do real
Talvez o colapso econômico tenha começado com a crise financeira de 2008, ou entre 2006 e 2007, à medida que as taxas de inadimplência no pagamento de hipotecas subiam dramaticamente. Ou, talvez, tenha começado com a bolha da Internet do ano 2000, cujas consequências foram mascaradas e adiadas pelo aquecimento fervoroso do mercado imobiliário que se deu na meia década seguinte. A crise é plural, trata-se, sempre, de crises, à medida que suas contradições se deslocam e voltam redefinidas (Harvey, 2011, p. 30). Poderíamos dizer que a crise começou, no sentido mais verdadeiro, com a recessão de 1973, com a crise do petróleo, o colapso final dos acordos de Bretton Woods e a ascensão meteórica do setor financeiro impulsionada por novos mercados de derivativos e a necessidade de substituir lucros industriais definhantes.
Este olhar, no qual as crises preliminares e terminais configuram um evento único e prolongado, permite-nos estabelecer a seguinte periodização: a era associada com a financeirização nos Estados Unidos é contemporânea da virada linguística. Uma é – em certo sentido, literalmente – a forma-pensamento da outra; estão mutuamente endividadas. Este emaranhamento oferece, de forma tardia e catastrófica, uma oportunidade tão infrequente quanto efêmera nas ciências humanas: a da falseabilidade.
Resumindo: não houve nenhuma nova economia. No mínimo, não houve nenhuma renovação da acumulação sistêmica, nenhum novo tipo de produção. O capital fictício era justamente isso, fictício. Nem os fatos nem o valor foram “criados ao serem ditos”. Houve inúmeras novas maneiras de empapelar esta realidade; “papel” já diz o suficiente. As proposições sobre o anacronismo da transformação do valor foram desmontadas na medida em que a lei do valor se impunha com clareza selvagem, eliminando capitais fictícios, aniquilando vagas de emprego e devolvendo o fluxo da miséria, exportada aos centros econômicos. Cada vez mais, produção e acumulação se desencontraram, justamente como prevê a teoria do valor. A capacidade instalada e inutilizada ficou empilhada ao lado da força-de-trabalho ociosa. E a incapacidade de pensar o valor em termos adequados à crítica da economia política – de entender a contradição em movimento da forma-valor, do uso e da troca, da produção e da circulação – revelou-se como um limite quase absoluto para compreender a atual situação histórica.
Cá estamos. A Tróia do valor está em chamas e não será reerguida. As transformações de Ovídio nos trouxeram as de Virgílio. Na verdade, talvez elas sejam idênticas: apenas aspectos sincrônicos e diacrônicos de um sistema unitário; um sistema totalizante, independentemente de que queiramos aceitá-lo nestes termos ou não. Já não se trata de “salvar as ciências humanas” ou de recuperar o gasto público; não mais, pelo menos, do que salvar a hegemonia dos Estados Unidos. Os excedentes sobre os quais ergueu-se o apoio ideológico a essas pautas já não existe mais. A mobilização em torno de tais objetivos é um otimismo da vontade e uma ilusão do intelecto.
Diante de nós começa a ensaiar-se a fuga em direção a um novo capital, concomitante com o esforço brutal de despedaçar e remontar as colossais engrenagens da acumulação, colocando-as em movimento uma vez mais – se é que algo desta proporção ainda for possível, dados a necessidade de se expandir do capital e os limites materiais do sistema-mundo. Ou, alternativamente, podemos ensaiar a fuga para algo inteiramente diferente…
NOTA DO AUTOR
Gostaria de agradecer a Timothy Kreiner por seus comentários perspicazes enquanto escrevia este ensaio.
Nota
1 Dow 36,000: The New Strategy for Profiting From the Coming Rise in the Stock Market foi publicado em 1999 e logo caiu na infâmia depois que suas previsões ousadas de uma quadriplicação dos preços do índice Dow Jones foram água abaixo com a crise da bolha da Internet e os ataques de 11 de setembro de 2001.
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