Imagem: ilustração de Edward Gorey
Por Juliana Mesomo
Texto baseado nas discussões coletivas levadas adiante no curso “Políticas da escrita”, oferecido em 2021, no marco do Campus Comum – Universidade Livre.
As peças textuais produzidas nos domínios das ciências sociais em geral, e da antropologia em particular, reproduzem o artifício ficcional clássico: a história que devemos contar nos marcos da disciplina começa necessariamente em um ambiente de ignorância, onde nossos heróis trágicos (objetos, indivíduos, grupos) agem de acordo com sua percepção enganosa das aparências, percepção que é, no mínimo, insuficiente para explicar a essência dos fenômenos que afetam os personagens da história. O analista intervirá para mostrar essa insuficiência e para demonstrar, da maneira o mais exuberante possível, o quanto a verdade dessas situações se encontrava longe das aparências iniciais (tão longe que poderia aparecer, inclusive, como a inversão completa do cenário do qual se partiu).
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É curioso retornar sobre um tema de debate que foi dado por encerrado pelos representantes mais proeminentes de um campo disciplinar. Tem-se a impressão de estar diante de um problema pouco urgente, uma vez que já teria sido resolvido. Ao revisitar determinadas críticas aparentemente “superadas”, no entanto, o que se percebe é que elas podem ter sido, na verdade, deixadas de lado em nome da boa saúde da própria disciplina. O tema em questão é a proximidade entre o texto antropológico e o texto literário ou, em outras palavras, o fato de que os antropólogos se utilizam de artifícios e recursos textuais comparáveis aos da literatura para construir as sedutoras imagens de alteridade que pretendem fazer circular. Sem dúvidas, o tema ainda é objeto de discussão nos domínios da antropologia. No entanto, o pré-requisito para entrar no debate atual é a adoção de um ânimo propositivo. A pergunta que eventualmente circula em oficinas, simpósios e congressos deve girar em torno de como melhorar o texto antropológico, como fazer um maior proveito das suas potencialidades, como experimentar novos estilos, etc., sem que seja necessário enfrentar-se com a crítica das estratégias textuais, das metáforas, elipses, inversões, alegorias e demais recursos abundantemente utilizados para criar, no texto antropológico, seu potencial efeito literário.
A proposta dessa intervenção é resgatar do fundo do baú das questões disciplinares aparentemente resolvidas a inquietação quanto à natureza literária do texto antropológico. Que tipo de recursos estéticos tornam a narrativa antropológica uma apresentação possível, interessante e/ou razoável tanto das pessoas, quanto das situações em que elas se encontram? Que elementos textuais sugerem a certeza de que estamos diante de uma representação fidedigna, verossímil e verdadeira das situações? Verdadeira, ainda que – e, talvez, justamente por isso – “parcial” e “matizada”, como gostam de afirmar os antropólogos. Meu esforço por voltar a falar desse tema surge da intuição de que o texto antropológico baseia sua legitimidade não só em algum efeito de cientificidade resultante da objetividade dos dados e análises apresentadas, mas também na sua forma narrativa, no seu caráter de história “bem contada”.
Desde que surgiram, no interior da disciplina, as primeiras críticas sobre o tema, os artifícios que sustentam as representações nos textos antropológicos sofreram algumas transformações. Tais transformações podem ter sido impulsionadas pelos questionamentos dirigidos ao campo tanto por grupos tradicionalmente estudados pelos antropólogos quanto por novos sujeitos que, adentrando o espaço da disciplina, se propuseram a transformar a maneira como determinados coletivos eram representados. No entanto, é bastante possível que esses novos artifícios textuais e novas formas de representação ainda compartilhem com seus antigos congêneres algumas características, seja na maneira de chamar a atenção do leitor, seja na forma de dispor e apresentar informações ou na construção de personagens significativos. Seria interessante, portanto, voltar a encarar criticamente o texto antropológico no que diz respeito à sua artificialidade literária, isto é, tomá-lo como um texto que pretende, no ato mesmo de apresentar e afiançar uma análise verdadeira, contar também uma boa história.
