Geral

Vulnerabilidades que se instalam pelo excesso

Por Sara Caumo Guerra

Imagem: Rochele Zandavalli, Morangos Mofam, 2019

Porque me ocorreu agora que estamos mordendo as maçãs, mas que não as estamos comendo até o final. Uma quantidade enorme de maçãs apodrecendo, inviabilizando a mordida de muitas outras pessoas famintas. Tão famintas que quando as conseguem alcançar, seus estômagos já estão fracos e padecem antes mesmo de sentir o gosto da abertura para as dúvidas. Claro que essas mordidas apressadas, as mesmas mordidas que tiram da boca das pessoas o acesso ao que se produziu em termos de arte, pensamento, saber, tecnologia, afeto, têm a ver com o início deste texto. Têm a ver com o excesso, ou melhor, com o ambiente de excesso no qual estamos vivendo e que estamos reificando. Prometi imagens. Deixei, aqui, as maçãs. Que vieram desta maçã bíblica que a nomeada Eva mordeu, em busca de um saber proibido. [Por que a busca pelo saber foi, na gênese, marcada como passível à danação eterna?]

Textos relacionados que podem interessar: Ensayo Crísico – reflexiones desde el exceso; A la siniestra de Banksy; A esquerda se olhou no espelho, mas não viu o sujeito; A coxinha coroada; Busquemos las palabras de las futuras sublevaciones; Nem só de realismo vive o desejo.

* * *

Não faltam trabalhos. Não faltam livros publicados. Não faltam imagens coladas, inclusive, nos muros próximos, sem impedimentos de paredes e bilhetes de entrada. Nem faltam filmes de todas as extensões, que nos trazem desde a piada sem ou com graça até a fala de gente que a gente respeita – resta saber, sempre, quais são as pessoas respeitáveis e, especialmente, como elas se tornam respeitáveis. Tampouco faltam músicas gravadas para todas as dores, para as lutas e até para a tortura auditiva, com seu tok monótono. Não faltam, portanto, expressões e coisas. Como nada falta, aparentemente, também se pode dizer que muita coisa excede.

Num regime de excesso, a escolha se faz através da estafa ou da ignorância. Mas não só. E é neste não só que poderemos vislumbrar formas de encontrarmo-nos com as expressões do mundo desviando da estafa provocada pelo anseio de abraçá-lo ou pela ignorância de quem abriu mão de pesquisá-lo. Existem perigos tanto na estafa quanto na ignorância. E talvez o caminho da ignorância passe pela estafa e vice-versa. Tirando do abstrato para a exemplificação, criarei algumas imagens – mais delas, mais textos, mais disputas, mais sinais de fumaça ou compartilhamentos ou likes ou supressão de espaços de vida.

Resumo um modo de estar se relacionando com a vida que não acontece de um dia para o outro. Não. Insiste de um dia para o outro, posso afirmar, por aquela tão proclamada “experiência própria” que não é tão própria porque é relacional. São muitas pessoas e coisas que fazem a experiência tomar algum corpo de sentido. Há também aquilo que somente está ali, para nos permitir fazer alguma coisa. Porque há coisas que não agem. E é bom distinguir certas coisas quando o casaco da moda está no espaldar das cadeiras de muita gente. Divago, eu sei. E me permitirei seguir o movimento dos meus dedos que não necessariamente reflete a velocidade dos meus pensamentos. Porque (mais um parêntese) quando penso com as pontas dos dedos ou com a caneta não o faço da mesma forma. E ainda é diferente quando penso dentro da cabeça. O que também se difere de pensar em conversa com as pessoas. E dependendo das pessoas e dos ambientes os pensamentos vagam, minguam ou se inspiram.

Pensar é uma ação cheia de diferenças. E é bom que seja assim. Tenho certeza que se dar conta (na gíria, uma boa gíria, uma gíria estalar de dedos) da diferença nos modos de se chegar e produzir os pensamentos, torna nossos percursos menos arrogantes. Acho que se não fosse assim, seria o “tédio com um T bem grande pra você”. Para nós, Renato. Eu comecei toda comportada este texto ou exercício, ainda não decidi e isso só será definido ao final do experimento. Como eu dizia, comecei tentando desviar da primeira pessoa. Agora que ela já deu as caras, só me resta seguir com ela e também seguir com a conversa, porque a primeira pessoa do plural também já deu as caras por aqui. Quero conversas inclusivas e me incluo nas misérias do mundo, mas não entre as pessoas psiquicamente miseráveis. Avalio bem a mim mesma porque tenho insistido em não sucumbir e acredito que isto diz alguma coisa sobre as pessoas e obras que encontrei nos caminhos.

