Geral Teoria Crísica

A eloquência da trivialidade. Sobre o silenciamento disciplinar.

Por João Alcântara Illa

Há espaços que não são feitos para o dizer; espaços cuja existência depende da fala reiterada. São atmosferas controladas, equipadas com isolamento acústico, onde nada acontece. A libido de quem povoa esse hermetismo consiste em fazer de conta que nada está acontecendo, em dar as costas ao dizer alheio para melhor explicá-lo às audiências que cultuam a autoridade dos explicadores. A explicação não pode parar, o método precisa sobreviver, a toda custa. Seu esfacelamento epistemológico em meio aos avanços do pensamento do século XX e sua impugnação política no calor das autonomias populares foram apenas um mal-entendido. A etnografia está de pé e goza de boa saúde. O resto são intrigas. Será?

Textos relacionados que podem interessar: Lições impertinentes de etnografia com o professor Mao Tsé-Tung; Cientistas sociais, Jacques Rancière nunca jogou no seu time; Jamais fomos democratas; A coxinha coroada; Então é respeito o que os acadêmicos querem?; Descolonizar-se, abandonar as disciplinas, pensar no registro do possível; Pesquisa política – reunir-se com os outros e deliberar o possível.

* * *

Un servidor de pasado en copa nueva,

Un eternizador de dioses del ocaso,

Júbilo hervido con trapo y lentejuela

Qué cosa fuera, corazón, qué cosa fuera? 

Silvio Rodríguez, La Maza

Escrevo estas linhas após três dias de uma leitura intensa, que começou com certo entusiasmo e culminou numa recordação sombria. Fui remetido a duas décadas atrás, quando tinha início meu engajamento político, aos 15 anos de idade. Naquela época, enquanto definia os primeiros compromissos que me situariam no espaço dos antagonismos de um tempo, de uma cidade, de um país e, potencialmente, de um planeta, eu começava a olhar com outros olhos o que, até então, vira como mera informação ou “conhecimento geral”. As matérias da revista semanal, a fala dos professores do colégio, o discurso dos parentes, o conteúdo dos livros didáticos, tudo isso passava a soar estranho, às vezes incômodo. Principalmente quando dizia respeito a realidades que, através da militância, eu podia conhecer mais de perto e a partir de palavras diferentes daquelas que se repetiam nos ambientes institucionais onde transcorria boa parte da minha vida adolescente.

Os primeiros momentos de qualquer engajamento costumam ser de instrução intensiva. É preciso ficar a par da situação. Esse aprendizado febril de outras formas de habitar determinadas circunstâncias tornava-me especialmente sensível à descontinuidade entre a nova posição conquistada e as posições eventualmente abandonadas ou repentinamente percebidas como ofensivas e até mesmo inimigas. Estas últimas me afetavam, no mais das vezes, por meio da “imprensa burguesa”, como então eu a definia – e ainda defino. Lembro da sensação atroz de sustentar numa das mãos a revista Veja dobrada na metade e seguir com o dedo índice a frase previamente lida, confirmando estupefato que nenhum dos substantivos, adjetivos e nem mesmo pronomes possessivos ali dispostos fazia o menor sentido enquanto “conhecimento” ou “relato” da situação reportada. A dilaceração que sentia em ocasiões como essa decorria menos da raiva suscitada pelas colocações do inimigo político do que de perceber-me impotente perante sua força. No final das contas ele – o inimigo – lançava contra mim sua retórica, enquanto eu dificilmente poderia fazê-lo ouvir minhas palavras.

O ódio produzido por aquelas leituras dolorosas só diminuía quando eu me transportava mentalmente ao campo político no qual meu anonimato transmutava-se em força massiva, canalizada em palavras de ordem, cultivada na disciplina organizativa de quem, para fazer diferença, não tinha outra opção a não ser cooperar com os demais e agir coletivamente. Na política antagonista eu existia. Não eram todas as minhas urgências que existiam ali, mas aquelas que encontravam expressão no que muitos conseguiam dizer juntos. Era uma existência parcial. Em todo caso, mais significativa que uma suposta existência plena que não deixa rastro no mundo, trancada como está no caixão urdido pelas palavras do inimigo.