Os representantes mais conhecidos desse debate nos domínios da disciplina são os autores associados à crítica pós-colonial e à teoria pós-moderna, tais como James Clifford e Vincent Crapanzano, os quais abordaram de uma maneira mais direta o texto antropológico como lugar de construção e manutenção de um tipo de autoridade discursiva. Clifford, por exemplo, rastreou as estratégias utilizadas nas etnografias clássicas para construir textualmente a “autoridade etnográfica”: enquanto a legitimidade científica era garantida pelo linguajar que evocava certa cientificidade, o recurso à “experiência” direta vivida com grupos considerados “outros” era o que dava autenticidade e força ao relato. Clifford lembra que a busca pela “experiência autêntica” foi comum tanto à antropologia moderna quanto às vertentes modernistas na literatura. Ele estava convencido de que a análise das estratégias textuais da antropologia poderia ser tão útil quanto a análise dos aspectos ideológicos e políticos da disciplina para entender a sua reprodução como campo discursivo. Isto porque os textos etnográficos são uma materialização perene dos enunciados antropológicos, e é possível conhecer neles não só o seu conteúdo, mas também as estratégias de construção de discurso que são desdobradas ali.
A importante chave de análise sugerida por Clifford – e que encontramos também na obra de autores como Edward Said e Michel Trouillot – consiste em dissolver o aparente isolamento do texto antropológico[1]. Se bem a antropologia se vale de certo linguajar cientificista para instalar seu discurso, seus recursos textuais, isto é, aqueles que sustentam sua forma de expor dados e argumentos, na verdade, compartilham um mesmo terreno com uma série de outros textos e suportes literários, majoritariamente associado a outros campos, como os da ficção, do relato, da crônica, etc. Estamos diante de um tipo de texto que torna-se peculiar justamente porque pretende unir elementos pertencentes a duas fontes de enunciação diferentes e bastante poderosas: o discurso científico, por um lado, e a literatura, por outro. Seria possível arriscar, aqui, uma hipótese: enquanto retira do linguajar científico sua autorização para falar, é dos recursos literários (mal ou bem executados) que o texto antropológico retira sua capacidade de seduzir e atrair um potencial leitor.
Jamais estivemos, é claro, diante da opção de não utilizar estratégias de escrita mais ou menos compartilhadas com as narrativas de natureza literária quando se trata de organizar os resultados da análise social. O que pretendo, na presente intervenção, é provocar uma reflexão sobre o uso desses artifícios, na tentativa de torna-lo mais consciente. A maioria dos artifícios textuais que utilizamos são transmitidos a nós no contexto da formação disciplinar. Se nossa intenção é fazer outra coisa, substancialmente diferente daquilo que ocorre na disciplina, precisamos estar em condições de escolher quais estratégias narrativas são mais adequadas para os objetivos políticos que pretendemos alcançar com as análises que construímos. Do contrário, isto é, se não nos separarmos e, em seguida, observarmos quais são as formas narrativas transmitidas nos circuitos disciplinares, estas mesmas formas seguirão falando através de nós e terminarão, cedo ou tarde, traindo nossas tentativas de dizer outra coisa.
Pois bem, no livro “Los Bordes de la Ficción” (na tradução ao português “Margens da ficção”), encontramos algumas sugestões bastante pertinentes para aprofundar a investigação sobre como as ciências sociais em geral recorrem a artifícios literários no momento de escrever os textos que pretendem sustentar seu discurso de saber sobre o mundo em que vivemos. Antes de prosseguir para o detalhamento do argumento de Jacques Rancière nesse livro, é preciso ter em conta a seguinte constatação: nos enunciados antropológicos, o discurso de saber se intersecta com a suposição e a projeção de uma “alteridade”, de maneira que só é possível, na antropologia, conhecer algo sobre o mundo em que vivemos se aceitamos a condição de que existe o “outro”, isto é, existe sempre algo ou alguém que possui uma constituição cultural, subjetiva ou até mesmo “ontológica” substancialmente diferente da nossa. O discurso de saber antropológico supõe e secreta “diferenças” relevantes sobre o fundo de similaridades compartilhadas – estas últimas nem sempre são declaradas explicitamente e são, antes, supostas uma vez que compõem a própria condição de possibilidade da transmissão, tradução e interpretação das diferenças. Em suma, se bem a antropologia compartilha com as ciências sociais a pretensão de construir um saber sobre a vida coletiva dos homens, ela singulariza tal tarefa ao incluir chaves que não estão presentes em qualquer discurso sociológico e que dependem de categorias tais como nós/outros, familiar/exótico, mesmidade/diferença.