O excesso que produz a falta e a falta que é sistemicamente produzida pelo próprio excesso tem contexto – maquínico. O curto-circuito da vida mental. A ansiedade ensaiada pela busca material. As suas imagens. Ai, como me foge a linha da vontade e as imagens do pensamento. Me esqueço delas, às vezes logo após pensá-las, quando não são registradas imediatamente. Por isso, lido com impossíveis. Impossível dar passagem para tudo o que pode o movimento de pensamento. Chega a ser meio absurdo que tenham por tanto tempo palestrado sobre a razão como palpável já que seu processo de produção só é reconhecível depois, depois de feito. “Ah, fulana, mas os gregos não escreviam tudo e faziam grandes exercícios de razão.” Sim, mas só depois que a palavra sai da boca ou do dedão do pé é que a razão toma alguma forma. Kant, nessa parte, levantou do caixão e apertou a ponta do meu nariz. Não enxergou onde estavam as orelhas. O pensamento é feito e não podemos afirmar que este fazer é completamente guiado pela vontade. Como explicar aquilo que vai tomando forma à revelia de quem está com a mão na massa? Como explicar sem usar a imagem da loucura? Pensadoras e pensadores no mundo, unamo-nos!

Não entrarei no mérito da lógica. Já temos bastante disso. Já temos, inclusive, quem chame a razão para o lado do absoluto, tirando do caminho, como irracional, tudo que está incompleto, que existe na instabilidade. A lógica pode ser mais do que um único mecanismo de pensamento marcado por dois operativos opostos – sim ou não. Pode ser sim e não. Sim e não e talvez. Há lógica na ambiguidade. Lógica esta que, não raras vezes, tem sido fartamente utilizada para afirmar a mentira. Pois sustentar a ambiguidade na sua severidade é duro. E seriedade não é o forte dos mentirosos. Quando eu era jovem, bem mais jovem do que estou agora, copiei na capa do dicionário uma citação do Espinosa. Eu tenho ainda o dicionário – guardado na mesa-de-cabeceira – com a frase: “O homem é livre para pensar e acreditar no que lhe dita a sua razão”. Antes de qualquer coisa, não sei se essa frase é mesmo de Espinosa. E isso pouco importa, agora, quando peço para que visualizem a cena desta frase na contra-capa do minidicionário Aurélio. E sigam imaginando uma pessoa jovem, com 15 ou 16 anos, sentada na mesa da cozinha numa tarde ensolarada com uma biografia em quadrinhos de Karl Marx. E nos tais quadrinhos, ela descobria uns filósofos e funcionamento de contradições das quais nunca ouvira falar. Contradições que estabeleciam dominações. Junto aos filósofos, vinham as palavras desconhecidas e o minidicionário escolar que a acompanhava desde a 5ª série quando ensinaram a ela o sistema de procurar palavras. Essa quantidade de palavras – em português – dava uma sensação de abundância. Porque naquela época, aquela guria, que também era eu, entendia as coisas mais como tarefa do que como sentidos para as invenções (de mundos).

Preciso desviar um pouco – e marcar – para aquelas pessoas que estão mais ou menos intrigadas com o que poderá ser deste exercício – que decidi, agora mesmo, deixar as ideias derivarem. Acho que vocês não irão se importar. Mas poderão odiar. E fazer a crítica é importante. Quais os critérios. Critério parece uma palavra horrível, quase soa militar: cri-(direita!)-té(esquerda!)-rio(volver!). E vem do grego, Kriterion, que tem a ver “com distinguir o verdadeiro do falso”, também tem a ver com “padrão” e mais de longe tem a ver com “separar”. Esses parentescos entre as palavras são interessantes, fazem pensar ou, pelo menos, deveriam. Pensar que os regimes de verdade estão relacionados aos padrões e também às dinâmicas de separar e que tudo isso está contido na palavra critério, aquela que chamamos para dar limites a elaborações as mais diversas, nos ajuda a entrar no funcionamento de uma forma de organizar e dizer o mundo. Mas não fugirei da questão. Critérios são necessários e se eles têm a ver com os padrões (quais padrões?) quer dizer que não podemos deixar que quaisquer ditos “representantes do bem” doutrinem quais são os padrões e que pontificiem, de uma vez por todas, o que é verdadeiro. Meu apego ao concreto diz que podemos ir pela estrada em busca do que acontece e que podemos ir em muitos e depararmo-nos com aqueles que matam pelo seu próprio e interessado padrão. Aqueles que não têm relação com a verdade da vida.

Eu nos provocaria a conceber que o padrão moderno, da substituição da força vital das pessoas na criação de sua própria vida, pela absorção dessa força vital para a exploração e consequente dependência, não pode continuar. Ele é a base da política da falta mais elementar que é compensada pelo excesso material mais perturbador. Inquieta viver num mundo em que deixamos de fazer coisas com as próprias mãos, no sentido amplo da expressão. Porque esses que enriquecem generalizando o sistema de dependência material, há séculos roubam nossas terras e as forças de nossos braços. Não sabemos mais construir as nossas casas e plantar os nossos alimentos, quase não sabemos mais o que podem os nossos corpos. Dependemos. Mas a verdade é que o tal padrão moderno, embora faça de tudo (citar atrocidades) para nos matar pelo roubo de nós mesmos e pela alienação daquilo que podemos aprender para viver – aquilo que nos colocaria em outro lugar de relação no mundo – não é vitorioso, não é único, não venceu e, mais importante, deve acabar. Reaprender a fazer as coisas mais básicas. As coisas. Mais. Básicas. E aprender que o básico pode e deve ser feito com arte. Esse é o meu curto grito inspirado nos povos insistentes e burladores do padrão colonial.