Aos 15 anos de idade, vivenciei minhas primeiras experiências de silenciamento político. Antes disso, eu fora calado inúmeras vezes. Supunha, no entanto, que quem me calava talvez tivesse alguma razão. Silenciamento é outra coisa: é perceber-se inaudível mesmo quando se está falando com conhecimento de causa. É ter o microfone permanentemente cortado. É recomeçar a falar, uma e outra vez, sabendo de antemão que no máximo duas ou três orações serão captadas por algum aparelho de áudio que ficou ligado por descuido, antes de ser, também ele, desabilitado. Há vinte anos, venho me habituando a estar em silêncio, como a esmagadora maioria dos meus contemporâneos.

Nossa época é uma das mais silenciadoras de todas. Antes, perseguiam gente que bradava perigosamente às multidões. Hoje, todo mundo fala, mas a língua está programada, o vocabulário nos atinge em rajadas homogêneas e as consequências de seu manejo são bastante previsíveis em quase todas as esferas da vida. O uso da palavra não preocupa o poder. Já aprendemos a operá-la adequadamente, isto é, aprendemos a não dizer nada fora do script, até porque fazer isto hoje, em pleno fim da história, é puro devaneio. Há quem busque noutras línguas – mais “cosmopolitas” – algum ruído que subverta o silenciamento, que prolongue o murmúrio tênue de sua insatisfação num movimento resoluto para fora da câmara de vácuo. Em outro lugar, deve ter alguém dizendo algo que me contemple, pensamos nas horas de otimismo. Numa dessas horas, precisamente em 72 dessas horas, me vi lendo, em inglês, o que poderia ser a quebra atrevida de um silêncio. Enganei-me. Continuo sufocado – agora, pessimistamente sufocado – depois de seguir em vão a sutil corrente de ar que percorria uma coletânea de artigos organizada pelos antropólogos Stephan Feuchtwang e Alpa Shah sob o título de Emancipatory Politics: a critique.

A obra em questão reúne diversos balanços críticos, a maioria deles engajados, a respeito da luta armada revolucionária de tempos recentes em África, Ásia e nas Américas do Sul e Central. Apesar do título, o livro não ostenta um método crítico uniforme – “a critique” –, mas sim uma variedade de abordagens e estratégias de objeção derivadas de posições teóricas específicas e de envolvimentos políticos pontuais com movimentos armados como as guerrilhas maoístas indianas e nepalesas, as FARC, a FSLN e a FRELIMO. Mesmo assim, os organizadores do volume procuram sinalizar, na introdução, um conjunto de preocupações recorrentes entre os autores. Por exemplo, aquelas que dizem respeito à relação potencialmente contraditória entre violência e libertação, disciplina militar e democratização, beligerância e agitação política de massas, dogma e sensibilidade criativa, tática e estratégia. Lendo os textos que compõem a coletânea, constatei que preocupações dessa natureza não pareciam ser estranhas aos movimentos armados sob análise e que, portanto, configuravam, até certo ponto, a problemática das próprias guerrilhas.

Se me propusesse a escrever sobre o conteúdo do livro, ignorando o capítulo introdutório e o epílogo, este texto seria outro – um que está por vir. Minha atenção se concentraria na fronteira entre luta armada e administração estatal. Partiria, provavelmente, da caracterização de “poder dual” oferecida por James Brittain em seu capítulo a respeito das FARC e ponderaria sobre a incomensurabilidade entre, por um lado, as experiências de governo socialista nos territórios e, por outro lado, a apresentação de uma plataforma eleitoral socialista, condicionada ao arbítrio de uma massa votante que desconhece as potencialidades do projeto político submetido à eleição. Argumentaria que o fracasso eleitoral não pode ser nunca o parâmetro para determinarmos e discutirmos a pertinência de um programa transformador em seus aspectos essenciais. Provocaria sugerindo que não existe força política transformadora que habite, exclusivamente, as conjunturas definidas pelo funcionamento do poder público e pelas operações do capital. A emancipação, diria eu, é algo que se experimenta a revelia desses contextos. Ela frutifica em experiências práticas e diretas de autonomia material e intelectual cuja materialização não depende do resultado das eleições, ainda quando possa se beneficiar dele a partir de uma estratégia adequada, focalizada em certos territórios. Estas são reflexões que ficarão para outra oportunidade. De nada serve abordá-las com afinco sem que uma discussão política concreta o solicite. Agora, devo ater-me à desagradável tarefa de esmiuçar a desesperança que me invadiu quando quis saber um pouco mais sobre o que tinha a dizer uma das organizadoras do livro, Alpa Shah, figura emergente desse oximoro chamado “antropologia radical contemporânea”.

