Por Máquina Crísica – GEAC
A missão da “política antropológica” consiste, essencialmente, em congelar as pessoas na imagem de sua eterna ambiguidade, transferindo a ação política resolutiva – proativa – para a alçada daqueles agentes institucionais que disputam o espaço público. Assim, o tênue cintilar de um pensamento original sobre a conjuntura acaba ofuscado pelas “luzes antropológicas”, esse flash atordoante que fixa as pessoas precisamente na melhor pose para a foto de campanha com o político da vez.
Textos relacionados que podem te interessar: ¿Podemos hablar sin ser intelectuales públicos?; Disciplina não rima com política; Descolonizar-se, abandonar as disciplinas, pensar no registro do possível; Suspender o disciplinamento, redimir a promessa da antropologia; “Indisciplinar a pesquisa, pensar com as pessoas”; Intelectuais: mediadores da democracia?; Vivir la disidencia sin Antropología; Hipótesis 356: la política puede salvarnos de la disciplina; Brasil numa miragem argentina: coxinha coroada; A direitização mora nos detalhes.
* * *
Sempre que possível, procuramos contornar a máquina textual tenebrosa daquelxs que denominamos “intelectuais públicos”. Contudo, em certas conjunturas, o eco de seu vozerio é tamanho – até mesmo nos âmbitos da militância política – que precisamos demarcar uma posição a respeito.
Se, como sugere Rosana Pinheiro Machado (RPM), a importância da disciplina antropológica reside em “estar do lado das vozes que têm sido silenciadas pelos processos hegemônicos”, então vale a pena indagar o seguinte: por que xs antropólogxs são vistos com tanta desconfiança no contexto daquelas lutas que, por serem capazes de se auto-enunciar, conseguem prescrever efetivamente uma política autônoma? Intuímos que essa desconfiança deve-se ao fato de que xs antropólogxs literalmente sugam as prescrições e enunciados dessas mesmas lutas para, assim, se projetarem – conjuntamente com sua disciplina – no espaço daquilo que, sem nenhuma reserva, elxs chamam de “debate público”. Ora, que debate pode ser “público” quando boa parte do seu conteúdo é fruto de um parecer externo e tutelar, que se subtrai à confrontação real das posições políticas para, em vez disso, apresentar-se enquanto síntese adequada das dinâmicas coletivas; uma síntese que, por sua vez, pretende informar o programa e a agenda de certas instituições especializadas em fazer política (partidos, think tanks, etc.). Aquilo que, para uma/um militante – seja elx treinadx em antropologia ou não –, é compromisso e disciplina de luta, para xs antropólogxs públicos não é mais do que algo moral. É dever moral dxs antropólogxs assumir uma posição, diz RPM. Pois bem, para nós que lutamos e nos disciplinamos no exercício da autonomia e da emancipação, a tomada de posição não constitui uma decisão moral. Trata-se, na verdade, da obrigação de organizar o repúdio a tudo aquilo que nega nossa própria existência política. Neste caso, poderíamos falar, até mesmo, de obrigações existenciais.
Para RPM, parece muito importante surfar nas ambiguidades de seus interlocutores. (Diga-se de passagem, a suposta “ambiguidade” alheia é o melhor lugar para instalar o discurso reto e proativo de quem deseja projetar uma voz límpida em meio aos balbucios e “pedidos de socorro” da massa perplexa). Ela esquece, no entanto, que o processo em cujo marco essas ambiguidades vêm à tona diz respeito a tensões profundas, que não remetem ao “self”, mas sim à constituição contraditória e tensa do próprio indivíduo, sempre no limite entre a reprodução de si mesmo e sua dissolução no terreno de novas apostas verdadeiramente políticas. Os sujeitos tutelados da intelectual pública – ou o “povo brasileiro”, como ela gosta de dizer – são caricaturas desenhadas a traços grossos por uma teoria antropológica intoxicada de chavões. Essa linguagem mecânica, mas persistente – porque institucionalizada –, converte as pessoas em meros personagens de um teatrinho falaz que exige, no final do último ato, a intervenção douta e esclarecedora da voz especializada. Esses regimes de representação nos dizem menos sobre os movimentos reais que sedimentam e transformam nossa conjuntura do que sobre o desespero de uma disciplina que, carente de qualquer vivacidade – isto é, de qualquer sintonia real com a capacidade inventiva das pessoas –, decidiu dedicar-se à “política”. A política antropológica (antropolítica?) é só mais uma instância da política representativa, que pretende transferir para outro plano de ação uma capacidade deliberativa e resolutiva da qual as massas ambíguas careceriam cronicamente.
É necessário dizer – em polêmica com os intelectuais públicos – que não existe forma de entender a política por fora dela mesma, ou seja, das suas categorias de ação e das disputas e antagonismos delas decorrentes. Não existe China, Colômbia ou Brasil profundos, à espera de serem decifrados. Só há lutas, apostas, recuos, temores, derrotas, eventuais vitórias, acertos e equívocos. Há, também, corpos castigados pela imposição de um silêncio que os intelectuais públicos só fazem incrementar quando se colocam a missão de falar sobre a vida alheia tomando, antes, o cuidado de circunscrevê-la ao mutismo da “ambiguidade”.