Na sala de aula, vê-se os estudantes criando arquivos e mais arquivos com suas máquinas fotográficas, quer dizer, com seus celulares. Cadernos parecem ser uma mera formalidade, uma materialidade que existe para fingirmos que ainda estamos no controle enquanto produzimos uma quantidade de imagens que, provável, não serão “lidas”. Que arquivos são esses que nos eximem de usar uma ferramenta tão básica: a mão que escreve? E antes que qualquer um diga: “ah, mas tu não podes querer voltar no tempo”. Já retruco: que tempo é esse que se faz por cliques? Excesso e falta. A lógica agônica da substituição tecnológica que tem nos levado para além do limite (outro conceito a se pensar na sequência, talvez). Que tem educado gerações a existirem através de insônias luminosas, as quais alimentam a timeline da memória superexplorada. Nos roubam a vontade na desatenção. Corporações – com altas cotações na bolsa de Nova Iorque – que nos mostram o que lembrar criando para nós um eu que só pode servir a elas próprias, mantendo nossos olhos frenéticos e propagandeando ansiolíticos para dormir. A feitura do eu como um produto para o mercado da exposição. A vida excessivamente mostrada e a comparação estimulada: “por que não sou assim, tão produtiva?” O modo de produção capitalista sendo operado através de uma política do eu – individualista – que não é nova, mas que tampouco está como era quando o indivíduo foi definido como unidade inteligível e indivisível. A fabricação da pessoa através da maquinaria do excesso produz a própria impossibilidade de se descobrir como pessoa na totalidade. Casa de espelhos onde não vemos mais do que reflexos duplicados, triplicados, quadruplicados. E que vida é possível sem sentir o contato com o chão? A hipocrisia ganhando consistência como forma de estar no mundo.

Agora, não consigo voltar ao corpo de quando eu era a estudante do Segundo Grau. Mudou de nome, Ensino Médio, pós lei de Diretrizes e Bases da Educação proposta no Congresso Nacional pelo Darcy Ribeiro, aprovada em 1996. Eu penso no Darcy e logo mentalizo ele fugindo do hospital na voz do Ney Matogrosso. “Qual a cara da cara da nação?”[1].  Darcy é Brasil também. Essas figuras que insistiram e que também fizeram suas cagadas. Sempre quis escrever cagada num texto não ficcional. Aqui estamos. Darcy nos permite narrar os erros por seu nome cru – cagada. Quando estava lá usando o minidicionário Aurélio nas décadas de 1980-1990 não tinha nenhuma noção de quem era o Espinosa e nem sabia do Darcy. Os tempos das pessoas e as vidas que impactam e são impactadas. O tempo de um acontecimento produz efeitos de longa duração, que nos chegam para além de sua irrupção propriamente dita. Nos chegam mudados e mudando. As diretrizes e as bases. Os critérios. A razão. O acreditar. O direito. Estar livre. “Na verdade, o Brasil o que será?”[2].

Isabelle Stengers[3] vem dizendo que a organização material capitalista enterrou a razão. Sua existência não sensibiliza mais em termos de comunidade, população, presente, futuro. A razão que desenhou a noção de “progresso” não consegue mais apagar a correlação entre ela e o movimento da realidade que a nega. Se as expectativas morais que moviam as máquinas humanas e aquelas ainda não humanas tinham o progresso como justificativa, como palavra-movimento, informada pela razão, especialmente nas suas manifestações científicas, hoje, a própria razão se vê alijada de existir na sua possibilidade de planejar diante do real. Ela mesma é questionada no seu processo de medir, ponderar, relacionar, lembrar. Não é o caso de lamentarmos a derrocada do status desta razão como universal e onisciente. Não se trata disso. Mas a incapacidade de fazer dela outra coisa quando desvinculada da noção de progresso parece nos deixar vital e politicamente na condição de reféns dos seus vícios. A razão – como exercício de busca pela complexidade do mundo, como um movimento de pensamento que possa se dar sem esperar realizar o desenvolvimento, a modernização, a evolução – ainda pode alguma coisa. Pois, vejamos: evoluir quer dizer o quê exatamente na boca do banqueiro na boca do espiritualista na boca do biólogo na boca do pastor na boca da senhorinha que faz limpeza “em casa de família” no contexto pandêmico? Evoluir para onde num planeta massacrado que só pode seguir em frente com o problema, trazendo Donna Haraway[4] para esta conversa? Estamos dentro do problema. E nada disso acabará, não importa o que digam os pregadores negacionistas da catástrofe que cotidianamente se manifesta bem perto de nós. Ou será que a comida intoxicada que chega na mesa da maior parte das e dos brasileiros não significa nada? Ou será que a comida que não chega na mesa de algumas pessoas não significa nada? Ou será que a brutalização do trabalho não significa nada? O “novo” normal realmente está instalado ou é mais uma operação retórica para que nos acomodemos com as imposições da exploração como necessárias, consequências das “imprevisibilidades” da natureza? Aliás, antes de prosseguir, mais um parênteses: chama atenção como a natureza é mobilizada ora como inconstante ora como constante pelos adoradores do capitalismo. Se no terrorismo moral – de várias matrizes cristãs, apoiadas pela classe média ressentida – a natureza do corpo é imutável; para esses mesmos atores, ela é inconstante quando uma mineradora se instala numa paisagem e o território é coberto por lama e as pessoas são expulsas não só de suas casas, mas das suas memórias territoriais, de seus modos de existir no mundo concreto. A separação entre a natureza do corpo e a da terra serve ao projeto colonizatório.