Por que preocupar-me com a organizadora da coletânea quando o conteúdo total da obra transcendia em riqueza e complexidade os apontamentos de sua autoria, no início e no final do livro? Simplesmente porque, entre os compromissos existenciais que reivindico, encontra-se o de visibilizar tudo aquilo que coloca em questão a camisa de força teórica, política e epistemológica na qual a disciplina antropológica viu-se transformada. Não o faço por amor a disciplina, mas por consideração aos jovens intelectuais, militantes e comprometidos, que ainda buscam nesse campo de conhecimento um reforço à sua criatividade, um estímulo autêntico ao envolvimento intelectual com o “outro” e um debate teórico que esteja à altura deste projeto e da época em que ele se desenvolve. Nada disso existe na antropologia disciplinar institucionalizada. A voltagem média dos debates nesse campo de conhecimento está bem por debaixo da potência alcançada em outros domínios do saber. A deriva de alguns dos antropólogos mais arrojados da atualidade para longe do compromisso com a chamada etnografia, em direção à filosofia, à ecologia política, ao debate e à pesquisa interdisciplinares ou a-disciplinares corroboram minha assertiva. De qualquer forma, uma busca, seja ela qual for, precisa começar em algum lugar. A antropologia é um ponto de partida legítimo. Reforcemos isto: de partida.

Alpa Shah organizou um livro irreverente sobre luta armada. Ao seu modo, ela reconheceu a dignidade dos movimentos revolucionários contemporâneos. Emancipatory Politics só tem a contribuir com a desobstrução do panorama intelectual do presente, facilitando – e até estimulando – a proliferação de agendas investigativas sensíveis às razões e às potencialidades de autodefesa violenta, encarada como aspecto intrínseco à reivindicação e à realização, aqui e agora, dos tão enaltecidos “direitos territoriais” ou mesmo da famosa “dignidade da pessoa humana”.

A obra organizada por Shah põe em evidência um tipo de problema muito distante da anemia intelectual, do possibilismo e do oportunismo que hoje definem a postura dos autodenominados “antropólogos públicos”. Quando há – ou pode haver – guerra e violência, amigos e inimigos, divisão e antagonismo, a figura do antropólogo pacificador e mediador das diferenças simplesmente desaba. Outro tipo de pesquisa passa a estar na ordem do dia, sempre e quando não queiramos terminar trabalhando para a contrainsurgência. Falo de pesquisas internas às apostas dos grupos em combate, imbuídas de problemas e dilemas coletivos que convocam resoluções inéditas, sem o respaldo de nenhum a priori econômico ou consenso jurídico prévio.

Shah talvez estivesse tentando introduzir uma discussão honesta e arejada sobre o que significa pesquisar em diálogo e em cooperação com a violência criadora da ação humana emancipatória. Se tal fosse o caso, as palavras de Shah, amplificadas por seu lugar de enunciação na London School of Economics, poderiam potencializar a luta contra o disciplinamento antropológico nas periferias do sistema-mundo disciplinar. Havia razões, portanto, para explorar outros textos dessa autora, preferencialmente materiais de autoria exclusiva.

