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Carta aos cientistas sociais: carxs amigxs, Rancière nunca jogou no seu time.

Por João Alcântara Illa

Não finjam valorizar a polifonia, a heterogeneidade das vozes, quando, no final das contas, toda essa exuberância só faz sentido para vocês se puder ser remetida a uma pretensa coerência que apenas seus métodos de sondagem estão em condições de revelar.

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Carxs amigxs autodeclaradxs cientistas sociais e afins,

Jacques Rancière está na moda para muitxs de vocês. O intimismo da carta me exime de repassar exemplos concretos dessa tendência. Basta dizer, portanto, que vocês sabem muito bem do que eu estou falando.

Talvez Rancière só possa existir na máquina textual das ciências sociais como uma moda, isto é, como a apresentação do sempre igual em roupa nova; ou ainda, como um fenômeno passageiro sobre a superfície perene do velho cânone.

Vocês sabem que Rancière nunca jogou no seu time. Ao contrário, essa trajetória intelectual que responde pelo nome de Rancière teve início, tal como a conhecemos hoje, graças a uma ruptura irrecuperável com a ciência social.

É possível que alguns/algumas de vocês prefiram acreditar que este autor rompeu foi com o “marxismo”, afinal, assim é mais fácil transformá-lo em ingrediente da sua sopa de letrinhas. No entanto, nada mais errôneo. Naquele marxismo que lhe serviu de espaço inicial de formação intelectual e militância política (o marxismo de Althusser), Rancière negou com veemência as premissas contrabandeadas da sociologia de Durkheim. Tais premissas, diga-se de passagem, conectavam dito marxismo com uma longa tradição de desprezo ao poder criador da fala política. Tradição esta cujo terreno de análise define-se em referência a noções como “laço”, “vínculo”, “coesão”, “totalidade social”, “sistemas” e “representações” (Rancière, 2014). Este é o terreno onde vocês operam, eu sei. Trata-se de um campo de análise que Rancière deixou para trás no final da década de 1960, precisamente quando, para ele, ficou claro que os desdobramentos políticos de referido campo serviam para colocar qualquer iniciativa política autônoma e resolutiva em detrimento da clarividência professoral ou do discernimento do Partido Comunista Francês.

É assustador ver como alguns/algumas de vocês, meus/minhas carxs amigxs, pretendem inscrever os conceitos de Rancière num espaço intelectual que tais conceitos ambicionavam desafiar. O pensamento de Rancière responde a uma política que não poderia ser, jamais, a política que vocês apregoam – ou aquela que pode ser depreendida de vossa teoria. A política de vocês depende da preservação da autoridade professoral e, mais do que isso, exige de seus eventuais interlocutores uma predisposição a aceitar, como critério de ação, a imagem do mundo e das pessoas que vocês mesmos pintam sobre um diagrama de “grupos” e “comunidades” que apenas vossos delicados instrumentos podem tanger.

Vocês gostariam de orientar a prática política dos seus contemporâneos simplesmente porque acreditam acessar, sob o vozerio bizarro da multidão, a coerência oculta das posições realmente dispostas sobre o campo de batalha. Mas e se, digamos, não existir esse lugar oculto de onde emana vossa suposta autoridade? De fato, Rancière estabelece uma única condição para quem quiser – e suponho que vocês queiram – expressar-se com veracidade. Esta condição consiste, basicamente, “na vontade de comunicar, na vontade de adivinhar o que o outro pensou e que nada, fora de seu relato, assegure, e que nenhum dicionário universal diga como deve ser compreendido” (Rancière, 2003: 37). Ora, amigxs, se vocês assumissem esta condição – a única que admite radicalmente a impossibilidade de qualquer metalinguagem e, por conseguinte, a igualdade das falas – simplesmente teriam que deixar de fazer ciência social e começar a pensar noutro registro. Mas ninguém quer que isso aconteça, não é? As ciências sociais são fundamentais para o futuro do país, o fortalecimento das instituições, da democracia e do entendimento mútuo entre as pessoas. Ou não?