Tomarei o normal, aqui, no sentido explorado por Georges Canguilhem[5]. Normal como produtivo e como instável ele mesmo porque próprio da vida, da relacionalidade que conforma a vida. E não explicarei mais nada porque não me compete explicar e porque, afinal, os livros estão aí. Deixo aqui – no tempo do texto – quando me ocupo a pensar – selvagemente – as autoras e autores que sussurram nos meus ouvidos. Cada dia que passa me deixa mais convencida de que o que fazemos com a materialização dos pensamentos, análises, preocupações, problematizações de outras pessoas têm nos servido menos para dizer outras coisas do que para justificarmos uma posição de legitimidade que o sistema nos têm ensinado a buscar. Quando escrevo sobre pensar selvagemente, o faço no sentido da prática do pensar observada por Karen Knorr-Cetina[6] nas suas pesquisas com cientistas em laboratórios, não naquele da primitivização ou da bricolagem oposta à ciência. Aliás, sobre isso, para qualquer pessoa será possível perceber, lendo os trabalhos dos cientistas do século XIX, os europeus – não porque tenham sido somente eles os cientistas, mas porque eu os li já que eles estavam próximos a mim como os cientistas árabes não estavam e não estão por conta da organização das instituições de ensino e do complexo sistema de citação que acompanha a história colonial da ciência – brancos, que eles estavam fazendo uma ciência selvagem porque a natureza da prática científica é essa. Se dá no fazer. Mas além disso, o fazer deles também poderia ser pensado nos termos da bricolagem lévi-straussiana com algumas modificações. Uma questão de rearranjo, por um lado; e de acumulação (sinaliza Bruno Latour), por outro. Pensando a partir de agora com toda essa gente que está e que já morreu, podemos talvez dizer que processamos na reconfiguração e na acumulação. Mas também inventamos, assim como os ditos “selvagens”. E na invenção abre-se o processo histórico para a transformação social.

O normal – estabilização de um processo de significação da vida; o excesso – superprodução e a acumulação – de saberes e técnicas. Eu sei que é mais complexo e estou pensando que eu gostaria que a senhorinha pudesse ler este texto. E pensando nisso, também me dou conta que toda essa gente com quem eu estou falando é gente desconhecida para a senhorinha. E sigo nisso, sugerindo que a senhorinha não precisa conhecer essas gentes agora para acompanhar o que tento dizer pra ela e pra vocês e pra mim também. Pois sabe-se-lá quando poderei dizer essas coisas novamente ou se estarei com corpo para dizer essas coisas deste jeito e não de um jeito cheio de provas sobre o que estou dizendo. Aqui eu deixo certas provas, mas não me preocupo com o regime da prova na sua rigidez. O regime da prova é uma preocupação que já habita minha forma de me relacionar com o mundo e eu não ponho isso fora: kriterion. É importante para não esquecer que as coisas que deixo aqui não são coisas que brotam da terra fértil da minha massa cinzenta. Ou da iluminação metafísica exterior à conversa com pessoas e à observação dos seres que respiram e que vivem aqui e não num lugar imaginário: lá no céu ou lá no inferno. Tarde demais para continuar significando o lugar do pensamento pelas ordens de um ser superior. Qualquer ser superior, venha ele de onde vier. Não alimento o afeto aos ídolos. Ou alimento? Porque sou iconoclasta, tenho horror a figuras incensadas. Colocadas no altar. Quem mesmo precisa de heróis e de ídolos? Para quê? Uma coisa são companheiras e companheiros de jornada, outra coisa são seres colocados à frente, inalcançáveis, maçãs proibidas. Vamos morder a maçã de uma vez por todas, por favor!

Quando estivermos com fome. Porque me ocorreu agora que estamos mordendo as maçãs, mas que não as estamos comendo até o final. Uma quantidade enorme de maçãs apodrecendo, inviabilizando a mordida de muitas outras pessoas famintas. Tão famintas que quando as conseguem alcançar, seus estômagos já estão fracos e padecem antes mesmo de sentir o gosto da abertura para as dúvidas. Claro que essas mordidas apressadas, as mesmas mordidas que tiram da boca das pessoas o acesso ao que se produziu em termos de arte, pensamento, saber, tecnologia, afeto, têm a ver com o início deste texto. Têm a ver com o excesso, ou melhor, com o ambiente de excesso no qual estamos vivendo e que estamos reificando. Prometi imagens. Deixei, aqui, as maçãs. Que vieram desta maçã bíblica que a nomeada Eva mordeu, em busca de um saber proibido.[Por que a busca pelo saber foi, na gênese, marcada como passível à danação eterna?]