Acabei topando com uma espécie de manifesto a favor da “observação participante, uma prática potencialmente revolucionária”, publicado por Shah em 2017 na revista Hau. Cito um trecho que dá o tom geral da política e da epistemologia que percorrem o artigo:

A observação participante pode ser uma prática revolucionária pelo menos por duas razões. A primeira diz respeito ao fato de que, ao nos permitir viver e ser parte da vida de outras pessoas tão completamente como seja possível, a observação participante nos leva a questionar nossas premissas fundamentais e teorias preexistentes sobre o mundo. Ela nos autoriza a descobrir novas formas de pensar, ser e agir no mundo. Isto é possível porque a observação participante é inerentemente democrática, não apenas em decorrência de sua pedagogia, assente num intercâmbio de mão dupla entre educadores e educados, mas também porque ela assegura que nós exploremos todos os aspectos das vidas das pessoas com as quais trabalhamos, reconhecendo suas interconexões. (…) A segunda razão (…) é que, ao levar a sério as vidas dos outros, a observação participante nos permite entender a relação entre história, ideologia e ação de formas até então desconhecidas, e isto é fundamental para compreendermos como as coisas podem permanecer as mesmas e para pensarmos sobre como os poderes dominantes podem ser desafiados, algo crucial para a mudança social revolucionária.

Esta é a profundidade máxima que o argumento alcança. Será em vão buscar no texto qualquer definição conceitual precisa. Os conceitos se sucedem de modo descuidado, como se todos soubéssemos com antecipação a que se referem. As afirmações irrompem taxativas, mesmo as mais absurdas, dando por certa a complacência do leitor. Por exemplo: Shah endossa a suposição de que estaríamos em condições de “nos alienar dos mundos sob estudo para entendê-los de um modo como eles não podem entender a si mesmos”. O enunciado é tão frágil que, por onde quer que o tomemos, ele se desfaz. Há “mundos” que se auto-entendem, como se fossem sujeitos reflexivos? O que é um “mundo”, no final das contas? Alienar-se de um mundo é uma possibilidade colocada à livre escolha? O que é alienação – conceito controverso no marxismo – e como ela pode ter um valor positivo para a produção do entendimento? Simplesmente não sabemos do que a autora está falando.

A ausência de definições já indica que Shah encontra-se entre amigos. Seu discurso não vai além do que está pressuposto na ideologia de um segmento de sua disciplina. Por conseguinte, não desafia o campo de interlocução onde se insere. As águas do Atlântico Norte não são mais profundas que as do lago Paranoá ou as do Rio da Prata. Encontraríamos os mesmos enunciados que Shah amontoa em seu manifesto em textos de Mariza Peirano ou Rosana Guber, para citar duas “referências obrigatórias” da apologia etnográfica sul-americana.

Shah encobre a mesmice com disfarces inquietantes: revolução, práxis, alienação. Seu baile de máscaras é mais daninho do que simplesmente repetir, palavra por palavra, o velho jargão de sempre. A sensação de claustrofobia se acentua quando nos vemos tentados a concluir que, no frigir dos ovos, todo mundo está falando a mesma coisa com termos diferentes, independentemente de filiações teóricas ou políticas. “Estranhamento do familiar” vira “revolução”; “Intersubjetividade” vira “práxis” ou “questionamento de premissas fundamentais”. O que não muda, o que não pode mudar, é a “premissa fundamental” de que o trabalho de campo nos coloca em contato com outras “premissas fundamentais” que não só divergem das “nossas” “premissas fundamentais” como também podem objetá-las eficazmente. O que não muda, o que não pode mudar, é a suposição de que a diferença está no outro, entendido como agente de um tecido de relações sociais que sustentam sua alteridade. O outro, o estranho, não são os interlocutores do antropólogo, mas as relações sociais que o antropólogo deslinda como fundamento de uma alteridade que só pode ser de natureza sociológica. A alteridade do outro é a alteridade do mundo social que ele habita; é uma alteridade que fala através dele na voz astuta do pesquisador. Claro que nessa alteridade antropologicamente domesticada não pode haver subversão de coisa alguma – por mais que gritemos “revolução! revolução!” – já que, nela, supõe-se a reprodução de relações sociais já existentes. O outro é antropologicamente outro porque reproduz relações sociais outras, e não porque, em interlocução com o etnógrafo, poderia revelar a si mesmo e a quem o escuta algum tipo de inquietação que subvertesse não só as premissas alheias, mas também as suas próprias.

A problemática que justifica a aposta etnográfica de Shah é estritamente mainstream, assim como seu estilo de escrita. A eloquência da trivialidade é o horizonte estético de quem se acostumou a falar demais, de quem escreve para ser lido por um público cativo.