No livro em questão, Rancière propõe algumas chaves para pensar o que há em comum entre ficção e análise social, e também o que as separa. A partir deste ensaio, podemos refletir sobre a natureza de ambos discursos, entender suas particularidades e quais são os artifícios próprios de cada um. A principal ideia sugerida por Rancière nesse texto é a de que não existe uma divisão absoluta entre ciência social e ficção modernas. Ambas se fundariam no rechaço da divisão que colocaria, de um lado, “a ciência das relações reais (…), liberada dos artifícios da ficção” e, de outro, a literatura e a arte “por fim livres da dependência do real e da sua imitação”. Nas palavras do autor, o processo essencial que funda, ao mesmo tempo a literatura e a ciência social modernas, é a “abolição da divisão que opunha a racionalidade ficcional das intrigas à sucessão empírica dos fatos”.
Em resumo, nas suas expressões modernas, a sucessão empírica dos fatos pode ser narrada a partir de um modelo ficcional e, ao contrário, a ficção incorpora, no seu processo criativo, a descrição empírica dos fatos. Pois bem, se as ciências sociais incorporam e, além disso, desenvolvem certos princípios da racionalidade ficcional clássica (não moderna), então, para prosseguir, precisamos responder duas perguntas: 1) como isso acontece? e 2) quais são, afinal, os princípios da razão ficcional clássica?
Podemos começar respondendo à segunda pergunta. O princípio básico da matriz ficcional clássica se assenta na ideia de “causalidade paradoxal”. Isto quer dizer que, na matriz ficcional clássica, as causas aparentes de um processo resultam em efeitos “verdadeiros” que desmentem e invertem as expectativas iniciais. A sucessão dos fatos, na ficção clássica, vai da felicidade ao infortúnio (e vice-versa) e da ignorância ao saber, sempre invertendo as expectativas iniciais da história. Por exemplo, se o personagem principal é feliz e bem-aventurado, o desdobramento dos acontecimentos o levará a descobrir a desgraça real que as aparências da sua felicidade encobriam. A passagem de uma expectativa inicial para a sua realização “verdadeira”, através da inversão, ocorre mediante a aquisição de um saber: o que antes se ignorava, isto é, a “verdade” de uma trama ou de um destino, passa a ser conhecido. Na matriz clássica, portanto, um bom encadeamento dos fatos se manifesta através de uma inversão das expectativas iniciais que são também as aparências de uma situação, de modo que os efeitos verdadeiros de um processo aparecem como resultado invertido das causas iniciais aparentes. Nas palavras de Rancière: “a verdade [na ficção clássica] se impõe como inversão daquilo que as aparências davam a entender”. Nesse princípio residiria o núcleo da racionalidade ficcional clássica, que nada mais é do que um modo de causalidade, um princípio de encadeamento de causas e efeitos que conta como as coisas podem acontecer (ao contrário da história que conta como as coisas acontecem, umas depois das outras, em sua particularidade).
Esses são, em resumo, os princípios ficcionais que as ciências sociais modernas mantêm e desenvolvem. No entanto, temos ainda que responder a primeira pergunta: como isso acontece? Essa pergunta poderia ser respondida da seguinte maneira. A ciência social “retoma por sua própria conta os princípios da racionalidade ficcional abolindo as fronteiras que delimitam seu campo de validez”. A ordem ficcional clássica supunha uma restrição do seu domínio de aplicação. Tal domínio se referia à “ação, aos erros que os agentes cometem e aos efeitos imprevistos que seu desenvolvimento produz. No entanto, não se referia, desse modo, mais do que àqueles que atuam ou esperam algo da sua ação”. De maneira natural, na matriz clássica, dividia-se o mundo entre aqueles capazes de ação e a grande maioria de seres humanos que “não agem” propriamente, apenas fabricam “objetos ou crianças, seguem ordens ou oferecem serviços e recomeçam no dia seguinte o que fizeram no dia anterior”. Esses seres e os processos que os afetam não mereciam a atenção da ficção porque no marco dessa dinâmica “não há nenhuma expectativa nem nenhuma inversão de expectativas, nenhum erro a cometer que possa te fazer de uma condição à condição inversa”. Assim, “a racionalidade ficcional clássica afetava a uma parcela muito pequena dos humanos e das atividades humanas. O resto estava submetido à anarquia, à ausência de causa do real empírico”.