O saber proibido que instaura a divisão e a falta. A falha na máquina desejante que nos coloca num movimento alucinado por tudo. Como assim, por tudo? Por tudo que achamos que devemos ver-ouvir-sentir-provar, um tudo que não conhecemos, mas que já aprendemos que devemos ter. Um tudo que não é tudo e não é livre, porque nossa razão nunca foi livre e, atualmente, voltando para os ensinamentos de Isabelle Stengers, tem sido brutalizada para nos fazer seguir no costume da produção desenfreada e da substituição programada. Nós mesmos somos feitos para durarmos por tempo limitado; as coisas, então, feitas da pior maneira possível, com materiais altamente poluentes. A mentalidade é formatada para pensar que o “novo” sempre é bom, desejável. Mas o que é o novo? Como e quem o produz e anuncia? Por que preciso de uma garrafa plástica para tomar meio litro de água quando estou na rua? Para obstruir o oceano com a mesma garrafa plástica? E não nos confundamos: a nossa sede é legítima, a forma como estamos acostumados a saciá-la que não é. Comemos farelos e com eles alimentamos os animais de “estimação”: é o estimar que se perde na miséria da velha noção de humanidade. Rascunho o modo de viver ao qual fomos nos obrigando e ao qual muitas pessoas dizem obrigada. Nós nascemos. Quase majoritariamente num hospital. Somos medidos, pesados, testados, anotados. Já estamos nos boletins epidemiológicos publicados pelo Ministério da Saúde. Nem somos gente ainda, mas já somos dados que alimentam o projeto de saúde da nação. E se não fosse assim, morreríamos menos? Provavelmente, não. Começamos a vida sem saber que já estamos dentro de um dilema ético, dentre tantos outros dilemas éticos aos quais o modo de produção capitalista nos obriga. A menos, claro, que não pensemos nisso…

O modo de produção capitalista pressupõe um ser no mundo que tenha vontade e saúde. Vontade limitada, nada a ver com a vontade da razão que nos traria a liberdade de Espinosa. Saúde perfeita para a produção. Uma saúde inabalável. Saúde protestante. Que se dá pelo comedimento. Comedimento que significa, em poucas palavras, abrir mão das vontades. Eles dizem: livrem-se das vontades do corpo. Eu digo, e me arrisco na minha insignificância, a dizer somente vontade. Porque o corpo e a mente são a mesma coisa. Não há desejo que não passe pelos sentidos dos pensamentos e pensamentos que não sejam feitos com o corpo. O corpo que nos movimenta, o corpo que reclama de muitas horas parado na mesma posição. O corpo que regurgita literalmente diante de injustiças. O corpo que mata outros corpos. O corpo que faz sexo. O corpo castrado. O corpo que reproduz. O corpo que carrega peso. O corpo que escreve. O corpo que lê. O corpo que canta, que toca, que dança. O corpo que protesta. O corpo que se esconde. O corpo que míngua. O corpo acrobata. O corpo que pulsa. O corpo acabado. O corpo sugado. O corpo cheio. Os corpos têm caras que nos espreitam ou nos olham de frente ou nos ignoram. O corpo tem cara. E a cara está marcada por olheiras de quem não para porque acredita que não pode parar. Se parar, não prospera. Se não prosperar, não tem. Se não tiver, inexiste. A cara precisa estar maquiada mesmo se para prosperar os órgãos sejam bombardeados por compostos especialmente elaborados pela rica indústria farmacológica. Caras limpas à custa do aniquilamento progressivo. Pessoas feitas para serem substituídas. Prosperam os pânicos e as ansiedades.

Tendo a conversar com corpos com caras e ouvir todas as escatologias disponíveis no universo das relações. Nada limpo no mundo. E melhor que seja assim, pois a visão do consultório médico com sua televisão sempre ligada e a revista Veja na sala de espera na sua brancura de móveis comprados pela internet, desenhados pelo arquiteto que só desenha consultórios todos iguais – “vejam que bom gosto, todo mundo quer assim”. Essa visão, dessa higiene, não nos serve para pensar. Para pensar que podemos viver antes de passar muito tempo das nossas vidas sentadas e sentados nestas malditas salas fazendo consultas até a morte. Não nos ajuda a perceber que aquilo que “todos querem” não é sinal de consenso, mas de obstrução do próprio pensamento. E não me entendam mal. Há médicas e médicos; arquitetas e arquitetos. Precisamos de algumas muito mais do que de outros. E separar é importante, nestes casos. Em outros, nem tanto. Por exemplo, quando o papo vem de um inferno eugênico não muito bem enterrado por certas pessoas de certas áreas de conhecimento, as quais não foram capazes – (ainda) – (e até quando teremos que repetir) – (cansadas) – perceber que ciência sem crítica de procedimento ou de metodologia, como quiserem chamar, não é ciência, é seita. E criticar procedimento tem a ver com criar um ambiente de investigação em que pressupostos de pesquisa possam ser analisados simultaneamente às práticas empenhadas nas mesmas. Contudo, é preciso mais: é preciso perguntar sobre quais os instrumentos utilizados; sobre o contexto de elaboração das teorias que estabilizam os pressupostos; é preciso perguntar sobre quais insumos são utilizados e de onde eles vêm; perguntar sobre quem são os corpos humanos ou não que ainda servem como “objetos” para experimentações, sejam elas laboratoriais, institucionais, mentais; é preciso acompanhar as práticas na sua dinâmica cotidiana, que pode, facilmente, ser naturalizada em dias e mais dias de trabalho repetitivo; é preciso dar-se conta que toda prática científica é situada, tem cara, cpf, história de vida, perspectiva moral, visão de mundo… Toda prática científica é produzida e produz um estilo de pensamento, como nos ensinou o médico Ludwik Fleck[7], nos anos 1930, tratando tifo em um campo de concentração nazista, onde estava prisioneiro. Toda prática científica é política e produz efeitos tecnopolíticos.