Seja como for, e à revelia dos consensos produzidos no espaço público e na sociedade civil, continuam proliferando, aqui e ali, prescrições e possíveis através dos quais as pessoas inventam soluções aos seus problemas. Não raro, essas soluções podem incorrer no desejo de sujeição à ordem, o que não supõe, aliás, nenhuma ambiguidade. Às vezes, também, as soluções passam pela ruptura com os modos de vida estabelecidos. Aqui, tampouco há ambiguidade. Mas a antropologia dificilmente pode dar conta desses processos de transformação – sejam eles ordeiros ou experimentais – porque ela constitui um ramo do conhecimento dedicado à análise da repetição e da reprodução. E quando não há repetição nem reprodução, alguns/algumas antropólogxs se encarregam de produzi-las no plano do discurso, projetando imagens mortificantes da vida coletiva e de seus personagens eternamente ambíguos. Dessas imagens não pode surgir outra política senão a dx próprix antropólogx: uma política que viceja precisamente ali onde não há sujeito político propriamente dito, mas apenas sujeitos tutelados da antropolítica.
A política antropológica prefere esquecer que, sem composição coletiva, não existe nenhum sujeito. O sujeito político é uma multiplicidade que conflui no horizonte de certos possíveis. Os indivíduos como tais, atomizados pela matriz de leitura pinheiro-machadiana, não nos dão nenhum vislumbre das políticas que eventualmente os mobilizam. Deles só pode brotar uma sobreposição circunstancial de opiniões que a/o antropóloga/o organiza e interpreta ao seu bel prazer. Ou melhor: ao bel prazer de suas próprias intenções políticas, jamais especificadas com precisão, sempre ocultas por trás de apologias genéricas da democracia, da justiça, das instituições do Estado e da redução das desigualdades. A política só se torna tangível no plano individual na medida em que uma pessoa procura realizar certa mudança de atitude que, informada por termos próprios, desafia a disposição existente dos lugares e das visibilidades. Nestes casos, há luta política. Fora disso, há ambiguidade, inconsequencialidade, paradoxo, “complexidade”, enfim, tudo aquilo que justifica a intervenção esclarecedora do intelectual público. Dizer que há política todo o tempo e em qualquer lugar – ou chamar tudo de “política” – é só uma artimanha para construir sínteses programáticas quando ninguém as solicitou, salvo, é claro, os interlocutores da/do antropóloga/a nos seletos corredores do “espaço público”. Mas neste espaço – que é um não-lugar – os sujeitos-objetos das sínteses antropolíticas já não podem contestar as coordenadas de ação destinadas a melhorar suas próprias vidas. Vicissitudes da representação…
Portanto, não nos surpreende que, num artigo recente sobre jovens do Morro da Cruz em Porto Alegre, o procedimento analítico de RPM comece com um sujeito essencializado e culmine em sua re-essencialização. RPM descobre – com espanto calculado – que determinadas pessoas não eram, na verdade, aquilo que o senhor Senso Comum pensava delas. Em vez de fascistas avessos ao diálogo, segundo a autora, os populares que eventualmente aderiram ao bolsonarismo são sujeitos “cuja constituição do self é multifacetada e negociada conforme o contexto”. O labor do antropólogo público, neste caso, é desvelar as ambiguidades inerentes às “subjetividades políticas de indivíduos de baixa renda” e sustentar a possibilidade de um diálogo programático entre estes indivíduos e as forças progressistas. Claro, quem provê as pautas de tal diálogo é a própria antropóloga, em sintonia com os debates mais urgentes desenvolvidos no espaço público.
Os “indivíduos de baixa renda” falarão do que lhes compete enquanto subjetividade “moldada” pela exposição às oscilações entre crescimento e crise econômica: “consumo”, “inclusão financeira”, “violência urbana”, “ódios” e “esperanças”. Ficam excluídas do panorama as categorias que as próprias pessoas são capazes de criar para se posicionar e intervir nas situações em que se encontram. Tais categorias poderiam, quem sabe, ser o ponto de partida para a sustentação de uma política singular, que explora a conjuntura atual a partir de seus possíveis e supõe, necessariamente, um deslocamento dos indivíduos em relação ao que está dado – isto é, sua transformação em efetivos sujeitos políticos. Mas a missão da “antropolítica” é outra: consiste em congelar as pessoas na imagem de sua eterna ambiguidade, transferindo a ação política resolutiva – proativa – para a alçada daqueles agentes institucionais que disputam o espaço público. Assim, o tênue cintilar de um pensamento original sobre a conjuntura acaba ofuscado pelas “luzes antropológicas”, esse flash atordoante que fixa as pessoas precisamente na melhor pose para a foto de campanha com o político da vez.
Constatamos com tristeza um paralelismo inesperado que as palavras de Pier Paolo Pasolini nos ajudam a enunciar. Durante um passeio noturno em tempos de guerra, o jovem Pasolini deixou-se encantar pela irreverente alegria dos enxames de vaga-lumes que incendiavam a paisagem. Nos vaga-lumes, Pasolini delirou jovens diminutos, alheios aos imperativos da realidade, explorando a potência risonha do encontro e desafiando, sem saber, o absolutismo da escuridão. De repente, o feixe arrasador dos holofotes de Mussolini, que varriam o céu daquela noite de 1941 em busca de aeronaves inimigas, interrompeu o brilho sutil desses pequenos seres. A única luz bela e viva em meio ao breu fora subitamente aniquilada pelos refletores da guerra; pelas urgentes tarefas do combate ao inimigo. Também no Brasil os refletores do fascismo mataram o cintilar dos vaga-lumes. Depois disso, “as luzes antropológicas sobre o obscurantismo” pretendem ofuscar a cintilação insistente e promissora dos novos possíveis.
É melhor procurarmos um lugar à sombra… e bem longe do espaço público, de suas tarefas imperiosas e de sua imaginação indigente.
(No final das contas, nem era necessário escrever tanto. Boa parte do que foi dito aqui já tinha sido argumentado por nossa camarada Juliana Mesomo numa conferência em Cali, em junho deste ano).
0 comments on “As ofuscantes “luzes antropológicas” de RPM (ou o apagamento dos possíveis)”