O saber ficcional se dedicava, então, a encadear os acontecimentos pelos quais os homens ativos passam da felicidade à desgraça e da ignorância ao saber, ao preço de ignorar a massa de seres e situações que pertenceriam ao universo repetitivo das coisas e dos acontecimentos materiais que simplesmente ocorrem um depois do outro, sem gerar expectativas nem suscitar erros. No máximo, essas histórias ordinárias apareceriam nas novelas, “que eram escritas para entreter e não para produzir algum conhecimento”.
Pois bem, a ciência social moderna “abole” as fronteiras desse domínio, considerando capaz de ação (e, portanto, de erro e de acertos) todo tipo de processo material e de fatos cotidianos: “o mundo obscuro das atividades materiais e dos fatos cotidianos é suscetível à mesma racionalidade que as disposições da ação trágica – esse é o axioma que funda a ciência social moderna”. O mundo verdadeiro da ciência social moderna é “o mundo trágico democratizado, um mundo onde todos participam do privilégio do erro”. Ao abolir as fronteiras, as ciências sociais mantêm, ao mesmo tempo, o princípio da “causalidade paradoxal”, reservando para si “o saber de um encadeamento paradoxal e da inversão das aparências”.
O princípio da inversão das expectativas/aparências parece organizar, de fato, a argumentação e a apresentação dos dados nas análises sociais. Aquilo que, à princípio, parece alegre, mediante a aquisição de um saber, provará ser, na verdade, fonte de infelicidade para os indivíduos e grupos. Basta com lembrar do conceito de illusio de Bourdieu para poder imaginar como opera esse princípio: é onde os homens imaginam encontrar seu maior prazer que eles reproduzem, sem saber, a estrutura da sua submissão a uma ordem determinada. O segredo está, como argumenta Rancière, em inverter as aparências: a verdade objetiva, correspondente à essência de um fenômeno ou processo, deve aparecer desestimando a aparência sensível destes mesmos fenômenos ou processos e, de preferência, invertendo-a completamente: aquilo que aparenta ser é, na verdade, o exato oposto do que o fenômeno é.
Além disso, enquanto a ficção moderna rompe com a “hierarquia das formas de vida que distingue os homens ativos dos homens passivos por sua maneira de habitar o tempo, pelo marco de sua atividade e sua inatividade” (p. 130), os saberes vinculados às ciências sociais continuam operando inversões e oscilações no marco dessa hierarquia – isto é, não a abandonam decididamente. O dilema de determinar a agência dos sujeitos e até a dos objetos supõe essa hierarquia: a luta de definições ocorre em torno de quais sujeitos e/ou objetos serão posicionados de cada lado da linha que separa atividade e inatividade/passividade. Além disso, tendo em conta a manutenção do princípio da “causalidade paradoxal”, é sempre prudente esperar que o discurso de saber da ciência social mantenha abastecido seu apanágio textual realizando inversões intermináveis dessa natureza: ali onde parece haver agência, na verdade, há passividade; ali onde parece haver passividade, na verdade, há agência.
As peças textuais produzidas nos domínios das ciências sociais em geral, e da antropologia em particular, reproduzem o artifício ficcional clássico: a história que devemos contar nos marcos da disciplina começa necessariamente em um ambiente de ignorância, onde nossos heróis trágicos (objetos, indivíduos, grupos) agem de acordo com sua percepção enganosa das aparências, percepção que é, no mínimo, insuficiente para explicar a essência dos fenômenos que afetam os personagens da história. O analista intervirá para mostrar essa insuficiência e para demonstrar, da maneira o mais exuberante possível, o quanto a verdade dessas situações se encontrava longe das aparências iniciais (tão longe que poderia aparecer, inclusive, como a inversão completa do cenário do qual se partiu).