Donna Haraway[8], outra pesquisadora das práticas científicas, já mencionada aqui, nos desafia a produzir ciência, mas a fazê-la de maneira diferente. Levando em conta que todas as teorias e todas as práticas e sujeitos e coisas que as conformam, ocupam uma posição no mundo e que essa posição funciona como uma lente que faz ver de uma forma que influencia nas tantas tomadas de decisão que estão em jogo durante o fazer científico; levando em conta que a posição daquele que pergunta dá informações sobre as próprias perguntas; considerando que isso não significa que cada pessoa possa dizer por si que está com a verdade somente porque está em certa posição; afirmando que não se trata de relativizar a busca pelo entendimento, ao contrário, trata-se de, ao posicionar-se, diminuir ainda mais a margem de prepotência sobre as conclusões. Por meio de todo este movimento, chegamos, por consequência, na problematização e crítica de noções fartamente replicadas como justificativas para a legitimação de certos trabalhos. Diz-se que um trabalho é crível quando o seu produtor é neutro. E esta suposta neutralidade indicaria a validação universal do produto científico.

Contudo, seguindo a lógica do pertencimento social de toda pessoa envolvida com a produção de conhecimento e de toda a produção de conhecimento, logo se depreende que a neutralidade é um conto de fadas ao qual alguns pesquisadores recorrem – já adultos – para anteciparem a introdução de suas conclusões no campo mais amplo de avaliação pelos pares e pela sociedade. Aliás, quando todos os pares também se olham no espelho e veem nada mais que um sujeito descarnado que pensa, estamos diante de uma forma de operar a ciência – aquela ainda hoje hegemônica – que a deturpa lá onde ela começa, no seu processo produtivo. E é muito difícil responsabilizar alguém que se nomina acima de si mesmo no mundo, que consegue existir além de sua mundanidade, ou melhor, que existe na mundanidade simulando um ideal de relação de trabalho dentro do campo da produção científica que não existe, aquela que pode ser resumida por “eu só faço o meu trabalho, não estou interessado em política”. Fácil, não? Eu lembro de todos os carrascos que dizem exatamente isso quando são interpelados sobre a natureza mortífera de suas “tarefas”. E posso, mais uma vez, recuperar a preocupação que me fez iniciar esta escrita e que persiste: a fabricação de excesso na contemporaneidade. Sim, vocês deduziram certo: o ambiente da produção científica e acadêmica também opera como máquina de excesso. Máquina que produz lubrificada pela concorrência egoísta, geralmente conformada a um projeto de sociedade também egoísta. Há rachaduras na máquina, há sabot emperrando suas engrenagens, há muito a ser feito.

Lembram da maçã? Foi ela que me fez chegar até aqui e é com ela que pretendo sair para outros lados, a fim de ampliar ainda mais o quadro de imagens do excesso, até que eu mesma entre no abismo do que contesto. Será? Tenho a impressão que já entrei. Mas as maçãs mordidas são livros não lidos até o final; são artigos engolidos às 3h da madrugada depois da sexta xícara de café do dia-noite-madrugada; são pastas no computador “cheias” de artigos, teses, dissertações, livros não lidos, nem sequer abertos; são trabalhos nunca tocados. E o problema não está em arquivarmos e montarmos bibliotecas. Não. O problema está em torná-las ambientes de desespero e concorrência. Simbolizo, agora, através da maçã apodrecendo, um sistema de produção formalizado de conhecimento que tira a fome de quem nele está. Tira o tesão do pensamento e o coloca no mal-estar da cultura, para recuperar a ideia de Freud[9], o qual argumenta que precisamos canalizar um pouco de nossa libido ao social. Acontece que canalizar é, de certa forma, ser dobrado ao jogo social. E, pensando alto com vocês, me inquieta acreditar na determinação disto. Por que aceitamos – e aceitamos novamente todo dia – que o gozo fique reservado ao “privado”, aos momentos de “lazer” ou de férias? Aliás, férias, elas ainda existem? Para quem? Conheço poucas pessoas da minha geração – dos que estão chegando aos quarenta, dos que chegaram e dos que passaram um pouco – que têm empregos. Quem dirá férias. “Meus amigos todos estão procurando emprego” e nós já não somos mais “tão jovens” como eram os amigos de Renato Russo[10]. O comum, a libido, o trabalho…