Seja como for, vocês não estarão usando Rancière, mesmo quando pretendam fazê-lo, se submeterem o que ele escreve a premissas de análise extrínsecas e opostas ao seu pensamento. Ou melhor: ao encarar Rancière como um doador de palavras sugestivas para simular a enunciação de algo novo, vocês acabam restringindo-se a “utilizá-lo”, ou seja, a mobilizá-lo como peça intercambiável para delinear os panoramas de sempre. Neste sentido, devo reconhecer que vocês são equânimes: destinam a Rancière o mesmo trato que costumam dar aos seus objetos de pesquisa. Para citar novamente o autor da moda, é de praxe “transformar o povo soberano em população sondada, transformar o discurso em jornalismo […] e a estética em animação do ambiente; ou seja, no final das contas [os sociólogos] transformam a democracia no seu substituto: a sociocracia”. (Rancière, 2018: 222). A sociocracia é o poder do “social”, sempre mediado, claro, pelo poder dos seus intérpretes legítimos. O “social” não são as pessoas concretas, mas a causa subjacente à sua concretude visível; concretude insignificante em si mesma, posto que confusa, carente de coerência, eivada de contradições e bate-cabeças.

“A sociologia – explica Rancière – vem nos chamar a contemplar a reprodução dos grupos, a marca das distinções e o mercado simbólico das crenças” (Rancière, 2018: 221). Tudo isso é o que conseguiremos enxergar se, com o nosso olhar, propusermo-nos a ver mais além das pessoas e, com nossos ouvidos, perceber algo mais do que o som de suas próprias palavras. Se ao nosso redor o vozerio é desconexo e, às vezes, absurdo, então o/a sociólogx (ou sócio-antropólogx) nos dotará dos esquemas adequados para alcançar, por debaixo do que se diz, alguma coerência que nos autorize a tomar posições lúcidas e consequentes – ainda que tal tomada de posição se dê em relação a um “objeto” que ninguém partilha realmente.

Minhas/meus amigxs, vocês têm dificuldade de lidar com o excesso de palavras. Excesso este que configura a única partilha do sensível que, sob o imperativo da igualdade, nos é dado acessar. Trata-se de uma partilha que o povo define e redefine continuamente, às vezes em reciprocidade e às vezes em tensão com a ordem do discurso e as posicionalidades nela supostas.

Não finjam valorizar a polifonia, a heterogeneidade das vozes, quando, no final das contas, toda essa exuberância só faz sentido para vocês se puder ser remetida a uma pretensa coerência que apenas seus métodos de sondagem estão em condições de revelar. Coerência situada numa realidade não discursiva que, a partir da superfície de vossas análises, pretende tornar-se imanente àquilo tudo que os outros dizem e fazem. Assim, os dizeres e fazeres da massa convertem-se na expressão de uma “estética” agora roubada à democracia – onde poderia valer para todxs, para bem ou para mal – e enclausurada nos limites de alguma meta-comunidade de sentido.

Para vocês, as palavras (especialmente aquelas que emanam de vossos teclados) nunca podem ser “apenas” palavras. Não podem constituir vocábulos igualados entre si enquanto princípio de realidade, ainda que hierarquizáveis no tocante às possibilidades coletivas que expressam. Quando vêm a público em busca de novas audiências, vocês nos exortam a ouvir as pessoas com atenção, a compreendê-las serenamente. No entanto, em sua perspectiva, isto quer dizer que precisamos ler as pessoas, em última instância, sob o prisma do que elas não dizem. No frigir dos ovos, seus convites complacentes para prestar atenção aos demais equivalem a um pedido para não levarmos ninguém a sério. Como bons policiais – no sentido rancieriano – vocês sugerem que, em pleno calor da ágora, nós não nos afobemos em corrigir e objetar nossos contendores pois, afinal, eles são incorrigíveis; não estão dizendo aquilo que pronunciam suas bocas, mas sim manifestando o que fala através deles – por exemplo: uma moralidade renitente, uma teologia tácita, um mito, uma escatologia arrebatadora, um messianismo penetrante, etc. “Em primeiro lugar, tudo fala, nada está perdido. Em segundo lugar, só fala verdadeiramente aquilo que está mudo” (Rancière, 1993: 74).