Resta como questão, ainda, a pergunta sobre a objetividade. Não é verdade que, pelo menos em alguns períodos, as ciências sociais se preocuparam por produzir enunciados que fossem compatíveis com um princípio de objetividade, isto é, que dissesse algo fiável sobre o real, longe das artimanhas da ficção? A existência de uma matriz ficcional subjacente à produção do saber sobre a sociedade compromete a sua pretensão de objetividade? Diria, por enquanto, que não, na medida em que a ficção também tece associações possíveis e diz respeito ao real. No entanto, a abordagem do real praticada a partir dos recursos ficcionais é de um tipo particular, diferente daquela reivindicada e realizada pelas ciências. Além disso, como aponta Rancière, a matriz ficcional preservada pelas ciências sociais é a matriz clássica. Enquanto isso, a ficção moderna teria empreendido alguns “desvios” e rompido com essa matriz – o que é assunto, talvez, para outro momento. O que importa, por ora, é o fato de que, diferente da ficção moderna, as ciências sociais mantiveram-se operando sob a matriz clássica. A pergunta pela objetividade científica, portanto, — se é isso o que nos importa — deveria ocorrer necessariamente em tensão com a tendência ficcional ou ficcionalizante das ciências sociais. Talvez a condição para conhecer algo cientificamente (nos domínios do “social”) seja separar-se constantemente da ficção ou da ficcionalização ou, pelo menos, da sua versão clássica. Mas essa é apenas uma hipótese. Por enquanto, podemos sugerir que a estrutura ficcional identificada por Rancière é bastante adequada para descrever a dinâmica de escrita propriamente disciplinar do campo sócio-antropológico. A disciplina antropológica impõe uma rotina de idas e vindas em torno de perguntas e respostas sempre mais ou menos iguais, colhidas de uma agenda autocentrada. Não importa que tipo de evento o pesquisador presencia, com quem ele se envolve ou onde, existe um conjunto de respostas mais ou menos recorrentes que devem figurar nas conclusões de teses, artigos e livros que apresentam e sistematizam as pesquisas de campo antropológicas. Para operar a partir de perguntas e respostas sempre iguais, onde o que se deve descobrir, de certa forma, já está posto, o efeito de novidade, de descoberta deve ser transposto inteiramente para a história a ser contada, isto é, para o texto. O valor da pesquisa, nesse marco, residiria não em servir como espaço experimental, onde se arriscam análises e explicações novas, mas em recolher dados para abastecer a construção de grandes relatos sócio-antropológicos animados pelo princípio da causalidade paradoxal. A arte do etnógrafo e do antropólogo atual se jogaria, então, em certa habilidade, de natureza literária, para operar essas belas inversões, utilizando os dados produzidos em campo.
A essa estrutura narrativa soma-se o par de oposições agregado pela antropologia à tarefa de produzir um saber sobre a sociedade e que gira em torno da noção de alteridade. Se, para a antropologia, só conhecemos a nós mesmos sob a condição de que exista “outro”, então, suas peças escritas também operam inversões em torno desses supostos, agregados àquela matriz que Rancière define: da ignorância ao saber e da felicidade à desgraça. A contribuição original da antropologia à construção desses relatos é a passagem constante (eventualmente, operando inversões espetaculares) do familiar ao exótico, e do exótico ao familiar. Seria necessário aprofundar, mais adiante, em como esses eixos se articulam para abastecer os textos sócio-antropológicos, sobretudo hoje em dia, na era do produtivismo acadêmico e da publicação intensiva. Por enquanto, para finalizar este texto, fiquemos com a seguinte imagem: um campo disciplinar que controla estritamente aquilo que pode ou não ser dito em termo de problemas e respostas, necessitará cada vez mais dos recursos da ficção clássica (suas deslumbrantes inversões) para criar, em torno de conclusões velhas, a sensação de uma nova descoberta.
[1] Edward Said, por exemplo, chamou atenção para a inscrição da antropologia num espaço representacional bastante amplo, ao lado de relatos de viagens, relatórios administrativos, narrativas ficcionais, etc., que ajudavam a definir, ao longo dos séculos XIX e XX, as imagens de um “outro” do Ocidente. Michel Trouillot também recorre ao mesmo procedimento, incluindo os textos antropológicos num vasto campo de criação e manutenção do que chamou de “geografia da imaginação ocidental”.
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