As maçãs mordidas deixadas em cima da mesa da biblioteca ou ao lado dos computadores ou sobre as camas e pias dos banheiros são parte do mesmo processo da produção capitalista do excesso que nos coloca diante de projetos bizarros, como aquele de uma mina de carvão a céu aberto[11], em pleno século XXI, que conta com “cientistas” para produzir laudos e assiná-los, fazendo o trabalho sujo das nacionais aves de rapina e dos empresários estrangeiros adestradores das aves de rapina e dos governantes colonizados. Não sobra nada para o povo e a responsabilidade, da qual nos falam as teóricas feministas da ciência, pode ser ignorada por conta de um acúmulo de dígitos numa conta bancária. A terra é cavocada por conta do acúmulo de dígitos em uma conta bancária. A água é contaminada por conta do acúmulo de dígitos numa conta bancária. As pessoas perdem seus territórios por conta do acúmulo de dígitos em uma conta bancária. A produção agroecológica é embargada por conta do acúmulo de dígitos numa conta bancária. Os animais morrem por conta do acúmulo de dígitos numa conta bancária. O ar é inviabilizado por conta do acúmulo de dígitos numa conta bancária. Morremos como e com os peixes fora d’água por conta do acúmulo de dígitos numa conta bancária. E o carvão, para onde irá? A quem servirá? E o excesso se dá nos dígitos e na tragédia que os dígitos abstraem, mas que os corpos e os seres e o ambiente não podem abstrair. Por isso me corrijo, não é verdade que nada sobra ao povo. Não, não. Para o povo resta a destruição de seus recursos de vida – desde suas terras até seus corpos: modos de vida morrem.

Com dígitos e energia controlada por grandes corporações, especialmente aquelas que fazem negócios em inglês colonial ou no inglês oriental do momento, vamos nos ocupando das contas a pagar. Das pequenas-grandes contas que os pequenos-grandes homens são instruídos, desde a primeira palmada na bunda, a honrar. Na mesma lógica da obediência a qualquer ser único divino ou feito homem, aquela mesma que anuncia, sem vergonha, que o prostrar-se diante do espólio cotidiano é condição para a salvação. E há nisso uma tragédia maior: a constituição prática destes seres que anseiam a salvação como se ela fosse possível. Crentes na possibilidade prometida. Crentes nas palavras deixadas por outros homens de outros tempos, preocupados em tomar o controle dos nascimentos, acinzentar o brilho dos olhos e contabilizar as mortes por guerra e inanição. Não começou com o soberano a história dos suplícios. Basta ler – aleatoriamente – alguma parte do Velho Testamento. O registro da litania de violências cometidas para garantir a “vida boa e próspera” dos escolhidos. Deus escolheu aqueles que disseram que ele assim o fez. Interessante conclusão essa, deduzida pelos legisladores de Deus.

A bíblia customizada diz muito sobre os pregadores da fé. Não quero seguir com este problema milenar por mais um parágrafo. Muito sangue vem sendo derramado e muita tinta já foi gasta. Para quê? Para que existam pessoas desejosas de receber uma palavra que anule as suas próprias palavras ou, pior, anule a sua capacidade de perceber a diversidade de palavras, línguas, sintaxes existentes no mundo. Eu não tenho a preocupação de ser expurgada da discussão com os crentes. Até gostaria, mas considero impossível que eles falem com alguém como eu. Não porque eu viole os dez mandamentos ou porque blasfeme contra as crenças alheias. E, sim, porque eu não posso me sentar para uma conversa com quem pretende, antes mesmo de qualquer palavra realmente trabalhada, me salvar. A todos e todas as salvadoras de almas, de cus, de pátrias, de “coitadinhos”, meu adeus sincero. E um pedido: não envolvam seres divinos nas suas insuficiências mundanas. Sempre há perto de nós alguém mais fodido esperando uma mão. Alguém mais fodido para ajudar-nos a expiar nossas mazelas. Ou aquilo que alguém diz que é mazela. O excesso é bloqueado nestes casos não porque ele não exista, mas porque o desejo todo é convertido à função pastoral. Inebriando, com mais fervor, as ovelhas recém trancadas no cercadinho. No fundo, no fundo, toda ovelha se imagina um pastor (acumulando dinheiro).

Chega, chega, chega, chega, chega, chega, chega, chega, chega, chega, chega, chega.

Volto.

Revolto.

Será mesmo que vale a pena gastar tanta energia pensando nas razões e nas formas dos engajamentos cegos? Estou sendo forçada pelos pensamentos a responder que sim. Que é fundamental. Pois os engajamentos cegos nos levaram até aqui. Até esta dinâmica de usurpação da vontade mesmo lá onde ela parece ser a rainha do pedaço. Todas as pilhas de coisas que vão se acumulando nos cantos de nossos pensamentos e de nossos lugares de moradia só dizem do excesso produtor do ilusionismo que nos prende. Excesso que funciona como dinâmica que se materializa através do abuso da capacidade produtiva das pessoas, transformando a quantidade em qualidade positiva a priori. Todas as propagandas de si são mais do que expressões patéticas da perda de si, são o resultado explícito de que entramos de cabeça na mágica cantiga de ninar do capitalismo. Aquela que ao dizer “você é dono de si”, quer dizer “você só tem uma saída neste sistema, vender a si mesmo”. Outro acorde da cantiga, tocado antes de dormir, é “seja perseverante e você vencerá”. Verdade, perseverar ajuda – com o tempo – a perceber que você não vencerá porque neste sistema não há vencedores a longo prazo. Até mesmo os que exploram as nossas perseveranças estão sujeitos a desaparecer do planeta. Podem durar um pouco mais, nos seus bunkers ou em Marte, mas perecerão.