Vocês, prezadxs amigxs, são a voz do mutismo: perspicazes exploradores de realidades subterrâneas, conflitos transcendentais, sucessões temporais às quais ninguém está consciente de pertencer e das quais, não obstante, as individualidades e as agitações de superfície  — em plena Avenida Paulista, por exemplo — são a expressão local e pontual.

Quanto mais “complexas” suas análises pretendem ser, mais elas precisam criar para si um mundo invisível, povoado de meta-comunidades, meta-histórias, meta-culturas e meta-sociabilidades onde a palavra e a estrutura coexistem em paz e explicam todos os fenômenos visíveis; fenômenos que o resto das pessoas compartilha, acreditando, ingenuamente, que eles só são o que são. Pensamos — ai de nós! — que estamos todxs juntxs, misturadxs e eventualmente confrontados; que podemos objetar, doutrinar ou convencer uns aos outros. Contudo, a ciência social explica que somos diferentes, que navegamos no curso de comunidades de sentido auto-referenciais, que um vetor mudo e potente arrasta-nos por leitos paralelos e nos correlaciona sem que possamos discerni-lo – salvo, obviamente, se ouvirmos a voz especializada, a ciência do oculto.

Convém, então, calar e ouvir os especialistas. Eles nos revelarão nosso lugar na conjuntura e nossas diferenças recíprocas, de modo a torná-las administráveis por fora da temível democracia onde tudo é falsamente claro e audível, onde podemos falar com os demais ignorando as diferenças que supostamente reproduzimos.

Claro está, amigxs, que substituir as diferenciações sensíveis, as descontinuidades estéticas sempre redefiníveis, pelos mundos meta-sensíveis que proliferam em vossos textos não pode levar a lugar algum. Se escolhêssemos proceder assim, apenas reiteraríamos os lugares e as posições de sempre. E, pior ainda, afiançaríamos tais posições na meta-linguagem de uma meta-realidade à qual só vocês, cientistas sociais, têm acesso.

Naturalmente, eu me recuso a conceder-lhes qualquer prioridade de discernimento, assim como recuso-me a esperar por vossas lúcidas palavras antes de lançar-me ao mundo compartilhado e disputar, nele, alheio a todas as diferenças invisíveis, e convencido da fragilidade de todas as comunidades visíveis, minhas posições e opiniões.

Se continuo dirigindo-me a vocês como “amigxs”, não o faço por ironia, mas sim porque simplesmente não existe nenhuma estrutura profunda que os obrigue a continuarem fazendo o que sempre fizeram, desde Durkheim. Sendo assim, não vos inscrevo num mundo alheio ao meu e, por isso mesmo, acredito que habitamos potencialmente a mesma fraternidade.

Gostaria de escrever mais, contudo, são três da tarde do dia 30 de abril e ainda preciso chegar ao banco a tempo de sacar meu auxílio emergencial para trabalhadores informais. Depois, outras tarefas aguardam. De qualquer modo, espero ter falado e pensado o suficiente para poupar-lhes o trabalho de fazerem isso por mim. Por óbvio, permaneço aberto a sugestões, objeções, tentativas de convencimento e até mesmo de doutrinação. Claro está que encararei tudo o que me for dito da mesma forma que espero que as linhas precedentes sejam encaradas: como palavras que não expressam outra coisa por fora delas mesmas.

Atenciosamente, J.A.I.

PS: Abaixo estão as referências dos textos que li para escrever minhas ponderações. Alguns não foram citados explicitamente na carta. Imagino que vocês já conheçam todos eles e os tenham a disposição em seus vastos acervos, de modo que poderão cotejá-los sem complacência com meu próprio argumento e também com o de vocês.

Jacques Rancière, La lección de Althusser, Buenos Aires, Zorzal, 2014.

Jacques Rancière, El filósofo y sus pobres, Buenos Aires, Inadi, 2018.

Jacques Rancière, Los nombres de la historia, Buenos Aires, Nueva Visión, 1993.

Jacques Rancière, El maestro ignorante, Barcelona, Laertes, 2003.

Jacques Rancière, La noche de los proletarios. Archivos del sueño obrero, Buenos Aires, Tinta Limón, 2010.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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