Shah e os que falaram antes dela estão enclausurados no gueto disciplinar e sobrevivem dele. Este é um ambiente de repetição. Nada do que possamos dizer ali será ouvido. O gueto disciplinar é um lugar para falar, não para dizer. Falar com autoridade e através de insígnias de autoridade mais ou menos camufladas. O ato de dizer, ou seja, de ditar, não integra as práticas enunciativas preconizadas numa disciplina como a antropologia. Ditar é estabelecer novos inícios para o pensamento. Falar é meramente comentar o dito, imitá-lo, reiterá-lo para ganhar a audiência de sempre – cativa – com palavras chamativas que, não obstante, veiculam velhos conteúdos. Trata-se de capturar uma atenção flutuante sem formar nunca um público inédito, desses que se organizam em torno de possibilidades inauditas.

Cá estou reaprendendo uma lição antiga, assimilada em minhas primeiras experiências de silenciamento político: há espaços que não são feitos para o dizer; espaços cuja existência depende da fala reiterada. São atmosferas controladas, equipadas com isolamento acústico, onde nada acontece. A libido de quem povoa esse hermetismo consiste em fazer de conta que nada está acontecendo, em dar as costas ao dizer alheio para melhor explicá-lo às audiências que cultuam a autoridade dos explicadores.

A explicação não pode parar, o método precisa sobreviver, a toda custa. Seu esfacelamento epistemológico em meio aos avanços do pensamento do século XX e sua impugnação política no calor das autonomias populares foram apenas um mal-entendido. Shah explica-nos que trabalhar com pessoas das quais nos sentimos distanciados, sair em busca de alteridades pressupostas que logo a pesquisa confirmará e preencherá com algum conteúdo, “não tem nada a ver com exotismo ou relativismo cultural”, mas sim com um método que autoriza a produção de novos “insights”. Ora, isto não é verdade. Carece de fundamento teórico e historiográfico. Ofende, inclusive, o relato das populações etnografadas a respeito do que os antropólogos costumam buscar nelas. (Lembro do dia em que um indígena guarani kaiowá, convidado a falar em público numa conferência universitária, foi questionado por certo antropólogo a respeito de sua relação com as “matas”. Ele retrucou indagando por que os antropólogos querem saber o que os índios pensam da mata em vez de se concentrarem nos termos em que, atualmente, um grupo indígena específico está levando adiante uma disputa territorial concreta).

A sócio-antropologia acadêmica afunda o “outro” no espaço da finitude, da relatividade e da perspectiva. Não lhe interessa o que o outro diz, mas sim as interconexões sociológicas ou as matrizes cosmológicas que explicam seu dizer. Sem esse procedimento elementar de escavação sob a palavra alheia, não há comparação em antropologia e nem produção de “insights”. Os “insights” surgem do contraste entre diferentes estruturações da experiência. A antropologia opera assim, exotizando e comparando. Por sua vez, o pensamento crítico contemporâneo nos permite questioná-la de forma devastadora, tanto do ponto de vista de suas premissas epistemológicas como de sua suposta valia política. Mas por que se preocupar com isso, se dispomos de um lugarzinho seguro para proteger-nos do bombardeio ao redor através da trivialização autocomplacente de toda a crítica? Nas palavras de Shah, “exotismo” e “relativismo” não passariam de simples “estereótipos que são às vezes atribuídos de forma preguiçosa aos antropólogos”.

Podemos acreditar na magia desse esconjuro e permanecer resguardados num reduto sectário onde se premia, entre nossas inclinações, aquelas que obturam a árdua tarefa do pensamento em nome do reconhecimento imediato e da audibilidade insubstancial.  Nossa máxima realização consistirá em subir ao palco por uns minutos breves – e olhe lá – para exercer a honorável tarefa da repetição – e do silenciamento. Quem ocupa o púlpito de uma disciplina abandona a contemporaneidade para inserir-se num tempo monótono, imemorial, que não terminará nunca. Contudo, também podemos sair desse tempo, estar presentes no presente, dizer algo junto a outros que têm algo a dizer. Será tarefa difícil e arriscada, porém, mais realizadora do que a recaída num palavrório absorto, carente de razões ou fundamentos que já não estejam esvaziados ou, pelo menos, gravemente comprometidos.

O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.

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