Vocês já entenderam e devem estar deprimidos. Embora, minha intenção seja deixá-los incomodados e com raiva do que nos faz estúpidos, ou melhor, dos mecanismos de fazer a vida que nos querem estúpidos e olhando para nós mesmos na casinha de espelhos, talvez na presença de nossos amiguinhos. Trancadas e trancados no looping daquilo que nos incomoda, num trabalho contínuo de tentar fazer sentido ao que já entendemos, mas que nos oprime por nos obrigar a continuar – mais ou menos – tendo que lidar com o absurdo. Vocês já entenderam tudo e entenderam, também, porque vocês que estão lendo isso, têm algo dentro que quer sair, que quer se encontrar com o conhecido e com o desconhecido, que quer distribuir a terra, ver como faz para plantar, fazer circular as sementes crioulas, ver o peixe sob a água cristalina, encontrar a rua da cidade com árvores saudáveis e algumas frutíferas, ali pertinho, as frutas da estação, nossas. Um nosso feito pelo olho no olho ou pelo olho na voz ou pela voz no tato ou pelo tato nos pensamentos. Um exercício de encontro não obrigatório, não para estar na moda, não para estar com quem está na moda, não para se salvar em grupos de autocomiseração, nada disso, mas para aprender as coisas da vida com outras pessoas. Um exercício de fazer valer o bem comum. Chega de ignorar de onde vem a comida que se come ou de agir como “dono” só porque o dinheiro está na mão. Chega de romantizar as brigas históricas dos povos. Chega de achar bonitinha a vida espremida na reserva porque lá tem mato. Chega de duvidar do que as pessoas dizem quando elas mostram as mãos calejadas. Chega de não ver o belo da simplicidade das pessoas existindo e dizendo a sua existência. Trata-se de parar de especular para ouvir o pensar cotidiano dos viventes.

Acabo este experimento, exercício, texto, que se tornou quase um manifesto, o manifesto que um dia ainda escreverei, com a imagem da busca pelo belo que emerge da vida vivida e das relações vivas. Perco a força dos dedos porque há coisas que merecem mais palavras, mas quero deixá-las em aberto. Não é na miséria da concepção capitalista de mundo que está a potência do que podem os seres na vida. E isso já é o suficiente para implicarmos nossas existências na pesquisa responsável do mundo como partes dele e não senhores. Enfim, para não deixar o dito pelo não dito, aviso que me constrange não nomear os bois, ou seja, me constrange generalizar demais situações que se singularizam a cada território e a cada época, que fazem pessoas reais. Mas peço licença para continuar ensaiando, tentando registrar movimentos que não são só meus, mas também meus. Peço licença e chamo vocês para fazermos outras coisas aqui, agora, para o futuro. Podemos muitas coisas, mas temos que nos desamarrarmos das cordas do excesso, ele tem nos deixado confusas e alimentado nosso narcisismo idiota. Ele tem feito o capitalismo prosperar. Vamos ler com calma. Estudar com calma. Ouvir com calma. Mas vamos gritar também e sem calma no mesmo movimento. Porque não basta pesquisar as belezas do mundo, precisamos valorizá-las nas relações que as tornam possíveis, ao mesmo tempo que devemos seguir enfrentando os exploradores, prestidigitadores da salvação individual.

Porto Alegre, 01 de setembro de 2020

 

Notas

[1] “A Cara do Brasil” (1999), música composta por Celso Viáfora e Vicente Barreto e interpretada por Ney Matogrosso.

[2] Idem.

[3] Conferir, especialmente, o livro “No tempo das catástrofes”. Editora Cosacnaif, 2015.

[4] “Seguir con el problema: generar parentesco en el Chthuluceno. Traduccíon de Helen Torres. Consonni, 2019.

[5] “O normal e o patológico”. Editora Forense Universitária, 1995.

[6] “La fabricación del conocimiento: un ensayo sobre el carácter constructivista y contextual de la ciencia”. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2005.

[7] “Gênese e desenvolvimento de um fato científico”. Editora Fabrefactum, 2010.

[8] Conferir “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, 1995.

[9] Penso no Sigmund Freud de “O mal-estar da civilização” e “Totem e tabu”.

[10] “Teatro dos vampiros” – Disco V, 1991 – Legião Urbana.

[11] Projeto Mina de Carvão a céu aberto, empreendido pela mineradora Copelmi em parceria com capital chinês. Animadoras são as ações de resistência a este mentiroso e destruidor empreendimento. Não à Mina Guaíba e aos projetos de mineração para o RS e para o Brasil, tanto os que já estão em andamento quanto aos que pretendem se tornar operativos em breve. Para o caso do Pampa no Rio Grande do Sul, conferir o documentário de Tiago Rodrigues, “Dossiê viventes – o pampa viverá”, disponível no Youtube.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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